Volume 1
Capítulo 14: Espírito Animal
Olka tentava se manter firme perante a onda de energia absurda, seu instinto gritava para ele fugir, porém, o guerreiro o ignorou como se fosse nada.
Mesmo com a onda de vento o abalando, ele ergueu seus braços e desferiu um golpe em direção do garoto. Toda a névoa foi dissecada, como um golpe de chicote.
A aura de Crossy continuava densa, repleta de energia escura e amaldiçoada.
— Que saco, moleque! Não sei dizer se você tem uma benção ou uma maldição! — resmungou Olka, enquanto colocava suas mãos sobre a testa de Crossy.
Quanto mais o regente tentava equilibrar a alma do garoto, mas a energia se tornava instável. O corpo do classe F estava repleto de manchas roxas, como se estivesse apodrecendo conforme expelisse miasma.
Que porra é essa!? Esse moleque tem energia espiritual infinita? O corpo dele vai virar pó se ele não parar! O que eu faço!?
Nesse ponto, toda a floresta sentia uma sensação de temor obscura, como se algo estivesse prestes a mudar. Todos os animais que estavam dormindo acordaram em total alerta, os amigos de Crossy não podiam parar de sentir que estavam sendo seguidos e observados.
Tudo bem… eu nunca gostei de fazer essa merda, mas… não tem jeito!
— Feitiço Divino: Selo Rengoku! — Encantou Olka.
Um círculo mágico gigante e brilhante surgiu no chão com Crossy no centro. Era vermelho e reluzente como fogo. Em um instante um calor aconchegante acolheu os ombros do garoto, até que enormes mãos de lava surgiram das extremidades do feitiço e seguraram o menino como correntes.
As mãos de lava não o feriam, mas deterioravam sua energia espiritual, praticamente a absorvendo toda pra si, sugando como uma esponja;
— Cara… eu só usei isso contra bestas míticas até agora, um moleque como você precisando de um selo desses…
Em alguns segundos as mãos de lava se descolaram do garoto, que caiu no chão desmaiado. O círculo do feitiço foi encolhendo, até que uma pequena mão entregou uma esfera com a energia espiritual de Crossy para Olka.
— Quem diria que você tem um limite! Devia me agradecer por isso quando puder, moleque! Seu corpo explodiria caso você liberasse isso sem querer haha!
O regente olhou para a esfera. Ela tinha algumas escrituras e símbolos que continham a energia circulando, evitando ela de estourar o selo e escapar, tinha uma cor alaranjada e era relativamente quente.
Segurou o desmaiado e o levou para o acampamento. Leo e Michiko estavam arrepiados, suando e com os olhos arregalados, quase atacaram Olka quando o viram surgir dos arbustos.
— Credo, moleques! O que aconteceu com vocês!?
— V-Você não sentiu essa energia? — perguntou Leo, em choque.
— Achamos que íamos ser atacados a qualquer momento! — afirmou Michiko.
O regente suspirou e entendeu o problema, largou Crossy em uma cabana como se fosse um saco de lixo, sentou perto da fogueira que Michiko acendeu e começou a analisar o mapa.
— Crossy está bem? O que aconteceu!? — questionou Leo.
— Espera ele acordar e descobre.
— Por que você não nos conta!? — disse Michiko.
— Porque eu vou dormir, quando amanhecer me pergunta de novo, boa noite.
Sem nem hesitar Olka se deitou e começou a roncar em alguns segundos, mesmo com os gritos de insatisfação dos novatos.
— ACORDA SEU VELHO DESGRAÇADO! — berrou Leo, enquanto praticamente chutava o regente.
Mesmo tentando acordar o chefe eles não conseguiram, tinha o sono pesado como uma pedra. Então os dois decidiram cuidar de Crossy.
O garoto tinha rasgos pela roupa toda, embora parecesse bem. Michiko o cobriu com cuidado e desejou uma boa noite, enquanto Leo se preparava para dormir.
— Bom… acho que não tenho escolha a não ser ficar de guarda primeiro! — disse Michiko para Leo.
— Desculpe Michiko, queria fazer isso, mas estou morrendo de sono.
— Sem problemas!
A noite parecia silenciosa, a garota admirava o mini acampamento que ela construiu com Leo em apenas um dia, tudo parecia organizado e extremamente divertido.
— Michiko — sussurou Leo — O que você… acha de Crossy?
— Como assim? Em qual sentido?
Leo suspirou e pensou:
Cacete… humanos são tão burros.
— Quero dizer, você pretende acasalar com ele?
— O QUÊ!? QUE TIPO DE PERGUNTA É ESTA!?
O meio fera se levantou e se sentou perto da garota, ainda em choque.
— Eu já vi a forma como você olha pra ele e vice-versa, é simples, entende?
— Não tem nada de simples nisso! Olha… eu…
Antes que pudesse argumentar, Michiko viu a silhueta de Crossy, que levantou confuso.
— O que aconteceu? — perguntou o garoto.
— Oh! Eu e Michiko estávamos falando sobre…
— NADA! NÃO ACONTECEU NADA!
Mesmo gritando, a garota não conseguiu incomodar o regente sonolento nem um pouco, que apenas se virou e continuou roncando.
Crossy se sentou com seus amigos, observando as árvores e a beleza das estrelas, que brilhavam mais do que nunca.
— Será que a gente vai conseguir vencer esse Licht? — questionou Michiko, trocando de assunto.
— É só quebrar ele na porrada, não é? — argumentou Leo.
— Eu…
Michiko e Leo olharam para Crossy, o garoto ficou em choque do nada, arrepiado, tremendo.
— O que foi Crossy?
— Vocês não sentiram isso!?
Em um instante ele se levantou e correu em direção a árvore que estava na frente deles, os amigos o seguiram desesperadamente.
Essa sensação… É totalmente diferente de antes! Tem algo aqui…
Parou em um instante e olhou para os galhos da árvore, que balançavam bruscamente, como se algo muito pesado estivesse pulando em cima deles rapidamente.
Michiko e Leo ficaram confusos, não existia nada forçando o galho, ele parecia se mexer sozinho, porém, Crossy conseguiu ver um espírito incomum.
Tinha por volta de 1 metro e 60 de altura, repleto de pelos vermelho-escuro, braços longos e mãos no lugar dos pés. Sua forma lembrava um macaco, quando Crossy o encontrou ele sorriu para o garoto, enquanto se balançava no galho.
Sem hesitar o espírito pousou no chão com uma grande cambalhota, agora tinha um olhar desafiante para o garoto, embora ainda mantivesse o sorriso brincalhão.
— Quem é você, espírito?!
O ser se tornou um vulto em um piscar de olhos, como se nunca tivesse existido, até que reapareceu no ombro de Crossy, sem que o garoto sequer notasse. O espírito o observou de perto, seu rosto e sua feição de surpresa.
Quando o garoto notou, tentou jogar o espírito pra longe, porém seus golpes o atravessaram.
— Você é um idiota! Hu-ha! — berrou o espírito.
— Sai do meu rosto! Seu espírito desgraçado! — disse Crossy, enquanto tentava estapear o ser para longe de si.
Os amigos de Crossy o observavam com confusão, sabiam ter algo ali, porém não conseguiam enxergar e muito menos entender.
— Hahaha! Você é muito engraçado humano! — falou o espírito, enquanto arranhava o rosto do garoto.
Crossy se irritou e perdeu a cabeça, preparando um soco repleto de fúria.
— CHEGA!
Dessa vez o murro acertou o espírito em cheio, que voou cerca de dez metros de distância, atravessando arbustos e caindo de forma segura perto de uma pedra.
O que foi isso!? Esse soco… parecia diferente.
— Boa, finalmente você tá aprendendo — falou uma voz grossa atrás do garoto.
Crossy se virou rapidamente e notou Olka, coçando os olhos, repleto de sono, porém com um sorriso orgulhoso.
— Tente exorcizá-lo, vai que dá certo!
— Espera aí! Será que vocês poderiam explicar que porra tá acontecendo!? — questionou Leo.
— Calma aí, moleque! Crossy, controle essa energia espiritual! Faça ela fluir pelo seu corpo como ar, mas, ao mesmo tempo como sangue… é difícil explicar, mas é isso aí!
Teria ajudado mais se você tivesse ficado calado…
— Ei! Seu fodido! Quero ver arranhar o meu rosto de novo! — gritou o garoto, para o espírito brincalhão.
O ser parecia irritado, seu sorriso agora era inexistente, se movia de forma estressada, coçando seus braços e rangendo os dentes.
Novamente desapareceu em um vulto e reapareceu cerca de dois metros de distância de Crossy, pulando em direção ao pescoço do garoto com a mandíbula aberta e garras preparadas.
O garoto desviou para o lado, preparando mais um soco, repleto de uma energia estranha que até mesmo ele desconhecia, atingiu o ser com um jab bem-dado.
A criatura absorveu o choque do golpe e foi levantada para cima, seus olhos vibrantes se tornaram brancos e reluzentes, até que ela se desfez em pura energia, causando um clarão.
Crossy caiu no chão, seus punhos doíam como se tivessem esmagados. Leo e Michiko correram para socorrê-lo, enquanto Olka continuava analisando de longe.
— É… você tem talento, mas seu controle de energia espiritual é péssimo! Fazendo toda essa energia circular pelos seus punhos é praticamente pedir para eles explodirem! Seu idiota!
Depois de alguns minutos agonizando de dor, Crossy conseguiu manter os pensamentos em ordem e perguntou:
— O que era aquilo, Olka?
— Provavelmente um espírito vingativo animal, às vezes eles têm uma morte dolorosa e estressante e então seus espíritos, repletos de ódio, voltam em cadáveres da sua espécie. Geralmente quando um desses surgem é culpa dos humanos.
— Então… eu matei um animal inocente?
— Não, definitivamente não. Você o libertou, era a única forma.
— Mas… ele parecia tão feliz!
— Garoto, espíritos não pertencem a esse mundo, exorcizá-los é a forma deles finalmente poderem descansar, você nasceu com uma energia imensa, então deve entender isso logo — disse Olka, se levantando.
Após reclamar com seus amigos, Crossy dormiu irritado, pensando no que tinha acontecido, de certa forma se sentiu mal por derrotar o espírito.
Lembrou da sua antiga carreira de padre e como ela o irritava. Diversas vezes fingiu exorcismos com atores pagos para aumentar a fé dos fiéis, nunca viu um caso sequer de possessão que fosse real.
Espíritos… Não parei muito pra pensar sobre isso, mas é estranho… A morte agora não parece nada.
Crossy demorou para dormir, tinha uma sensação horrível de ser observado constantemente. Não conseguia parar de pensar nos espíritos que podiam estar atrás dele durante a noite, pensamento que mesmo irreal o assustava.
A noite foi tranquila para o resto do grupo. Ao amanhecer eles continuaram seu caminho para cemitério da missão.
Caminharam a tarde toda pela floresta, em algum ponto do caminho Olka se confundiu e eles foram para a direção errada, perdendo três horas apenas para se manter no caminho correto de novo.
O sol já tinha sumido quando eles chegaram, mesmo com a placa quebrada sabiam que o local estava certo, apenas parecia um cemitério, trazia uma sensação horripilante e nojenta ao pisar na grama, como se os cadáveres te olhassem pelo solo.
Uma ventania intensa dominava o local, como se o vento estivesse soprando qualquer vida para fora, junto com a sensação de morte o lugar parecia inabitável para qualquer ser vivo, mas perfeito para um morto-vivo.
— É tão estranho andar por aqui, sabe? Eu deveria ter trazido flores — disse Michiko, enquanto olhava uma lápide escrito “ Pop Sarley”.
— Ainda não consigo acreditar que humanos enterrem os mortos no chão! É simplesmente bizarro — resmungou Leo.
— Ah é? E o que seu povo faz? — questionou Olka.
— Uma festa é claro! Dedicamos a alma do falecido aos deuses e a carne dele aos nossos ancestrais, depois jogamos seu corpo no rio, para alimentar o ciclo da vida.
— Vocês jogam o corpo em um rio e depois os humanos são idiotas? — argumentou Crossy, com uma voz trêmula.
Todos perceberam o tom de voz estranho do garoto, seu corpo tremia, como se estivesse em um inverno rigoroso, olhava repetidamente para todos os lados, como se estivesse procurando algo.
— Ei, moleque! Você está bem?
— Achei — disse o garoto, apontando para uma lápide em especial.
— Ele está se escondendo ali.
— “Ele” quem? — perguntou Michiko.
— O Licht! Posso sentir, de alguma forma posso sentir!
O garoto liberou um pouco da sua energia espiritual, de forma desastrada, porém menos descontrolada que ontem. A energia se espalhou pelo lugar como um cheiro, só bastaram alguns segundos para algo acontecer.
O chão tremeu e o cemitério pareceu mais vivo do que nunca. A lápide se rachou e dela emergiu um braço esquelético, partindo a terra e levantando um corpo morto e podre, que utilizava um manto roxo e dourado, com olhos que brilhavam a cor do ouro e joias por todos os ossos.
— Quem… quem ousa invadir o meu reino!? — gritou o Licht.
Todas as lápides do cemitério se racharam, corpos emergiram das covas, alguns ainda em decomposição. Cercaram o grupo antes mesmo que percebessem.
— A batalha começou.