Volume 1

Capítulo 4: Despedidas são só começos

O silêncio se instaurou na sala, interrompido apenas pelos soluços de Maia, ela olhou para o marido com muita pena e tristeza. Era a primeira vez que via Paul assim, indefeso, acabado e destruído.

Paul tremia, sua voz vacilava enquanto ele tentava dizer algo. O único pensamento que estava na sua mente em meio a tristeza era:

Tenho que apoiar a Maia!

Ela colocou a mão no ombro do marido e disse com uma voz doce:

— Você não precisa fingir amor, eu sei o quanto você é forte! Tá tudo bem... ninguém aguentaria isso sozinho!

Paul levantou imediatamente e a abraçou com toda a força que pôde. As lágrimas gélidas desceram pelo rosto do homem, ele olhou para os olhos de sua esposa e encontrou um abrigo, portanto, teve forças para também abrigar ela.

Os dois andaram juntos até a sala, o pai abriu a porta lentamente e com cautela. Crossy estava na cama, com aparência fraca e destroçada, à beira da morte. Maia se aproximou e abraçou Crossy com cuidado, chorando desesperadamente, Paul fez a mesma coisa.

Enquanto os pais se lamentavam, o doutor saiu da sala, ouviu uma discussão fora da clínica.

— E se tivermos pegado miasma também!? — perguntou uma mulher com roupas marrons.

— Como eles ousaram andar com uma criança tão doente assim por aí!? — gritou um aldeão.

Miraak ouviu os gritos e gritou furioso:

— PAREM DE IDIOTICE SEUS FOFOQUEIROS! O MIASMA NÃO É CONTAGIOSO! AGORA SAIAM DA MINHA CLÍNICA ANTES QUE EU ABRA A GARGANTE DE VOCÊS COM UM BISTURI! 

Suas palavras foram praticamente jogadas ao vento, o povo continuou resmungando sobre o garoto.

— E-Eu vou ficar bem pai, sério!

(...)

Paul o olhou com olhos marejados, completamente destruído. Maia fazia um belo cafuné, quanto o olhava com medo.

O céu começava a adquirir uma tonalidade mais clara, os pais sabiam que a hora temida estava chegando, tanto que a mãe soltou um pequeno grito quando viu o doutor entrar na sala.

— A hora está chegando….Paul…Maia…Vocês precisam sair agora.

Paul viu a fraqueza de Maia e a abraçou, fazendo um carinho leve nas costas, mesmo com ela não querendo. Por fim, na sala restava apenas o curandeiro e o garoto.

Os dois se encararam por um tempo, o desconforto dominava o ambiente. Os ticks do relógio e o cantar dos galos se convertiam em ansiedade.

— Crossy…Vou te dar uma escolha — disse Miraak, com um tom de tristeza.

— Tenho que ser brutalmente sincero com você…Sua chance de sobrevivência é 0, não existe cura, você pode escolher sofrer até a morte por nada ou…

Miraak segurou um frasco com um líquido azul, suas mãos tremiam.

Eu posso…te dar uma morte indolor. Sei que é algo muito pesado pra uma criança, porém eu já percebi, você não é normal, nem mesmo parece triste pela sua doença.

A resposta de Crossy foi alta e clara:

— Não.

— Vou ficar com meus pais até o fim — continuou.

Miraak ficou em silêncio por um tempo, várias vezes abriu a boca para começar a falar algo, mas parou, parecia estar medindo muito bem suas palavras.

— Você…sabe que vai sofrer, não é?

— Sim.

Os dois se encararam por um tempo e Miraak saiu da sala. Pouco tempo depois os pais de Crossy entraram novamente, sabendo que, na próxima vez que cruzassem a porta o garoto estaria morto. A tensão dominava a clínica inteira, um caso de miasma era algo raro, afinal, quase ninguém sobrevivia ao ataque de um demônio.

A vila inteira discutia o assunto, mentiras, fofocas, discussões e até mesmo insultos.

Os sintomas do Miasma eram característicos, todo bom médico os reconheceria. Uma marca negra onde o demônio toca e a decadência rápida do paciente.

Paul estava repleto de ódio e dúvidas, em sua mente ele amaldiçoou o tempo por fazer o céu clarear. Um sentimento horrível contaminava o casal, eles sentiram que Crossy tinha os minutos de vida contados.

Foi então que o sol raiou completamente… Maia e Paul abraçaram Crossy com todas as forças que puderam, sentindo que ele partiria. O garoto começou a tossir e seu aspecto ficou mais fraco do que nunca.

Nesse ponto, a criança lutava para manter seus olhos abertos, ele não respondia aos pedidos da mãe e nem as súplicas do pai.

O garoto sentiu seu sangue ferver, suas veias e artérias estavam a ponto de se romperem, sangue saiu dos olhos da criança. Ele tentou gritar, porém sua mandíbula não se movia, estava paralisado.

Paul finalmente desistiu, sabia que seu filho não tinha mais esperanças, então ele disse:

— E-Está tudo bem filho… você pode ir! Não se preocupe com a gente! 

As lágrimas caíram pelo rosto do pai, ele sentiu imensa dor pelo que disse, embora fosse necessário. Maia o abraçou e deu o máximo de suporte que pôde.

O tempo foi passando e Crossy perdeu a audição, seus pensamentos eram vagos e simples, esperando a morte, segundos se passaram e se tornaram longos minutos. O sol já era visível e a dor não progrediu mais.

Eu só queria agradecer eles uma ultima vez...

Acho que eu não tenho jeito, tô começando a me acostumar com a morte.

Será que eu vou voltar pro céu de novo? Mais que merda... Como eu pude desperdiçar essa chance!?

O garoto socou para o alto em um acesso de raiva, foi então, que ele percebeu, estava vivo.

Naquele dia o mundo conheceu Crossy, o garoto que sobreviveu ao Miasma.

Em poucos segundos ele conseguiu se levantar e até mesmo sentar, sua força havia voltado. Os pais gritaram de felicidade, embora assustados.

Miraak entrou na sala pensando que Crossy já tinha morrido, porém, se deparou com o garoto de aspecto saudável e sentado. Seu queixo ficou caído, ele começou a suar frio e tremer, chegou até a pensar:

Será que... estou tendo alucinações?

Talvez eu tenha me apegado muito a Crossy? O suficiente para minha mente tentar me confortar gerando essa ilusão ridícula? com certeza foi isso.

O doutor andou cético até o jovem garoto.

— E-Ele está vivo, doutor! Como pode ter sobrevivido ao Miasma? Consegue explicar isso? Em? — questionou Paul

Miraak tocou nos olhos de Crossy, para o susto do médico, eles não pareciam gelados e de aparência frágil, ou até mesmo falsos. Suas pupilas pareciam funcionar corretamente, junto com seus batimentos.

— Com certeza foi uma bênção dos deuses! — falou Maia.

O doutor fez todos os testes incrédulos, aquele era realmente Crossy, o primeiro garoto conhecido a superar o miasma. 

Os próximos dias foram um tanto quanto complexos, Crossy ganhou alta depois de muitos exames e seus pais começaram se acalmar.

O garoto voltou para casa repleto de dúvidas, porém feliz, embora sua mãe estivesse limitando-o muito mais.

Maia agora estava dez vezes mais protetora do que antes, ela impedia a pobre criança até mesmo de sair de casa, Paul também andava inseguro, sua personalidade forte e descontraída parecia muito afetada pela quase morte do filho.

— Mãe! É só uma caminhada! — argumentou o pequeno garoto.

— Eu já disse que não Crossy! Eu… não vou aguentar se algo acontecer com você de novo! 

A mãe do garoto estava emotiva, até nas pequenas ações ela via grande perigo, porém, Crossy não tinha esse tipo de mentalidade.

Já morri uma vez e quase morri outra, tá realmente na hora de explorar esse mundo! Não quero viver dentro de casa!

Foi com esse tipo de pensamento que ele escapou pela porta dos fundos graças a um descuido de Paul, o garoto nunca ficou tão feliz em ver a grama um pouco mais esverdeada desse mundo. Ele correu para o centro, pensando que teria algo de interessante lá.

Desde que reencarnou, Crossy não fez muitos amigos exceto Sarah, seus pais não tinham muito o costume de sair de casa, Paul se enterrava no trabalho e Maia vivia na cozinha, sem tempo para socializar.

Então quando viu aquele centro, repleto de pessoas e crianças, decidiu tentar fazer algumas amizades, tinha muita coisa para dividir e quem sabe desabafar.

Como será que as crianças fazem amigos? Na minha infância era só falar de pokémon ou algo do tipo.

Ele se aproximou de um grupo repleto de crianças, a maioria por volta de cinco anos. Alguns deles estavam com seus pais, comendo lanches vendidos na praça.

— O-Oi pessoal! Meu nome é Crossy...

Ninguém sequer olhou para o garoto, como se ele não existisse. Crossy falou mais alto do que deveria e suas expressões não mudaram.

O que eu faço!? Não quero forçar a barra, mas, parece que eles não me escutaram...

Será que tem algum ritual para fazer amizades nesse mundo? Como eu vou saber!? Bom... vou tentar mais uma vez!

— Ei pessoal! Eu posso brincar com vocês!?

As crianças continuaram falando entre si, sem quaisquer preocupações.

Cacete... Será que eu... sou antissocial nesse mundo também!? Não! Não posso ser estranho de novo!

Crossy aproximou-se de uma criança com túnica vermelha, olhos azuis e cabelo loiro.

— Uhh... Ei cara, será que eu poderia brincar com você?

O garoto estava agachado no chão, brincando com uma pequena carroça de madeira.

— Ei! Eu tô falando com você! Olha na minha cara!

O garoto que estava sendo ignorado colocou sua mão no ombro da criança de túnica. O loiro ficou em completo choque, as outras crianças olharam fixamente para Crossy.

Seus olhares eram sérios, algumas tremiam de medo. Para elas, Crossy tinha uma aura de puro perigo, algo que nem mesmo elas sabiam conscientemente, era puro instinto.

A criança de túnica estava chorando, seus olhos repletos de desespero imploravam para Crossy o soltar.

— P-Por favor...Não me mata!

— Eu só quero falar com você cara!

O aumento na voz de Crossy fez todas as crianças correrem dele. O garoto parecia um lobo faminto aos olhos de todos.

O que eu fiz!?

Os adultos começaram a olhar para Crossy fixamente, estavam confusos. A imagem do garoto em suas mentes era de um puro predador, alguém que nem mesmo eles sabiam se era perigoso ou não.

O garoto olhou para si mesmo em uma poça perto ao seu pé, sua imagem estava distorcida, emanava uma aura roxa que se movia como fogo. Crossy entrou em desespero, alguns adultos caminhavam em direção a ele com olhos assassinos.

— Esse moleque... tem algo de estranho nele — resmungou um espadachim, que largou sua bebida e andou em direção ao garoto.

Seus olhos estavam fixos na criança, ele desembainhou sua espada sem nem mesmo hesitar, sua mente estava totalmente focada no garoto, em um nível que até mesmo respirar não era prioridade.

— Ei garoto... Essa sua cara... Não, essa sua “energia”, me faz querer te matar.

A face do guerreiro se tornou sombria, ele sorria com orgulho enquanto seus companheiros o observavam com felicidade e satisfação. Crossy se imaginou como um monstro sendo caçado, o homem se aproximou rapidamente e começou a rir.

Ele estendeu sua espada para cima e disse:

— Ei! Balcheor! Aposto que corto a cabeça dele em um golpe.

Todos no vilarejo começaram a rir, até mesmo aqueles que viram a condição do garoto alguns dias atrás, como se nunca tivessem visto ele antes, como se ele fosse apenas um monstro indefeso.

Ninguém teve compaixão, para eles Crossy nem mesmo era humano.

— Acabe com isso logo Isaac! Se não, eu que vou matar está “coisa” — disse Balcheor, se levantando e desembainhando sua espada.

— Ok! Velho insuportável.

O cavaleiro ergueu sua espada e desferiu o golpe, olhando fixamente para Crossy, sua face refletia o puro nojo, como se estivesse matando algo repugnante.

Todos na rua gritaram de euforia e felicidade instintivamente, nem mesmo sabiam o porquê riam tão alto.

Crossy viu o corte chegando, era tão rápido que ele não pode pensar em nada, apenas aceitou a morte e fechou os olhos, desesperado.

A multidão vibrou intensamente, ele pode ouvir a risada dos cavaleiros, até que todo o barulho cessou imediatamente.

Clang!

Eu... morri?

— Quem caralhos é você!? — gritou o cavaleiro Balcheor.

Crossy abriu os olhos e viu um homem moreno corpulento, com músculos rígidos e poderosos, ele tinha um cabelo afro mal penteado e seus olhos estavam repletos de ódio e surpresa. Com muito esforço ele bloqueou a espada de Balcheor e a repeliu para longe do garoto.

Os cidadãos do vilarejo o reconheceram imediatamente, suas faces expressaram dúvida e terror.

— Meu nome é Paul Mikeardia! — disse o homem negro com seriedade — A criança que vocês estão atacando é meu filho, então eu quero saber... tem algum motivo para tudo isso?

Todos ficaram em completo silêncio.

Os cavalheiros pareciam assustados no começo, porém, depois da apresentação eles riram de desdém e disseram:

— E se não tiver? Você vai fazer o que?

Paul se irritou e puxou algo de sua bolsa rapidamente. Era uma poção negra, de aspecto duvidoso e sombrio, ela borbulhava tanto que parecia até mesmo ácido. Sem hesitar ele a jogou nos cavaleiros, que gritaram de dor.

Suas peles derreteram e se tornaram bolhas negras, que explodiram em uma fumaça roxa muito densa. O pai segurou o filho e saiu correndo para longe do vilarejo aos gritos dos cidadãos.

A fuga foi difícil e cansativa, cada vez que viravam de rua eles encontravam algum aldeão que conheciam, mas, por algum motivo tentava os matar.

Sempre que alguém tentava atacar o garoto Paul jogava uma poção diferente, mas em geral nenhuma delas machucou ninguém tanto quanto os cavaleiros.

O pai levou o garoto até a entrada da floresta, onde descansaram e conversaram um pouco.

— P-Pai... O que diabos foi tudo aquilo?

Paul tinha um olhar de preocupação, estava em um debate interno para decidir se deveria ou não contar a Crossy, porém, ele decidiu que sim em um suspiro longo.

— Crossy... Eu queria esperar mais um pouco pra te dizer isso, mas, não dá

— Essa reação das pessoas, a forma como elas te veem agora... todas essas coisas são sintomas da sua doença...

Espera... O que!?

Crossy sentiu um calafrio horripilante, de alguma forma, ele sabia que o seu pai tinha falado a verdade, seu corpo não parecia completamente normal desde a doença, como se... tivesse mais alguém dividindo o corpo com ele.

O garoto sentiu um medo avassalador, seu pai percebeu isso e o abraçou.

— Filho... Eu sei que talvez não consiga me dizer, mas, naquela noite aconteceu algo, não é?

O garoto ficou em completo silêncio, ele tinha medo de reviver os traumas daquela maldita noite, sua mente o fez esquecer de quase tudo propositalmente, talvez como um mecanismo de defesa.

— Quando alguém é atacado por um demônio e sobrevive, ela contraí uma doença chamada Miasma, que funciona como uma maldição — explicou Paul, com um olhar perturbado — É uma doença tão perigosa que todos os seres vivos sabem quem a tem instintivamente, as pessoas na cidade te atacaram por isso.

— Primeiro elas te evitam, como se você fosse alguém imperceptível, mas, quando elas te percebem, tentam de matar o mais rápido possível, ou elas fogem de medo.

Paul deixou uma lágrima escapar.

— Filho... E-Eu não quero fazer isso, mas, eu te amo do fundo do meu coração, e as vezes, quando amamos alguém, temos que fazer o bem para aquela pessoa, mesmo que isso signifique te machucar, você vai entender isso quando ficar mais velho.

Crossy olhava para seu pai, as lágrimas escorriam rapidamente, Paul o abraçava com mais força e dizia:

— Eu conheço um mago, ele não mora muito longe daqui, é forte, e diferente de mim, capaz de te proteger.

— Pai... Eu não quero ir pra lugar nenhum! Não posso abandonar vocês!

O silêncio reinou entre os dois por alguns segundos.

— Crossy... Você sempre foi um garoto muito inteligente, eu te amo filho.

Um golpe foi desferido bem na cabeça do garoto, Crossy desmaiou sem mais nem menos.

— Maia não vai gostar disso... Talvez ela até comece a me odiar, mas, essa é a única forma de você viver uma vida sem ser caçado todos os dias.

— Adeus Crossy...



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