Volume 3
Capítulo 3: Formação do Grupo Shiroi Gamen ④
Chegamos ao hall do cinema, mas era preciso escolher o filme que veríamos. Nos entreolhamos sem saber como prosseguir.
— Uma coisa é certa: temos que ver algo que todos queiram ver!
— Mas isso é algo difícil, todos temos gostos diferentes... — expressou Teru, vendo o rosto desanimado de Kuroi.
— Acho que é o Shiroyama que deve decidir isso... — comentou Yonagi, chamando a atenção de todos. — Afinal, é ele que vai arcar com tudo, não é mesmo?
Nisso, toda a atenção se voltou para mim. Suspirei e fitei as opções no catálogo. Em cinco minutos me decidi.
— Vamos ver esse, então... — apontei para uma das opções. — Pelo que me lembro da sinopse, é uma história de investigação histórica envolvendo um assassinato. Talvez seja interessante.
Ao terminar de falar, todos ficaram surpresos.
— Isso é perfeito! — disse Himegi.
— Eu gostei! — concordou Kuroi.
— Parece legal! — incluiu Teru.
— Até alguém como você consegue escolher algo bom... — expressou Yonagi, com um sorriso discreto.
— Entendi... — cocei a nuca.
Paguei os ingressos e nos apressamos para entrar na sessão sem filas. Por conta disso, vimos nossos lugares às pressas. Não decidimos a ordem em que ficaríamos, tudo foi decidido em segundos.
— Ainda bem que conseguimos chegar durantes os anúncios! — comentou Teru, aliviado.
— Perder o começo de um filme de cinema sempre dá azar! — disse Kuroi.
— Demos sorte, isso que importa! — concluiu Himegi, ao lado dela.
— ...
Eu e Yonagi não comentamos nada. Ficamos lado a lado e uma súbita tensão surgiu dentro de mim. Tentei me esgueirar para ver se alguém estaria disposto a trocar de lugar, mas todos já prestavam atenção na imensa tela em nossa frente.
Me ajeitei na cadeira e coloquei meu lanche no lado esquerdo, evitando qualquer contato com Yonagi. Não compreendi a razão de estar tão nervoso, mas ruminei todo o remorso residido no coração e mente. À medida que o filme seguiu seu curso, refleti comigo mesmo que as ações mais drásticas mexem com qualquer um, até com quem não se importa com quem se encontra ao seu redor.
Por conta disso, imaginei que Yonagi tentaria se afastar de mim o quanto pudesse. Mas não foi isso o que aconteceu.
Ela permaneceu ao meu lado sem emitir nenhum sentimento, nem mesmo repulsa. Será que ela deixou de se importar com o assunto? Era possível que já tenha me perdoado pelas palavras que lhe disse? Deveria mesmo iludir meu coração desta forma?
Foi estranho observá-la tão de perto, já que sempre a vi como uma figura tão distante. Mas uma coisa ao ver seu rosto me deixou aliviado de que, mesmo que não cogite que devo me acalmar, posso me confortar de que terei esta chance em algum momento.
Yonagi é uma garota difícil de entender, mas sua incompreensão não veio de ilusões, máscaras feitas de mentiras ou suposições e sim de experiências das quais ela mesma vivenciou, assim como eu.
Temos nossas diferenças, mas nossos semblantes não se alteram tão facilmente. Na verdade, nossas convicções são nossa maior força e resistência.
Ao compreender isto, meu coração parou de apertar. E meu foco se voltou totalmente ao filme em exibição.
***
A sessão terminou e todos nós caminhamos à saída do cinema. Juntos na multidão, os calouros comentavam sobre as cenas mais impactantes.
— Não acredito que até o Shiroyama chorou na parte da morte da mulher do assassino! — comentou Kuroi, animada.
— Não sabia que ele é capaz de chorar, será um sinal de evolução? — expressou Yonagi, coçando seu queixo.
— Ei, vocês podem parar com isso? Essa foi uma reação normal, não?!
— Shiro está finalmente aprendendo a ser alguém normal. Estou tão orgulhosa... — Himegi enxugava uma lágrima do rosto, rindo.
Porque ela agiu como se fosse minha mãe?
Teru, em vez de estar junto a elas me debochando, tremia tanto quanto um cachorro na hora de ir ao veterinário fazer tosa.
— Eu... senti aqueles tiros virem em cima de mim! Foi assustador! Filmes em 3D são assustadores!
— Ah, isso foi eu jogando pipoca em você... — revelou Kuroi, com um sorriso travesso.
Ela não tinha compaixão daquela pobre alma assustada? Aliás, quem ainda nos dias de hoje se assusta com os efeitos de cinema 3D?
Quando saímos do local, visualizei aquele céu escuro sem nuvens. Naquele instante, Yonagi se despedia dos outros.
— Eu vim com o meu irmão, por isso não precisam se preocupar. Ele vai me levar de volta.
— Irmão? Você tem um irmão?! — exclamou Kuroi. — Mais novo ou mais velho?!
Yonagi demorou alguns segundos para responder e, nessa fração de segundo, seu rosto se contorceu.
— Ele... é meu irmão mais velho.
Ela franziu o rosto. Parece que toda aquela animação pós-filme se esgotou no mesmo instante em que se tensionou.
— Podemos esperar aqui até que ele chegue... — sugeriu Himegi, oferecendo sua companhia.
— Não precisa. Ele já está vindo... — Yonagi segurou o braço, olhando para os lados. — Vocês devem ir. Já está ficando tarde.
— Mas... — Himegi indagou, mas segurei seu ombro suavemente.
— Parece que é melhor irmos logo ao ponto de ônibus antes que fique cheio.
— Shiro...
— Pelo menos certifique-se de nos alcançar lá, Himegi. Vamos lá, vocês dois... — virei minhas costas para as duas e andei até o ponto de ônibus com as mãos no bolso. Teru e Kuroi me seguiram.
Andei alguns passos adiante e erguei minha mão direita para Yonagi.
— ...afinal, irmãos podem ser inconvenientes quando não se entendem. Principalmente os mais velhos.
Não demorou muito para Himegi nos alcançar. Ela me olhou confusa.
— Não devíamos tê-la deixado sozinha ali. E que comentário foi aquele?
— Hum? Nada demais. É só o que eu quis dizer mesmo.
— Você também tem irmãos, Shiroyama? — perguntou Kuroi.
Me esqueci completamente que não lhes contei sobre minha família. Na verdade, não disse nada sobre minha vida pessoal. Acho que era aqueles momentos em que o passado sombrio de tal personagem era revelado aos leitores...
— Tenho um irmão da mesma idade, Takashi — disse, indiferente. — Não gostamos sempre das mesmas coisas, mas nos damos bem...
— Da mesma idade? Então, quer dizer...
— Sim, somos gêmeos... — continuei indiferente.
Os três vibraram ao meu redor. Parece que ter um irmão gêmeo foi uma novidade realmente chocante.
— Seu irmão é igual a você?! É tão ranzinza quanto?!
— Essa foi a dúvida em questão?! E por que já me consideram o pior?!
Decidi não querer ouvir aquela resposta, então...
— Como já disse, não temos muitos gostos em comum, mas ele tem muito carisma. Ao menos, é mais animador do que eu.
Ouvi uma série de deboches deles sobre aquilo, mas decidi ignorá-los.
— Ei, não faça essa cara de emburrado! — Himegi me deu tapinhas, tentando me consolar. — Além dele, você tem mais algum irmão?
— ...
Por mais que aquele ponto de ônibus estivesse cheio de pessoas conversando alto, tudo ficou em silêncio para mim. Coloquei novamente as mãos no bolso e senti que meu semblante se alterou. Respirei bem fundo e permaneci naquele silêncio sufocante.
— Shiro... o que houve? — murmurou Himegi, com o rosto aflito. — Por que está assim?
Ah, nada bom.... não conseguia enxergar meu rosto naquele momento. Não quis enxergar meu rosto nesse momento. Eu sei que tipo de expressão fiz, mesmo debaixo da máscara. Também fiquei ciente que foi errado demonstrar aquele tipo de sentimento para aqueles que nada sabiam. Não fizeram nada de errado.... Por isso, me mantive em silêncio. Não poderia abrir minha boca naquele instante, sabia disso. Meu coração bateu tão rápido pela onda de fúria que contive a todo instante a vontade de esbravejar. Minhas mãos agarraram os bolsos da calça com tanta força que achei que iria rasgá-las em algum momento.
Ah, não. Ah, não.... nada bom, nada bom.
Reuni forças pra conter um longo suspiro denso, nada feito. Nesse momento, percebi o quanto tremia de raiva.
Mas o suspiro esvaiu grande parte daquela ira, ao menos.
Durante todo o momento, os três ficaram em silêncio ao meu lado e, por tanto, decidi que foi preciso lhes dar uma resposta.
Meus olhos não os enxergaram, não me atrevi a olhá-los no estado em combustão. Não tinham porque passar por isso. Decidi mirar minha concentração na rua movimentada. Ao reunir coragem, falei brevemente:
— Uma irmã. Não a vejo faz muito tempo. Desculpem... não sei o que devo falar dela.
O ônibus chegou, mas meus pés não se moviam. Os três me fitavam atônitos, até que Himegi disse:
— Vocês podem ir sozinhos, certo? Eu e ele vamos de metrô.
Fiquei surpreso com a resposta dela, mas nada consegui dizer. Os dois calouros concordaram com a cabeça e subiram no ônibus. Logo, só restou nós dois ali.
— Himegi, eu...
— Vamos.
Ela pegou em meu braço e me conduziu até a estação de metrô mais próxima. Pegamos nossas passagens e ficamos à espera do trem chegar.
Sentamos um ao lado do outro em um dos bancos da plataforma, em silêncio. Minha cabeça não parou de doer, por muitas razões.
Doía por ter pensado em minha irmã. Doía pela raiva súbita que desencadeei instantaneamente. Doía pelas lembranças antigas que revivi. Doía pela impressão ruim que causei neles. Doía em pensar a fundo sobre minha família.
De repente, senti algo encostando em meu ombro, e foi Himegi apoiando sua cabeça nele. Em seu rosto, só existiu ternura.
— Shiro, desculpa pelo o que te causamos... — Ela entoou.
Naquele instante, lembrei-me de quando Himegi ficou enfurecida comigo ao ter dito coisas que não a agradaram.
— ...parece que também sabe ficar muito bravo, né... — murmurou a garota.
Aquilo foi um grave erro que cometi, mais um. Minhas mãos ardiam nas juntas por ter agarrado os bolsos com tremenda força e as pernas não paravam de tremer, mesmo sendo quase verão.
Eu e Takashi prometemos que não falaríamos de nossa irmã, justamente para não reviver nossas memórias do passado. Esta foi nossa promessa.
Era uma das razões da qual minha autoestima foi quebrada. Estritamente um dos laços que a sociedade esculpiu e depois se rompeu.
Por culpa dela, e de outra pessoa.
— Só consigo dizer “desculpe” ... — murmurei, ainda com remorso em meu peito. Aquele sentimento fervia intensamente na cabeça.
— Não precisa fazer nenhuma cerimônia sobre o que aconteceu... — Himegi balançou a cabeça. — Na verdade, eu preciso te agradecer.
Apenas a fitei em silêncio.
— Não sei como, mas há coisas que você percebe mais rápido do que qualquer um. Sinto que Yonagi deve ter percebido isso também, por isso acho que os dois sejam muito parecidos.
— Mesmo?
— Sim. São teimosos, dois cabeças-duras... e também sensíveis, mais do que qualquer um. Não conseguem colocar o que sentem em palavras, mas se manifestam em suas ações. Sinto que não consigo te acompanhar, muito menos ela.
— Não acho que você precise se preocupar com algo tão trivial quanto “acompanhar tal pessoa”. Você é apenas você, e isso é tudo o que é necessário.
— O que é “algo necessário”? Será que é algo que todos nós temos guardado ou temos que estar procurando constantemente?
— ...
— De todo jeito, isso parece ser um sentimento que você guardou por muito tempo. Não posso julgar nada, mas também não posso ignorar isso.
Himegi olhou para mim com mais ternura do que já a vi antes.
— Você viu através dos olhos duvidosos dela, não é? Mas você também passou por muita coisa, não é mesmo?
— Eu...
— Não sabia o que poderia fazer pra ajudar os dois se entenderem, mas foi você que me ajudou hoje. Cumpriu sua promessa, riu e chorou com todo mundo. Entenda que isso tudo fez mais sentido agora do que jamais poderia pensar por conta própria.
Cerrei meus dentes. Senti o peso no peito crescer por tais palavras realçarem tudo que fizemos hoje. Compreendi o significado proferido, mas sou capaz de corresponde-los? Essa opção existe para mim?
Afinal, me aproximei de todos de uma forma que nunca aconteceu antes. E foi isso que Himegi quis que tivesse ocorrido desde o início. Ao lidar com as qualidades de cada um à sua maneira, rimos e nos divertimos sem precisar fingir. A palavra — incômodo — não surgiu na cabeça durante nenhum momento naquele dia.
— Por isso... eu te perdoo... — expressou a garota. — Pois agora entendo que o jeito de você agir e pensar foi causado por alguém. Então... eu te perdoo. E espero que possamos nos ajudar a evitar que algo do tipo ocorra novamente. Pelo o que aconteceu antes e agora.
Não consegui sequer formular o que dizer. Meus olhos apenas fitaram aquela figura conhecida ao meu lado dizendo que me perdoava, que minhas ações egoístas até então foram compreendidas e aceitas.
Ela tirou a cabeça do meu ombro e fitou os trilhos vazios.
— Ei, quando irá nos mostrar o seu rosto por trás da máscara?
Aquela pergunta me deixou surpreso. Não esperei por aquilo.
— Ou... por acaso você já a mostrou para alguém?
— ...
— Então, foi isso que aconteceu...
Me mantive em silêncio. Não quis comentar que Yonagi já viu meu rosto antes, mesmo que se tornou óbvio.
Porém, senti que me manter oculto ficou cada vez mais difícil com o passar do tempo. Mesmo não sendo pressionado a todo momento a respeito, considerei fielmente que seria ignorado alguma hora e todos se acostumariam... me enganei completamente.
Em relação a isso, tive que dar uma resposta a ela.
— Talvez... quando tudo isso se resolver, eu mostre meu rosto aos outros...
O trem chegou na estação pouco tempo depois, Himegi se levantou do banco como se flutuasse.
— Fala sério. Você dá muito trabalho, sabia? — Ela me afixou mais uma vez e acenou com sua mão. — Até amanhã, Shiroyama.
Acenei de volta, observando-a sair com o trem, desaparecendo noite adiante. Pensei entrar em detalhes sobre a conversa que ela teve com Yonagi antes sobre mim, mas... cogitei que por ter sido um assunto entre garotas, o melhor foi não me envolver mais em algo particular.
Me veio à mente que esses erros cometidos até ali serão considerados piadas num futuro próximo, minhas preocupações serão tão pequenas quanto uma formiga em seu habitat.
Mas, quando um erro é causado por outra pessoa e seu arrependimento se limita apenas unilateralmente, parece doer muito mais.
E ter esse tipo de sofrimento é muito pior que cometer um mero deslize. Sofrer por um erro cometido de alguém que não se arrepende é como ter seu coração esfaqueado inúmeras vezes, curado tantas vezes mais em intervalos apenas para ser atacado novamente.
Foi aquele pensamento que perdurou em mim durante toda a minha viagem até em casa. A densa reflexão sufocou minha mente junto a angústia que restringiu meus movimentos. O cobertor pareceu muito mais pesado do que de costume... exausto, apenas me entreguei naquela escuridão ao adormecer.
E mesmo assim, a vida precisa continuar.
Na manhã seguinte, domingo, fui ao encontro de Chinatsu para saber de suas condições e trabalhei arduamente no desenho para o concurso de artes.