Volume 1

Capítulo 3: Nem todo padre é santo.

A criatura babava, sua saliva pingava no chão e o derretia como ácido. O cheiro na sala era infernal: uma mistura de carne incinerada, enxofre e sangue envelhecido. Toda a escuridão no ambiente estava envolta do demônio, seus olhos reviravam de ansiedade, assim como seu estômago.

As pernas do garoto se desequilibraram quando o viu, seu corpo inteiro parou de funcionar por um instante, completamente paralisado, seu coração batia mais disparado do que nunca. Respirava como se seu pulmão fosse falhar.

O clima se distorceu, o pequeno corpo da criança fervia de dor e tontura, ele não conseguia pensar direito, a presença esmagadora do demônio o impedia de se focar em qualquer coisa.

O chão até a porta parecia infinito, a adrenalina bombeava no sangue de Crossy, seu instinto gritava com todas as forças para ele fugir, porém, nem mesmo suas pernas o obedeciam.

A pele carmesim do demônio se tornou escarlate, suas veias escuras bombearam um líquido viscoso como lava para as suas garras, o monstro tinha uma feição capaz de assustar até gigantes, seus dentes eram serrilhados e avermelhados, cobertos pela sua saliva.

O demônio não se conteve e deu o primeiro passo.

TENHO QUE FUGIR! ALGUÉM ME AJUDE POR FAVOR!

PAI! MÃE! ALGUÉM!

Sua face exibia o mais puro desespero, não importava o quanto tentasse, seus pensamentos de agonia não se tornavam palavras.

Thud!

O demônio se aproximava mais ainda.

Thud!

Crossy pode sentir sua morte se aproximando.

Thud!

A boca da criatura se entortou até virar verticalmente, o estômago dele se abriu, surgiram mãos negras enormes que tremiam intensamente, buscando algo para agarrar, não demorou muito para cercarem o garoto.

Crossy olhou para o estômago do demônio e viu o inferno, centenas de milhares de almas gritando o mais alto que podiam.

Sua alma tremeu em direção ao portal e o corpo morreu em um segundo.

As mãos negras tentaram arrastar o cadáver sem vida para a barriga do demônio, elas puxaram com tanta força que deixaram marcas pretas por todo seu corpo.

Os pés se aproximaram do estômago do monstro, que tentava o devorar como uma estrela do mar, assim que os dedos do garoto tocaram no ser demoníaco um barulho fino e ensurdecedor surgiu da sua pele.

Uma sensação congelante tomou a sala, um frio capaz de parar até o ser mais rápido do mundo e transforma-lo em uma escultura. O demônio foi tomado por uma ventania branca e se tornou nada mais do que o puro gelo.

O silêncio na sala era dominante, nada nem ninguém estava vivo ali, até que um suspiro desesperado e barulhento saiu da boca de Crossy.

Ele retornou a vida de forma inexplicável, embora se sentisse...diferente, de repente se via desacostumado com seu próprio corpo, como se tivesse reencarnado novamente.

Crossy se levantou desesperado e olhou para o monstro, que se despedaçou em mais de mil pedaços cristalinos que sumiram em um flash de luz.

Alguns minutos se passaram e o garoto se acalmou um pouco, seus batimentos agora estavam um pouco mais normais e ele conseguia respirar mais lentamente. 

— I-Isso foi um sonho? 

O garoto queria que sua pergunta fosse respondida pelos seus olhos abrindo em uma manhã iluminada, porém, continuou em uma sala gelada e sombria com uma imensa dor em todas as áreas do corpo.

O calcanhar de Crossy estava totalmente negro, marcado, desde que percebeu isso sua respiração mudou, ele ficou inquieto, toda a sensação de estar na presença do demônio passou, porém ele ainda se sentia muito mal, como se estivesse doente.

Sua pele negra se tornou pálida e a dificuldade para respirar aumentou ainda mais, uma dor incessante no peito atingiu o garoto, não demorou muito para progredir até o seu braço esquerdo.

Crossy fraquejou e caiu no chão em direção a porta, suor frio se espalhava por todo seu corpo, sua vista estava lenta e atrasada, até que começou a sentir náuseas e cansaço extremo, seu coração parecia mais acelerado do que nunca.

— Filho!? Onde você se escondeu?

— CROSSY!!

Maia correu até o garoto em puro desespero, ela o segurou nos braços e começou a se desesperar, checou a condição do garoto mais rápido que pôde, seu coração não batia, ela tentou reverter com magia de cura, mas nada mudou.

— O QUE ACONTECEU CROSSY!? ALGUÉM ME AJUDE! PAUL! PAUL! DESÇA AGORA!

O pai do garoto desceu as escadas quase voando, Paul podia ser bem brincalhão, mas em situações como essa ele não ousava hesitar, sua esposa gritava constantemente com ele, tanto que ele aprendeu a reconhecer o tom de preocupação dela.

Ele parou no corredor e se aproximou do quarto.

— O que foi Maia!?

A visão de Paul o chocou, ele viu sua mulher em prantos com seu filho mais pálido que um cadáver e com manchas por todo o corpo.

Crossy... Está morto...

Este pensamento passou pela mente de Paul como uma flecha, destruindo suas esperanças em um segundo.

O pai se manteu em pé, olhando para sua criança e para Maia, que retribuiu com um olhar de preocupação.

Não, não posso me desesperar ainda! E-Ela precisa de mim!

— O que aconteceu aqui?

— E-Eu não sei! — berrou Maia em lágrimas.

— Prepare tudo, vamos ver um curandeiro agora!

Paul tentou ser racional, porém, seu coração estava desenfreado, embora sua face fosse tranquila e responsável, por dentro só tinha desespero.

Maia pegou tudo que precisava e correu para clínica, Paul entrou no quarto das suas poções, o que Crossy estava.

Droga...Ele deve ter tomado alguma poção que eu deixei na mesa.

Paul andou pela sala e a encontrou totalmente destruída. Suas poções estavam pelo chão, que estava com um aspecto queimado e derretido.

O homem observou a cena em choque, a única coisa que conseguiu pensar foi:

Mas que merda! Ele deve ter derrubado a poção derrete-goblin, o que eu faço!?

A culpa...é toda minha!

— Amor! Vem logo! — gritou Maia.

Não tenho tempo de fazer um antídoto... Mas e se ele não tiver tomado essa poção especificamente? Fazer um antídoto pra algo que eu nem sei mesmo se ele tomou pode o matar.

Meus deuses... O que eu faço!?!?

A mente de Paul estava um furacão, a vida de Crossy estava nas suas mãos. Se decidisse fazer um antídoto e fizesse o garoto tomar, poderia salva-lo, isso se ele tivesse bebido, mas, se não

Os dois correram para um curandeiro em meio à noite o mais rápido que puderam, dezenas de pessoas no caminho avistaram o desespero dos dois pais e resolveram tentar ajudar, no final, a maioria da vila estava reunida para descobrir o que tinha acontecido com o pequeno garoto.

A noite estava muito mais agitada do que o normal no pequeno vilarejo de Zohakuten.

Maia entrou na clínica da cura berrando:

— ALGUÉM AJUDE MEU FILHO POR FAVOR!

Os médicos se reuniram rapidamente e começaram a checar o caso do garoto, a maioria da multidão curiosa se dispersou.

Um dos médicos tentou acalmar a família, ele estendeu a palma e recitou um encantamento:

— Heart Check Magicka

Uma luz rosa choque iluminou Crossy, depois de um tempo a luz apagou e uma chama rosa gravou números na mão do curandeiro.

O homem olhou espantado para os números, ele leu diversas vezes incrédulo, até que um colega veio e perguntou:

— Quantos batimentos?

— Quarenta... Se não fizermos algo ele não vai resistir!

A equipe se reuniu em volta da criança recitando dezenas de feitiços, alguns para medir a situação do garoto, outros para tratamento — que foram ineficazes.

Até mesmo o feitiço de cura mais poderoso não foi capaz de surtir o menor efeito no garoto, a temperatura de Crossy beirava a hipotermia, seu corpo estava cinza como um cadáver, ele tremia sem controle algum e nem mesmo conseguia abrir os olhos.

Paul exigiu que os médicos fizessem algo, porém, não importa o quando ele gritasse, as magias de cura ainda não tinham efeito.

O ambiente ficou movimentado, de um lado os médicos tentavam acalmar o homem, que agora tinha lágrimas em seus olhos, enquanto o outro lado culpava os curandeiros. Maia tentou acalmar Paul, porém ele não queria ouvir ninguém.

Ninguém exceto ele.

— P-Pai… 

A sala inteira entrou em silêncio, todos olharam para o garoto na cama.

Crossy estava suando muito, seu corpo ainda estava com um aspecto fraco e seus olhos estavam abertos com dificuldade.

Maia correu em meio à multidão e abraçou o seu filho com muita rapidez e cuidado, Paul logo a seguiu.

— O garoto tá vivo! — gritou a equipe em coro.

— Argh! Que barulho do caralho! — insultou uma voz grossa.

Todos se calaram imediatamente quando um curandeiro emergiu dos fundos da clínica. O curandeiro tinha aparência de alguém com 20 anos, era repleto de símbolos que pareciam com tatuagens estranhas, seus olhos eram azuis como o céu e todos pareciam o respeitar.

— Alguém pode me explicar por que estão fazendo essa baderna toda? — indagou o senhor.

— Está criança Miraak… não fazemos ideia do que ela tem, parece um morto-vivo — respondeu um dos funcionários.

Paul se levantou irado e se preparou para bater no homem, porém com a pouca força que restava Crossy o segurou.

O homem misterioso se aproximou da família e começou a examinar Crossy com uma atenção inexplicável, diferente dos outros curandeiros, ele não só utilizava um simples encantamento de cura e finalizava a consulta, Miraak olhava nos olhos do paciente e travava uma luta contra o próprio conhecimento para descobrir o que ele tinha.

O médico renomado utilizou dezenas de magias diferentes para examinar Crossy.

— Termina Heat — recitou ele — Impossível… Sua temperatura corporal é de 33 graus?

— O que isso significa Miraak!? — questionou Paul ansioso.

O pai lutava para conseguir uma resposta, sentia que Crossy estava perto da morte, mas esse pensamento machucava tanto que o evitava, Paul decidiu que deveria manter uma postura segura para Maia, independente de tudo.

— Não dá pra dizer com certeza ainda, peço que me deem um tempo para fazer alguns exames, e eu quero deixar claro, isso é uma clínica médica e não um lugar pra curiosos, vazem, agora!

A multidão se dispersou irritada com o médico e seus assistentes. Paul e Maia aguardaram em uma sala separada enquanto Dr.Miraak analisava o novo paciente.

Maia segurava as mãos de Paul com força, seus olhos estavam marejados de tanto chorar.

— Por que Paul… Por que justo com o nosso filho!? O que o meu menino fez pra merecer isso!? — perguntou Maia enquanto derrubava uma lágrima entre os ombros do seu marido.

Paul tentou se manter forte, Maia precisava dele mais do que nunca, na mente dele, aquela não era a hora de mostrar qualquer fraqueza, aprendeu a ser assim com seu pai, segundo ele, isso era ser homem.

— Não é questão de merecer amor… ninguém merece isso.

Dentro da sala, Crossy lutava para se manter consciente e responder às perguntas do doutor.

— Interagiu com alguma planta ou besta mágica misteriosa recentemente? 

— Um demônio conta como… besta mágica? — questionou Crossy com suas últimas forças.

— O que… você disse?

O rosto de Miraak estava em pura confusão, ele soltou o bisturi que estava segurando, colocou as mãos na mesa e refletiu. Seus olhos corriam pela sala, analisando todas as possibilidades, até que eles olharam no fundo da alma de Crossy. Doutor Miraak começou a lacrimejar.

Crossy percebeu a atitude estranha do doutor e se desesperou, começou a suar frio e com medo perguntou:

— M-Me diga Miraak! O que eu tenho!?

O doutor cerrou seus punhos e rangeu os dentes, ele evitou olhar nos olhos de Crossy por alguns segundos, até que reuniu força e disse tentando ter coragem:

— Garoto… Você tem miasma, uma doença mortal, me dói dizer isso… mas você não vai sobreviver até essa manhã.

M-mas… que droga?

— É como uma maldição, os seres vivos que entram em contato com demônios e sobrevivem contraem o miasma. Todos ao seu redor te abandonam instintivamente e você morre antes do amanhecer, é uma maldição cruel…

— V-Você deve estar brincando! Deve ser um engano! Vamos lá Miraak! Deve ter alguma cura, não é? — questionou o menino Crossy, em puro desespero.

O doutor se manteve em silêncio, em um doloroso intervalo. Os dois se encararam e Miraak abraçou o garoto.

— M-Me perdoe pivete… mas não tem cura, ninguém jamais sobreviveu ao miasma.

As palavras de Miraak pesavam como pedras em sua garganta, mesmo como um médico um tanto quanto frio dar esse tipo de notícia doía mais do que tudo.

Os dois passaram um tempo aceitando e digerindo a informação, o diagnóstico era claro e irrefutável quanto mais o tempo passava. Miraak se levantou e decidiu informar a família.

Ao sair da sala Maia correu desespero até o mesmo, ela tinha esperança de uma simples doença, algo curável, porém, quando viu a face do doutor ela soube, bem no fundo da sua alma, que algo muito ruim tinha acontecido.

Paul correu até ela para dar suporte, ainda segurando as suas lágrimas.

— V-Vamos doutor! Me diga logo algo! — gritou Maia.

— …

— Devido aos exames usando magia, e as circunstâncias dos sintomas…

Paul perdeu sua postura e interrompeu o médico com um grito:

— APENAS FALE LOGO MIRAAK! NÃO QUEREMOS SOFRER NEM MAIS UM SEGUNDO, O QUE TIVER QUE FALAR FALE AGORA!

— …

— Crossy não sobreviverá até o amanhecer.

As palavras do médico foram como flechadas nos corações dos pais. Maia desabou aos choros e gritos, todos os enfermeiros vieram ao socorro, porém perceberam logo a situação e tentaram a acalmar.

— POR QUE MIRAAK!? POR QUE FIZERAM ISSO COM ELE? ELE NÃO MERECE ISSO!

Paul finalmente desmoronou, toda a sua frustração e tristeza vieram de uma vez, ele sentiu vontade de gritar até sua garganta rasgar. Aquele que mais tentou ser pilar, no final caiu, suas lágrimas eram cheias de tristeza e ódio, além de culpa, em sua mente ele reviveu o passado curto e feliz do seu filho.

—  O que… o que ele tem doutor? — perguntou Paul, com suas últimas forças, chorando em silêncio, sofrendo eternamente por dentro.

— Miasma, não tenho dúvidas… Você sabe Paul… você sabe como eu queria estar errado!

Um soco foi desferido na parede.

— MAS QUE DROGA! POR QUE!? POR QUE ELE…

Paul caiu ajoelhado, Maia se recuperou das lágrimas e andou até ele, ainda em profunda tristeza.

— T-Tá tudo bem Paul, temos que ver ele! Agora não é hora pra isso…

Ela abraçou seu marido com toda a força que pôde, porém não pode alcançar o coração de Paul, que sem força disse:

— E-Eu não consigo... Não consigo ver ele assim!



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