Volume 1

Capítulo 9: Reencontros dolorosos

— O velhote não iria querer que você ficasse assim — disse o amigo.

— Eu sei... Mas o que eu deveria fazer, Leo? Você simplesmente não entende.

A fera fez uma cara emburrecida, sua paciência chegou ao limite, ele apontou o dedo e disse:

— Ei! Eu estou apenas dizendo! Não é como se eu tivesse família presente também! O velhote também é como um pai pra mim, então não vem com essa.

Crossy olhou para baixo e se arrependeu do que disse.

— Desculpa, cara...

Os dois ficaram em silêncio, apenas contemplando sua primeira noite sozinhos, porém, Crossy ficou muito curioso sobre o passado do companheiro, então o perguntou, mesmo com receio.

— Leo... Se importa de me falar por que odeia tanto humanos?

O meio fera parecia se focar um pouco nas estrelas, um sentimento de nostalgia passou pela sua mente, mesmo que repleto de tristeza.

— Eu tinha três anos de idade quando aconteceu... Nossa vila foi invadida, dezenas de cavaleiros do reino humano. Nossos soldados tentaram lutar, porém os humanos usaram magia de fogo e queimaram a vila inteira, centenas de cadáveres.

Leo fez uma pequena pausa, não conseguia acreditar que contaria aquilo para alguém um dia, mas, ele recuperou suas forças e disse:

— Os que sobraram foram torturados e viraram escravos, nossa raça é forte fisicamente, então os humanos nos usaram para trabalhos pesados.

— Espera! — interviu Crossy — Você se tornou um escravo?

— Durante algum tempo sim... Meus pais deram suas vidas para eu conseguir fugir, então eu tive que sobreviver sozinho na floresta. Os primeiros dias foram difíceis, não conseguia caçar direito, então quase morri, mas, você e Icarus me salvaram.

Que história... triste.

—E você Crossy? Qual é sua história?

O garoto temeu que ele fosse perguntar isso, com muito receio ele relembrou todas suas memórias. Elas nem doíam tanto, mas o que ele mais temia era o futuro.

— Bom... Não tem muito para dizer, quando tinha sete anos de idade um demônio me atacou, não lembro muito bem o que aconteceu, mas, de alguma forma eu sobrevivi, tanto a ele quanto ao miasma. Meu pai me entregou a Icarus, ele era o único que poderia me ajudar com minha maldição.

— Você nunca me pareceu normal — disse Leo.

— Claro, por mais que tenha tentando suprimir o miasma por todos esses anos, ainda não consigo esconde-lo totalmente, se me descontrolar alguns animais fogem de mim, não duvido que humanos façam o mesmo.

O leopardo se levantou do seu lugar e colocou sua mão no cabelo de Crossy.

— Libere o miasma agora, o máximo que puder.

— O que!? Ficou maluco?

— Eu ouvi o que Icarus disse! Sou seu amigo, nunca poderia ter medo de você!

O garoto não queria fazer isso, porém ele olhou nos olhos de Leo e viu que a fera nunca aceitaria não como resposta. Então, se levantou e tentou.

— Faz muito tempo que eu não faço isso, ok?

— Vai logo, Crossy!

Uma aura enorme saiu de Crossy, tinha uma cor roxa fraca e se movimentava como se fosse um gás por todo o ambiente. Os pássaros que estavam nas árvores voaram, todos de uma vez para longe, os ratos e animais pequenos correram o máximo que puderam.

Todos os predadores da floresta sentiram a presença do garoto e o reconheceram como um deles. Plantas que estavam por perto começaram a murchar e definhar.

Leo, no entanto, sequer se moveu, seu olhar não mudou e nem mesmo teve atitudes agressivas, ao invés disso parecia confuso.

— Então... Quando você vai liberar?

— Do que você tá falando? Eu já parei de controlar o miasma!

Os dois se olharam desconfiados, Crossy retraiu sua aura para a felicidade dos animais pequenos e andou em direção ao amigo.

— Será que... você é imune ao miasma?

A esperança na voz do garoto se transformou em orgulho para o leopardo, que disse bem alto:

— MAS É CLARO QUE EU SOU IMUNE! ACHA MESMO QUE UMA DOENÇA DE UM MERO DEMÔNIO PODERIA AFETAR O REI DA FLORESTA!?

— Tá, Leo, agora vamos dormir.

Os dois armaram sacos de dormir e comeram alguns pedaços de carne seca. Leo certificou de que nenhum predador estaria por volta, porém, o miasma de Crossy espantou todos por perto.

O absoluto silêncio reinava na noite, os pássaros se recusaram a fazer o mínimo barulho. Crossy teve dificuldades para dormir, pensando sobre tudo que tinha acontecido, porém, Leo dormiu como uma pedra em menos de alguns minutos.

Eles acordaram tarde, perto do meio-dia. A luz do sol, junto do cantar dos pássaros fizeram Crossy e Leo acordarem com olhos marejados.

— Ah... Bom dia, Crossy.

— Bom dia, Leo, tem alguma ideia de quanto tempo falta até o vilarejo Zohakuten?

— Talvez umas... duas horas andando?

— Por aí.

Crossy preparou um café da manhã rápido, cozinhou alguns legumes e vegetais para si, enquanto fez um bife para Leo, que se recusava a comer qualquer coisa que tenha a cor verde e não grite quando morra.

Após a deliciosa refeição os dois voltaram a caminhar pela floresta, os dois já tinham avançado além da montanha do chalé, então Crossy desconhecia aquela área, porém, Leo o conhecia muito bem.

Faltando uma hora para o pôr do sol os dois chegaram ao vilarejo, foram bem recebidos pelos cidadãos, que não reconheceram Crossy e o trataram como um visitante.

— Então, onde fica a casa dos seus pais? — perguntou Leo.

— Por aqui, senão me engano.

Os dois encontraram uma casa grande, com um aspecto abandonado, repleta de teias de aranha e poeira nos pequenos muros. Sem hesitar, eles bateram na porta levemente.

Ninguém apareceu, os garotos se olharam com um pouco de preocupação e bateram de novo com um pouco mais de força. Dessa vez, Crossy reuniu um pouco de coragem e gritou:

— Paul! Q-Quero dizer, Pai! Abre a porta!

Alguns segundos de silêncio tomaram a esperança dos garotos, Leo se virou e começou a andar para fora do terreno quando eles escutaram um barulho agudo na porta.

Ela se abriu lentamente, um homem de aparência destruída apareceu na porta, seu cabelo estava bagunçado e gigantesco, inteiramente embaraçado, suas roupas estavam imundas, com um odor infernal de suor. A face do homem era completamente neutra, seus olhos não tinham nenhum brilho, como se tivesse perdido tudo que importasse.

— P-Pai?

A cara do homem se iluminou, talvez por desespero ou surpresa. Lágrimas desceram pelo seu rosto quando ele abraçou o garoto com toda a força.

— V-VOCÊ NÃO É UMA ALUCINAÇÃO, NÃO É? PROMETE QUE NÃO É!?

Seus olhos tremiam e olhavam para todos os lados através do ombro de Crossy. O garoto nem mesmo pode aproveitar o afeto do pai, estava mais preocupado com a situação deplorável do homem.

— S-Sim, sou eu pai! O que aconteceu com você!?

Paul o olhou com culpa e tristeza, porém, de repente sacou uma espada em direção a Leo e gritou:

— QUEM É VOCÊ!?

A fera recuou instantaneamente e se armou para lutar, porém o garoto estendeu a mão e disse:

— Ele é meu amigo! Na verdade, eu considero como um irmão! Não precisa se preocupar, pai!

Paul por um momento desacreditou do que escutou, ele colocou as mãos nos ombros do filho, largando sua espada no chão e gritando:

— I-ISSO QUER DIZER QUE... VOCÊ CONSEGUIU SE LIVRAR DO MIASMA!?

— Bom... Não totalmente, mas, consigo controlar um pouco, as pessoas não tentam me matar, então pra mim já é uma conquista.

Paul deu um grito de felicidade e afogou seu rosto no ombro do garoto, que agora tinha quase sua altura. Rapidamente os convidou para entrar, com um pouco de vergonha.

O estado da casa deixava Crossy deprimido, estava largada, com um cheiro horrível e repleta de sujeira. Paul não parecia se incomodar com isso, ele rapidamente preparou um chá para os garotos.

— Então... qual treino Icarus te passou para controlar o miasma?

— Meditação, se eu controlar meus sentimentos posso controlar a emissão da aura, mas o problema é que se eu me irritar ou descontrolar posso libera-lo na hora.

— Parece algo difícil, controlar suas emoções o tempo todo — disse o pai, fixando seus olhos no garoto.

Os dois se encaram por um tempo, Crossy teve certeza que Paul estava revivendo as mágoas do passado, porém, o garoto não se segurou e perguntou:

— Pai... o que aconteceu?

Paul fez a mesma face desesperançosa e se sentou. Depois de alguns segundos reuniu forças e disse:

— Eu... contei para sua mãe o que fiz.

— Ela me disse que eu o abandonei, então ela fez o mesmo. Me deixou na noite em que te entreguei para Icarus, provavelmente voltou a morar com sua avó, desde então eu... não sei o que fazer.

— Como ela pode fazer isso? Você não tinha escolha! — disse Crossy, indignado.

— Sua mãe o ama mais do que tudo, Crossy. Fiz o que fiz pensando no seu futuro, porém, Maia tem uma visão diferente de mim, ela não aceitou sua ida, nem mesmo sua doença.

O garoto parecia refletir com seu pai, até que sua face se iluminou em determinação e ele disse:

— Vou busca-la.

— O que? — interviu Paul.

— Onde fica a casa da vovó?

Paul fez uma cara de vergonha, Crossy sentiu que ele fosse dar um sorriso despreocupado como antes, faz sua face voltou a ser tristeza novamente, até que ele disse:

— Sua mãe... é da realeza.

— O QUE? — gritaram Crossy e Leo.

— Nós tivemos um romance na adolescência, deu no que deu e nós fugimos juntos, mas, tecnicamente ela faz parte da família real de Whitewalk.

— Isso significa que Crossy é da realeza? — perguntou Leo.

— Acredito que não, mesmo que Maia te ame, duvido que eles aceitem um filho nosso, nem mesmo sei se eles sabem da sua existência — respondeu Paul.

Os três refletiram a situação por um momento, Paul tomou um gole de chá e incentivou Crossy a fazer o mesmo, o garoto virou a xicara e disse:

— Como eu disse! Vamos busca-la, explicar tudo e então... poderemos viver uma vida como família de novo!

O garoto esperava que Paul fosse responder com entusiasmo também, porém quando olhou para a cara do pai viu apenas tristeza.

— V-Você... não acredita em mim, pai?

— Filho, duvido que podemos voltar a ser o que éramos...

Pai e filho se encararam, Crossy sentiu raiva de Paul, ele não era mais o homem que ele conhecia e admirava.

— Se está feliz do jeito que a família está agora, pai, tudo bem, mas eu vou atrás da mamãe!

— Devemos partir em cinco dias — finalizou o garoto.

Crossy subiu as escadas e deixou Leo sozinho com Paul, os dois se entreolharam e o pai disse, gentilmente:

— Então... Como vocês se conheceram?

Leo deu uma risada gentil e começou a conversar com Paul.

— É uma longa história, senhor...

— Não se preocupe, jovem, eu tenho muito tempo livre.

Crossy revisitou seu velho quarto, até mesmo seu berço não mudou de lugar, ele sentiu raiva de Paul, embora entendesse seu lado, ele sentia que o pai deveria ser mais forte.

Inevitavelmente começou a sentir culpa, ainda mais quando Leo subiu e começou a falar com ele.

— Cara... Que merda você tava pensando falando aquilo? Seu pai não tem culpa da sua mãe ser uma idiota!

O garoto deu um passo em direção a Leo com agressividade, liberou seu miasma por completo. A aura roxa contaminou todo o quarto, formigas que se escondiam em móveis saíram desesperadas pelas suas vidas.

— Cuidado com o que fala, Leo.

— Sabe que isso não me afeta, Crossy. Somos amigos a mais tempo do que posso lembrar, então eu te conheço, sei que está se sentindo culpado, peça desculpas.

— E se eu não pedir?



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