Volume 1

Capítulo 6: Caçada surpresa

— Ei! Garoto! O jantar já saiu faz 20 minutos! Ainda tá lendo esse livro?

— Tô sim, vovô.

— Vovô? Finalmente tomou jeito em moleque, só vê se não gruda em mim a vida toda.

Icarus sorriu gentilmente, deu alguns tapinhas nas costas do garoto e o levou para a cozinha.

Os dois se sentaram e o senhor serviu o garoto, o jantar era um refogado de vegetais encontrados na floresta com carne de cavalo cinzento. A aparência do prato não era das melhores, porém o aroma era divino.

— Caraca! Não sabia que você cozinha tão bem assim velho!

— Já perdeu a educação de novo moleque! — resmungou Icarus — Eu fui o melhor cozinheiro da guilda de Whitewalk.

— Como!? O senhor era um aventureiro? — perguntou Crossy, surpreso.

Icarus sorriu orgulhoso, serviu seu prato com um grande pedaço de carne, comeu um belo pedaço e disse:

— É... foram tempos difíceis.

— Pode me contar alguma aventura!? Me fala sobre seus companheiros!? Tinha algum guerreiro entre eles...

— CALA A BOCA MOLEQUE CHATO!

— Faz trinta perguntas diferentes e não espera eu responder nenhuma!?

Crossy riu alto, ele adorava irritar Icarus, que não era muito paciente por natureza, em outras palavras, Crossy adorava encher o saco do velho.

— Tá bom moleque, vou te contar a minha melhor história, cuidado pra não querer virar um aventureiro viu? Seu pai me mataria.

— Duvido que seja tão boa assim — retrucou o garoto.

— Presta atenção moleque. Eu tinha cerca de 35 anos quando recebemos essa missão.

— Nossa! Foi a muito tempo então né? — interrompeu Crossy.

Icarus levantou de repente, apontou seu dedo e disse:

— OLHA O RESPEITO MOLEQUE! Se me interromper de novo fica sem almoço amanhã!

— Pra que tanta agressividade vô? — disse o garoto, enquanto ria descontroladamente.

— Naquela Época os aventureiros recebiam bem menos do que hoje, então precisávamos aceitar missões mais perigosas pra sobreviver — falou Icarus, em tom nostálgico — Meu grupo aceitou a missão de explorar a Emoresta.

— Aquela floresta que muda a cor dependendo das emoções dos animais? — perguntou Crossy, genuinamente interessado.

— Sim, algo que poucas pessoas sabem é que ela não muda só sua cor. Os animais mudam suas atitudes, ficam mais dóceis ou agressivos dependendo da cor, nossa missão era de visita-la enquanto estivesse vermelha cor de sangue.

O garoto passou a se concentrar muito mais na história, a cada reviravolta ele ficava mais perigoso, sua imaginação passou a viver cada situação.

— Quando chegamos lá, pensamos em acender uma fogueira, porém era quase impossível, cada corte na madeira com o machado expelia um jato de sangue da rachadura. Não conseguimos achar nenhum galho seco.

— Ficamos acordados na noite escura da floresta, no começo, pensamos que nada iria atacar, mas...

— MAS!? — gritou Crossy, eufórico.

Icarus ficou em total silêncio, sua face se contorcia, ele lembrava de memórias horríveis, tão ruins que faziam sua cabeça doer. Gritos dos seus companheiros ecoavam, sangue em mais sangue por todo o lado, esta memória se repetia dezenas de vezes, um massacre total em que no final só restavam duas pessoas.

— V-Você tá bem vovô? 

— S-Sim garoto, é só que… você ainda é muito novo pra ouvir tudo isso.

Crossy ficou curioso para saber o fim, mas ele percebeu o estado de Icarus e evitou perguntar novamente. O resto do jantar foi silencioso, os dois agradeceram a refeição e foram para seus respectivos quartos.

Cara… Acho que eu não deveria ter forçado ele a contar aquela história. Mas o que será que aconteceu no final? Claro, eu não sou ingênuo, alguma coisa muito ruim aconteceu pra ele ter ficado assim.

Tenho que admitir, aquela história foi incrível! Acho que vou ser um aventureiro um dia! Mas pra isso preciso de um grupo, um grupo de pessoas fortes!

Amanhã vou tentar fazer a poção! Espero que ela tenha um gosto ruim, pera, será que eu consigo deixar uma poção com gosto bom?

A noite foi repleta de empolgação e questionamentos, tanto que Crossy quase não dormiu. O garoto acordou eufórico, um pouco mais cedo do que o normal para falar com Icarus.

— Eí! Velhote, tive uma ideia!

— Sério!? Já estava começando a achar que você não tinha cérebro! — disse Icarus, gargalhando enquanto tomava uma xícara de café.

O garoto ignorou a brincadeira do velho e disse:

— Vou tentar fazer uma poção! Sei mais ou menos como é a preparação, mas preciso dos recipientes e coisas assim! Você tem dinheiro pra comprar algo? Se não tiver tá tudo…

— Tá achando que eu tô liso é moleque!? 

— Ué, o senhor vive em uma montanha e é rico? 

— Sossega aí! Eu devo ter um caldeirão por aqui, e alguns frascos de poção. Já aviso que é você quem vai fazer a poção! Vou só supervisionar.

Alguns bons minutos foram gastos para a procura dos itens, depois de uma hora todos os itens requisitados pelo livro de Crossy estavam em cima da mesa.

— Pronto! Agora me mostra a poção que você quer fazer — requisitou Icarus.

— Tá aqui ó.

O velho Icarus leu os ingredientes e disse:

— Bom… O método pra fazer é simples, mas, cauda de leopardo? Você consegue matar um por acaso?

O garoto gelou por um segundo.

— Eu… não considerei esse fato.

— HAHAHAHA!

Icarus riu da cara do garoto durante dois minutos inteiros.

— Eu tenho certeza que tem leopardos por aqui! — argumentou o pequeno Crossy.

— E VOCÊ VAI PEGAR A CAUDA DELES PEDINDO POR FAVOR? HAHAHA MOLEQUE BURRO DA PORRA! HAHAHAHA

— Você vai continuar rindo até quando!?

Icarus se recompôs em alguns segundos e disse:

— Bom… Eu disse que não iria ajudá-lo, mas é o único ingrediente difícil então vamos lá.

— Pera, onde você vai comprar uma cauda de leopardo vovô?

— Comprar? A gente vai caçar moleque!

Crossy olhou a determinação de Icarus e pensou:

Fudeu, matei o velho!

— Precisa não! Deixa pra lá vovô! — gritou Crossy, enquanto segurava a perna de Icarus, que andava em direção a porta.

— Tá me subestimando moleque!? Como se um leopardo fosse grande coisa!

Icarus pegou alguns equipamentos e andou para a floresta junto com seu “netinho”, que estava apavorado, pensando em como viveria depois da morte brutal de Icarus pra um leopardo filhote.

— Seguinte, vou te ensinar o básico da caça peste, vê se aprende algo! 

O velho vasculhou um pouco nas árvores até que achou um ninho de pássaros violetas da montanha. Sem hesitar ele pulou e agarrou a mãe, que descansava no ninho.

A ave piava desesperadamente para se livrar das mãos do homem.

— O que o senhor vai fazer com isso? — perguntou Crossy, curioso e com dó.

— Observe e aprenda!

Conforme a ave fazia barulho, uma espécie de rato se aproximou, ele era da cor da grama, embora tivesse quase 70 centímetros de altura. Sem hesitar nem um pouco ele preparou seu bote e pulou na mão de Icarus, que segurava o pássaro.

O velho soltou o pássaro e agarrou o rato, com pouca dificuldade. Crossy respirou impressionado.

— E agora vem a mágica!

Icarus sacou da bolsa uma pequena faca e cortou a pata do rato. O sangue pingou junto aos gritos do pobre animal. Depois de alguns minutos esperando, um barulho no arbusto atraiu a atenção dos dois.

— Lá vem ele!

Um rugido sinistro emergiu da grama, sua sombra era gigante e amedrontadora.

Meu deus… O que o vovô vai fazer agora!? Como ele vai matar esse destruidor? Essa máquina de matar?

— Se afaste Crossy! — ordenou Icarus.

— Você não vai conseguir vovô!

— Ah seu moleque…

Os dois se calaram e olharam para o predador, que em um segundo estava com o rato em sua boca. Sangue pingava rapidamente, ele devorava desesperadamente o pobre rato, que perdeu sua vida na primeira mordida.

O ser era magro, porém enorme. Tinha clássicas pintas de leopardo, além de uma pelagem amarelada, com olhos vermelhos sedentos por sangue.

Icarus se aproximou da criatura, que se concentrava na sua refeição, ele preparou seu ataque quando…

— Mas o que…

O ser percebeu sua presença e se virou rapidamente, encarando o homem de frente. Os dois trocaram olhares de desconfiança.

— Ei! Crossy! Esse aqui não vai prestar — disse Icarus, com um tom surpreso.

— O que? Como assim?

— Não é um leopardo.

A criatura rugiu em discordância, estranhamente, seus rugidos agora pareciam familiares, até que se tornaram palavras.

— O… Que disse… humano!?

— ESSA COISA FALA!? — gritou Crossy.

— Cara… Não esperava ver um desses depois de tanto tempo, principalmente aqui.

Icarus andou lentamente até o animal, que recuou até uma árvore, quando se sentiu encurralado ele preparou as presas e pulou no pescoço do velho. 

— VOVÔ!

Em um segundo o velho desviou e agarrou o animal pela cauda, o fazendo ficar de ponta cabeça.

— Vamos lá carinha! Mesmo com todo esse tamanho eu sei que você é um filhote, não vou te machucar, eu prometo!

Depois de se debater, o animal parou e olhou nos olhos de Icarus, ele respondeu com um rugido de desprezo. Após debochar do homem, a fera diminuiu, até que a cauda escapou das mãos de Icarus e ele foi ao chão, porém em uma forma diferente.

O leopardo se transformou pouco a pouco em uma criança do tamanho de Crossy. Ela era branca, com uma tonalidade amarela nos braços e torso, além de ser loira com olhos castanhos.

— E-ELE VIROU UM HUMANO!? — questionou Crossy.

— Na verdade, sempre foi um — respondeu Icarus.

— COMO ASSIM SEMPRE FUI UM!? CUIDADO COM SUAS PALAVRAS! HUMANO TOLO! — xingou a criatura.

— Sou um orgulhoso leopardo da tribo de xamãs Lucci! Que vocês! Humanos malditos, destruíram!

— Traduzindo, ele é um meio-fera, não serve pra sua poção, vamos procurar no Sul Crossy…Crossy?

O garoto continuava encarando o meio-fera, os dois tinham uma conexão estranha, o leopardo não conseguia sentir ódio nele.

— Vamos deixar ele aqui? — perguntou Crossy.

— Bom… ele obviamente não serve pra sua poção, então eu não vejo…

— E se ele morar com a gente!?

— Você só pode tá brincando moleque! Tá na cara que ele não gosta de humanos, duvido muito que ele…

— Eu aceito — disse o pequeno meio fera.

(...)

— Por que? — perguntou Icarus, sem força, depois de um longo suspiro.

— Não é como se eu confiasse em vocês! Afinal ainda são humanos, mas, vocês foram os únicos que não tentaram me matar, e eu estou com fome!

Nossa… Como ele é… Simples, pra ele tudo o que importa é comida e segurança, que cara interessante.

— E as despesas em? Acha que eu consigo alimentar um leopardo todos os dias? — perguntou Icarus.

— Você disse que não tava liso — retrucou Crossy.

O velhote ficou calado com ódio, tentou responder, porém nenhuma palavra saiu da sua boca, até que ele disse:

— Moleque desgraçado… Tá! Mas é você que vai cuidar! Vai ensinar ele a cagar na caixa de areia ou sei lá o que.

Crossy levou o seu mais novo amigo até o chalé de Icarus, enquanto o velhote se virava para conseguir uma cauda de um leopardo verdadeiro. Ele dispensou os dois depois da argumentação.

— Então… Qual é seu nome? — perguntou Crossy, animado por ter uma nova companhia.

— Eu não tenho um nome, isso é humano demais pra mim!

— Ué, você não é um… deixa quieto, posso te dar um nome? 

— Nem ferrando! Eu sou uma fera, um predador! Aquele que um dia será o rei das feras…

O estômago de fera da pobre criatura roncou tão alto que Crossy suspeitou Icarus ter ouvido.

— Quer comer alguma coisa? 

— Bom… Eu acho que posso tolerar comida humana!

Crossy se adiantou e preparou um prato com os restos do jantar de ontem, de uma forma um pouco rústica.

— Aqui! É um bifé com…

Antes que o garoto pudesse apresentar o seu prato, o caro amigo já estava devorando a carne em uma bocada.

— Q-Que delícia! — disse a fera de boca cheia.

Acho… que eu vou ter que ensinar alguns modos pra ele.



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