Volume 1

Capítulo 5: A Etiqueta dos Nobres

Todos os alunos, fossem eles homens ou mulheres, da turma avançada ou da normal, tinham que se registra na guilda de aventureiros e completar uma dungeon. Esse costume existia para fazer com que os nobres experimentassem um pouco do sofrimento que seus ancestrais tiveram que passar. E para aqueles que vinham de uma casa mais pobre, essa era a melhor forma de conseguir uma graninha extra.

Era comum que os estudantes trabalhassem como aventureiros. Nos finais de semana e nos feriados, muitos dos garotos tinham que sair explorando para ganhar o máximo de dinheiro possível. Pelo visto, meu pai e o Nicks tinham conseguido uma boa quantia fazendo aquilo. No entanto, quando pensei que tudo foi gasto para pagar coisas, como cerimônias do chá, para as meninas, a vontade de chorar foi grande.

Eu tinha bastante dinheiro guardado, mas, mesmo assim, ainda tinha muita vontade de entrar nas dungeons. Explorá-las era uma das únicas partes legais daquele otomege. Por isso pensei que seria divertido...

Estávamos no meio de maio, a época do ano em que, a maioria dos estudantes do primeiro ano, iriam forma uma equipe para explorar a famosa dungeon da capital real.

Quando olhei ao meu redor, senti que não deveria estar ali.

— Não acredito que o Daniel e o Raymond me abandonaram quando eu mais precisava — sussurrei. — Bem, faria o mesmo se estivesse na pele deles. Mas ainda fico triste!

Olivia estava do meu lado, nós dois usávamos um equipamento típico de aventureiros, armadura de couro por cima de uma roupa grossa e partes de ferro nos braços, pernas e peito para proteção extra. Tinha aquele “ar” de fantasia nele e, sendo sincero, até que era estiloso. Como o esperado de um jogo otome.

Contudo, havia um grande número de estudantes que decidiu esquecer da praticidade e focar só na aparência, fiquei me perguntando se aquelas armaduras iriam protegê-los de alguma coisa. E quanto a mim? Claro que me preocupei mais com a segurança. Se me comparassem a eles eu pareceria um mendigo.

Olivia olhou para mim se sentindo culpada. — D-desculpa. A Angelica ficou insistindo para que você viesse junto.

Eu sabia que ficar reclamando não iria mudar nada. O problema era que, quando finalmente tive a chance de explorar uma dungeon, fui forcado a me juntar a um grupo cheio de grandes nobres.

Um menino alto, esguio, com cabelos e olhos azul-claro estava lá também. A armadura dele era o exemplo perfeito de algo que só focava na aparência, eu não fazia ideia de como aquilo deveria protegê-lo. Mais conhecido como fundo de garraf... quero dizer, o personagem sério que usava óculos — Chris Fia Arclight.

A única arma que usava era a espada pendurada em sua cintura. Um espadachim especializado em lutar nas linhas de frente — um Mestre da Espada, de acordo com a termologia do jogo. Ele vinha de uma família da corte real e era o herdeiro do Santo da Espada, um conde que chegou ao topo graças a sua habilidade de esgrima.

No jogo, Chris tinham uma certa rivalidade com outro personagem namorável, um delinquente com um cabelo vermelho bagunçado. Um cara mais bruto que gostava de dizer que, ao invés de ficar treinando, era melhor conseguir experiência em um campo de batalha real.

Era o garoto bronzeado que estava com as mangas dobradas e segurava uma lança em seu ombro. Antes de se matricular, ele já tinha explorado diversas dungeons, derrotando dezenas de monstros no processo. Um ótimo lutador, e, mesmo agisse daquela forma, ainda era o filhinho mimado de uma família de condes bem rica, seu nome era Greg Fou Seberg.

Se não me falha a memória, tinha um evento no meio do jogo que servia para melhorar o relacionamento entre os dois. Não era algo necessário para zerar, contudo, as coisas ficariam bem mais fáceis se o fizesse. Então tive que completar aquele evento BL1, que fazia as fujoshis ficarem imaginando cenas que não quero detalhar, muitas e muitas vezes.

Havia 5 personagens namoráveis que a protagonista poderia capturar, usei a cor principal de cada um para poder diferenciá-los enquanto jogava: preto para o príncipe herdeiro, Julius Rapha Holfort, verde para seu amigo de infância, Jilk Fia Marmoria, roxo para narcisista com talento para magica, Brad Fou Field, azul para o Mestre da Espada, Chris Fia Arclight, e vermelho para o rude amante do campo de batalha, Greg Fou Seberg.

Devo comentar que o sobrenome do meio representava o status do nobre no Reino de Holfault: Rapha era usado pela realeza, Fia pela corte real e Fou para senhores feudais.

Mesmo cercados por seguidores, qualquer um poderia ver que aqueles 5 eram os mais fortes.

Na verdade, havia mais um personagem que deveria estar lá, um jovem elfo chamado Kyle, o escravo que a protagonista comprou — seu servente pessoal. Não consegui encontrá-lo em lugar nenhum. No jogo ele cuidava das necessidades da protagonista, dava suporte em batalhas e mostrava o progresso do relacionamento com os alvos. As jogadora deviam vê-lo como um irmãozinho fofo, mas, para mim, era só a empregada da Olivia.

Muito bem, o você deve estar se perguntando o porquê de nós 2 sermos estarmos naquele grupo. O motivo era simples, a gente acabou chamando muita atenção.

Olivia era a estudante bolsista, a primeira da história, e eu era um aventureiro com muitas conquistas. A academia queria me usar como escolta para o Príncipe Julius. Os nobres consideravam deselegante — além de ser um abuso de poder — levar cavaleiros ou soldados do próprio território para a dungeon. Entretanto, havia um certo estudante da mesma idade bem conhecido. A academia queria alguém para evitar que o futuro rei fosse ferido, e, para ajudar, parece que a Angelica foi pessoalmente me recomendar. Então sobrou para mim.

Mas... iriámos explorar apenas os andares para iniciantes. Preparar tantos guardas era exagero. O Príncipe Julius, que devia estar pensado o mesmo, parecia aborrecido com aquilo. Lembro de uma cena no jogo, onde ele fala para a protagonista que odiava quando esse tipo de coisa acontecia.

Claro, a Angelica também estava no nosso grupo. O costume — e nossas notas — forcava todos a entrar na dungeon, independente do sexo. Essa era uma das poucas ocasiões onde a academia não dava tratamento preferencial para as mulheres.

Havia 30 pessoas conosco. Era gente demais, porém, como o objetivo daquele dia era só dar um passeio, não deveria ter problemas.

— Esses caras pedem para eu vir aqui, mas não falam nem um “oi” quando chego.

Olivia parecia incomodada com o que falei. — Será que a gente devia ir cumprimentar eles?

— Nem perca seu tempo. Esses nobres vão ficar irritados se interrompermos a conversa deles. É melhor só abaixar a cabeça e seguir o fluxo.

Para falar a verdade, não fiquei muito incomodado com aquilo, eu estava mais preocupado em saber qual dos 5 a protagonista escolheria no final, contudo, era melhor continuar observando a distância e não me envolver muito.

“Já não é hora de um de vocês virem aqui e começar a cantar ela com aquele monte de frases clichês?” pensei enquanto olhava para os personagens namoráveis. Entretanto, por algum motivo, fiquei incomodado com a ideia. Porque eu deveria assistir uma mulher decente como a Olivia ficando mais próxima de um daqueles idiotas?

Bem, eu teria que aguentar ver aquilo pelo bem do futuro de todos. Não tinha como saber o que aconteceria se, no final, ela terminasse sozinha. No pior caso, esse país provavelmente seria destruído.

O professor, que estava na frente do grupo, começou a explicar: — Muito bem, agora vamos nos separar em times. Não se esqueçam que é para voltar quando chegarem no terceiro andar. Nem pensem em ir além disso.

Nos separamos em cinco times de seis, porém, todos os alunos continuaram se movendo como um grande grupo quando entraram na dungeon. O Príncipe Julius, aquele que não deveria ser ferido, teve que ficar no meio enquanto a minha equipe foi para a vanguarda.

“Bem, não tenho problema com isso.”

— Estou te dizendo, saiba o seu lugar! — O grito raivoso da Angelica ecoou pela caverna.

Todos olharam para a direção do som e viram ela encarando a Marie. Pelo visto o motivo da briga havia sido a composição dos times. O nosso professor, um novato inexperiente, não sabia o que fazer, a linhagem ducal da Angelica deve ter o deixado com muito medo para intervir.

Enquanto isso a Marie parecia um gatinho assustado se escondendo atrás do príncipe.

“Parece que temos uma menina espertinha aqui.”

— Angelica, já chega — disse Julius.

A filha do duque se virou para ele. — Sua Alteza, você irá realmente permitir o egoísmo dessa menina?

Marie continuou atrás do príncipe, seus olhos estavam olhando para o chão. Ela segurava a manga do Julius entre os dedos, tentando parecer fofa e inocente. Fiquei puto vendo aquela atuação.

— Sua Alteza, eu... eu só pensei que seria legal se ficássemos no mesmo time. Não tem problema em recusar se isso for inconveniente para você.

— Não abuse da sorte! A diferença de status entre vocês é enorme. Tenho tolerado a sua presença até agora, mas, se você continuar agindo dessa forma...

A Angelica ficava irritada com facilidade, assim como no jogo. A menina podia perder o controle em um piscar de olhos. Bem, ela era a rival da protagonista, basicamente a vilã da história. Os desenvolvedores devem ter a criado para ser uma personagem com o pavio curto que abusava do poder de sua família sem nenhum remorso.

No entanto, havia algo de errado com aquela cena...

A pessoa que o príncipe deveria proteger deveria ser a Olivia... mas, por algum motivo, ela estava ao meu lado.

— O-o que aconteceu? — perguntou Olivia, confusa. Ai sim, aquela foi uma reação fofa de verdade.

Bem, voltando ao assunto, eu só podia pensar em um motivo para a história ter saído tanto dos trilhos.

— Aquela garota, a Marie. Tem alguma coisa estranha acontecendo com ela? — perguntei.

Olivia pensou um pouco antes de responder. — B-bem, não sei se é considerado estranho, mas ela tem sofrido bastante bullying nos últimos tempos, mais do que eu sofria. E tem um boato que diz que a família dela é muito pobre, mesmo sendo viscondes.

Viscondes estão um ranque acima dos barões, contudo, assim como nós, esse alto status não representava prosperidade. As propriedades que um senhor feudal possuía, nem sempre faziam jus a sua posição. Vários viscondes já tiveram grandes territórios e muitas riquezas apenas para ter tudo roubado por impostos. Ainda assim, eles mantiveram o título mesmo não tendo a influência e renda necessária para encher seus cofres mais uma vez.

Enquanto a discussão acontecia, os nobres ao redor pareciam ficar do lado da Angelica.

— É loucura ter esse tipo de mulher se agarrando ao príncipe e bem na frente da noiva dele para piorar.

— Também viram ela fazendo isso com outros garotos, não é?

— Inacreditável.

Fiquei boquiaberto quando entendi o que estava acontecendo. “Caralho, essa menina ‘tá tentando roubar o lugar da protagonista!”

— Calados! — bradou o príncipe.

Todos ficaram em silencio no mesmo segundo.

Angelica estava chocada. — S-Sua Alteza?

De repente, Jilk, que normalmente parecia gentil e bondoso, deu um passo à frente. Quando chegou na frente do príncipe e da Marie, ele estendeu o braço, como se tentasse protegê-los da Angelica. — Por favor não incomode a Sua Alteza ainda mais.

— Incomodá-lo? — A filha do duque não conseguia acreditar no que ouviu. — Eu sou um incômodo? Tudo o que faço é pelo o bem da...

Greg não a deixou terminar de falar. Ele, ainda com a lança em cima dos ombros, franziu as sobrancelhas e retrucou: — Sua atitude, esse é o problema. Estamos na academia, não traga o relacionamento que vocês têm lá fora para cá. Ver isso me deixa muito puto.

Ironicamente, como eram herdeiros de nobres poderosos falando, ninguém podia abrir a boca.

Depois de alguns segundos de silêncio, o príncipe se virou para o professor. — Peço desculpas pela cena. Iremos nos juntar a Marie. Os outros times podem escolher que eles quiserem.

Assustado, o professor apenas balançou a cabeça diversas vezes e disse: — S-sim, Tudo bem!

Angelica ficou lá parada, sem saber o que dizer.

Eu era o único que estava olhando para a Marie. Havia sorriso sinistro no rosto dela.

***

A dungeon da capital era basicamente uma mina abandonada. Pilares e vigas de madeira suportavam os largos corredores e haviam alguns minerais se saindo das paredes da caverna. As vezes era possível ver um baú de tesouro aparecendo do nada. O professor nos informou que o motivo desse fenômeno ocorrer ainda não havia sido descoberto.

Mas eu sabia muito bem que era só parte do jogo e que era perda de tempo pensar muito sobre aquilo.

A Olivia arrancou um dos minerais que estava cravado na parede. Parecia ser ferro. O mais estranho era que aquelas coisas já saiam refinadas.

— Olha, consegui um! — disse a protagonista, com um sorriso no rosto.

Estava tão animada que acabou sujando o rosto sem perceber quando limpou o suor com a mão.

— Bom trabalho, com isso nós já devemos ter uns 100 dhias.

Dhia e dhil eram a moeda do jogo. Um dhia tinha o mesmo valor que 100 ienes do meu antigo mundo. Ouro e prata também podia usados como dinheiro, mas, como aquele mundo já tinha moedas e notas, era raro ver alguém fazendo isso.

Olivia estava observando a área.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntei.

— Não, é que... Me pergunto porque esse tipo de coisa acontece em dungeons. Baús com tesouros aparecendo do nada, minérios refinados nas paredes... É bem estranho se pararmos para pensar, não é? Parece que alguém deixou tudo pronto só para a gente encontrar.

Não é como se eu me importasse em ter alguém tentado descobrir o porquê daquelas coisas estarem ali, contudo, ficar procurando por respostas logicas não iria levá-la a lugar nenhum. Aquilo só existia por conta do cenário mal feito de um jogo otome.

— Verdade, que estranho... Ok então, hora de ir.

— E-espera um pouco! Leon, você não está nem um pouco curioso?

Soltei um suspiro e disse: — Não, nem um pouco.

Ela ficou desanimada quando viu minha falta de interesse. — Você é muito chato...

O trabalho de patrulha acabou ficando com nós dois. Bem, isso era esperado — eu era apenas um aventureiro que teve sorte e ela uma estudante bolsista. Então os outros times deixaram o trabalho mais perigoso com a gente. Porém, como resultado, acabamos nos aproximando mais um do outro.

Infelizmente, a Olivia ainda era uma plebeia, um ranque baixo demais para ocorrer um casamento entre nós. E, no futuro, quando se tornasse uma santa, aquela menina estaria muito além do meu alcance. A realidade era muito triste. Uma personalidade ótima, além de ter tudo o que eu procurava em uma parceira ideal. Se fosse uma nobre, já teria feito de tudo para poder tê-la ao meu lado.

A Olivia havia crescido em uma ilha do interior e não planejava continuar na capital depois da formatura, isso significa que ela não acharia ruim viver junto comigo no meu território.

Era realmente uma pena, se pelo menos não fosse uma plebeia, e a protagonista da história acima de tudo, eu já teria pedido a mão dela.

— Para de reclamar e acelera um pouco o... Na verdade, é melhor que você não se mexa agora. — Sinalizei para ela recuar e desembrenhei espada que estava na minha cintura. Parecia mais uma katana2 do que uma montante3. Luxion disse que, já que eu era japonês, aquilo combinava mais comigo. Ele provavelmente pensou: “Você não é japonês? Então vamos ver se consegue usar isso!” . Nunca pratriquei kendo4 na minha vida, porém, aceitei de bom grado.

Atrás de mim, a Olivia estava tremendo. — Então isso é um monstro.

5 formigas gigantes bloqueavam o nosso caminho. Tinham por volta de 80 centímetros de altura e, mesmo que não parecessem tão perigosas, aquelas poderosas mandíbulas podiam cortar carne como se fosse manteiga. Graças a seus ninhos, elas eram as “faxineiras” da dungeon; os rumores diziam que cadáveres dos aventureiros eram carregados para lá.

Ah, lutar aqui vai ser uma dor de cabeça — reclamei. — Esse corredor é muito apertado, não dá para usar o meu rifle.

Tive sorte que meu pai ficou anos me ensinado a usar uma espada para quando eu precisasse de dinheiro na academia. Ele também devia ter passado por maus bocados dentro dessas cavernas no seu tempo de estudante.

Matar essas formigas dava um pouco de trabalho. Uma pessoa normal teria dificuldade para cortar a cabeça ou o torso delas, o único ponto fraco era o pescoço. Corri para cima de uma e ataquei essa área, decapitando o monstro. Fumaça negra começou a sair pela ferida enquanto o corpo desaparecia. Mas não prestei atenção nisso e fui direto para a próxima.

— Duas já foram! Só faltam mais três!

Tomei cuidado para não ser pego por aquelas mandíbulas assustadoras enquanto continuava cortado uma por uma. A batalha só chegou ao fim quando a lamina da minha pseudo-katana arrancou o pescoço da última.

As lutas no jogo eram por turnos, um sistema forca você a esperar o inimigo atacar depois de cada golpe, contudo, naquele mundo, eu podia continuar me movendo e desviando para evitar tomar dano. Claro, era a mesma coisa para o oponente, se me cercassem, seria quase impossível sair intacto. Na verdade, as chances acabar virando lanchinho de monstro eram bem mais altas.

Coloquei minha arma sobre o ombro, satisfeito com o trabalho.

Oliva se aproximou com cuidado, ver as formigas virando fumaça e desaparecendo talvez tenha a deixado assustada. — Você é bem forte, Leon, para correr em direção aos monstros sem nem piscar.

Ver aquelas formigas gigantes pela primeira vez deve ter sido uma experiência assustadora para uma novata, no entanto, como eu sabia qual era o ponto fraco, não tive nem uma hesitação para atacar. Era possível derrotá-las com apenas uma bala, se você não errasse, claro.

— Tenho certeza que você também não vai ter nenhum problema quando se acostumar a lutar — Olhei para a Olivia, que tinha uma expressão preocupada no rosto, enquanto colocava a espada de volta na bainha. — Hora de continuar.

— Que bom que tenho alguém confiável como você aqui comigo.

? É-é que esse andar é muito fácil, os monstros aparecem são um bando de fracotes. Ah, mas lembre-se de tomar cuidado com as armadilhas. Ok então, hora de ir!

Parecia que minhas palavras não convenceram a protagonista. — Não acho que esse é o problem...

Arranquei minha espada da bainha, empurrei a Olivia para trás e levantei o braço esquerdo para tentar proteger nós dois. Um monstro, que parecia um macaco, pulou para cima de mim, enfiando seus dentes na minha manopla.

— Merda. Me descuidei. — Enfiei a espada no meio da criatura, que continuou mordendo meu braço até todo seu corpo desaparecer. Quando a fumaça negra se dissipou, pude olhar para o meu pulso e percebi que os dentes tinham penetrado a minha armadura. Sangue começou a escorrer do ferimento.

Olivia, que estava caída de bunda no chão, se ergueu o mais rápido possível quando viu o machucado.

— D-desculpa! Você entrou na minha frente para me proteger e... — Lagrimas se formaram nos olhos dela.

“Agora consigo entender o motivo daqueles caras se arriscarem tanto por essa garota.” No jogo, pensei que a protagonista estava apenas enganando os alvos para usá-los como escudos de carne... Mas aquela não era uma sensação ruim.

Nah, eu que não prestei atenção. A culpa não foi sua. E um machucado assim não é nada.

— M-mas é claro que é! Tenho que tratar isso agora. — Ela arrancou a manopla e dobrou minha manga e então colocar sua mão perto do machucado. A palma dela começou a emitir uma fraca luz branca que começou a gentilmente esquenta a minha pele.

“É verdade, quase esqueci, a protagonista era especial porque conseguia usar magia de cura”

Havia vários tipos de magia, porém, quase ninguém conseguia usar a de cura. Um sorriso se formou no rosto da Olivia depois de ver o resultado. — Que bom, o machucado se fechou.

— S-sim. Obrigado.

O sorriso dela se voltou para mim. — Eu sou muito boa em magia de cura. Tenho estudado sozinha desde que aprendi o básico com um viajante erudito que ficou um tempo na minha cidade.

— Isso é incrível...

Isso estava na lore do jogo? Não conseguia me lembrar.

— Fico feliz por ter conseguido te ajudar — disse Olivia, com felicidade estampada no rosto.

“Essa menina é mesmo especial.”

***

Havia times na frente e atrás da turminha do Julius para ter certeza de que a Sua Alteza não fosse ferida, contudo, além de existirem armadilhas espalhadas pela caverna, os corredores estavam ficando cada vez mais espaçosos, o que significa que monstros poderiam atacar pelos flancos.

Eles estavam indo cada vez mais para o fundo, o príncipe começou a perceber que, mesmo que fosse só o primeiro ou segundo andar, baixar a guarda naquele lugar poderia resultar em sua morte.

Suor frio começou a escorrer pelo rosto do Julius. Aquela era sua primeira dungeon, era normal estar nervoso. Jilk, que andava ao lado do Julius, também parecia inquieto. Brad, sempre tinha alguma coisa sarcástica para falar, encontrava-se em completo silencio. Chris não tirava a mão do cabo da espada por conta da tensão. Greg era o único que estava acostumado com essas explorações e, já que estavam nos andares para iniciantes, ele parecia entediado.

Julius se virou para a garota que estava atrás deles. — Marie, não estamos indo muito rápido para você, não é?

Foi uma escolha de palavras meio estranha, porém, ela ainda sorriu sem se importar. — Está tudo bem, Sua Alteza.

Marie era uma garota especial, completamente diferente de qualquer outra que Julius já tinha encontrado. Ouvir sobre a sua história e todos os problemas que passou criou, dentro dele, um desejo intenso de protegê-la.

Entretanto, o que o fez ficar interessado foi a forma com que se conheceram.

Ocorreu num dia em que o Julius se encontrava sozinho. O seu relacionamento com a Angelica estava ficando cada vez mais maçante, ele queria um lugar quieto para esfriar a cabeça. Contudo, uma pessoa que apareceu por lá, a Marie, uma completa estranha na época. Como estava estressado, acabou descontado tudo nela e o que recebeu como resposta foi um belo tapa na cara. Isso o deixou sem palavras. Uma mulher da mesma idade nunca havia lhe mostrado tal atitude. Se sentiu como uma criança levando bronca da mãe. Esso sentimento único acabou deixando uma forte impressão nele. Desde então o príncipe ficou obcecado pela menina.

— Se ficar incomodada com qualquer coisa, é só falar.

— Ok.

Ver o sorriso no rosto dela acalmou o Julius.

Greg estalou a língua. — Estou mais preocupado com a Sua Alteza do que com a Marie. Ela é muito mais forte do que parece. Uma pessoa que ficou a vida inteira sendo paparicada no palácio real não chega nem perto.

Chris franziu as sobrancelhas ao ouvir aquilo. — Parece que esse bárbaro do interior tem um pouco de coragem... Mas não posso permitir que fale tal coisa da Sua Alteza.

Jilk interviu. — Chris, sei que você é uma pessoa séria, mas, neste momento, nós somos apenas estudantes. Não há necessidade de se estressar com isso.

— Maus aí. Parece que eu me enganei — disse Greg enquanto ria em voz alta. — Acho que aquele que realmente devemos nos preocupar é com um certo nobre que perde muito pensando e nunca consegue fazer nada.

Era fácil saber de quem ele estava falando. Uma veia apareceu na testa do Brad. — Pelo visto esse retardado deve ter músculos no lugar do cérebro. Marie, você só terá problemas no futuro se acabar se casar com um cara como esse.

Ela deu uma risadinha desajeitada.

— Ei, para de falar merda! — protestou Greg. — Marie, a pessoa que se casar comigo irá ter uma vida ótima, isso eu posso garantir. Evite se prender a um idiota como Brad. Você vai ficar maluca com a encheção de saco desse maluco. É melhor casar comigo mesmo, ninguém vai te dizer o que fazer. Já não ‘tá cansada dessa vidinha cheia de regras de um nobre?

Ele tentava desesperadamente corrigir qualquer mal-entendido que a Marie poderia ter tido. Claro, os outros times conseguiram ouvir toda a conversa e pareciam muito desconfortáveis com aquilo. O pior de tudo era que a Angelica também estava entre eles.

De repente, o Greg brandiu sua lança com ambas as mãos — Ei, fiquem atentos. Algumas formigas vieram nos fazer companhia.

Todos prepararam suas armas em pânico. As garotas carregavam pistolas para autodefesa, contudo, era melhor evitar usá-las dentro de uma dungeon — as chances de acertar um aliado eram muito altas.

— Tem... seis delas. — Greg parecia um pouco nervoso. — Estão vindo pela passagem na lateral.

— Porque o time de patrulha não cuidou delas?! — reclamou Brad, irritado.

Chris tirou a espada da bainha silenciosamente e tomou uma postura elegante para a batalha. — Estão vindo pela passagem lateral, por isso não cruzaram caminho com eles. Ainda assim, tem muitas delas. Sua Alteza, por favor recue um pouco.

Mesmo com o aviso de seu amigo. Julius olhou para a Marie e deu um passo à frente levantado a espada. “Até parece que vou agir como um fraco e passar vergonha na frente dela.”

Greg assobiou. — Olha só. Parece que a Sua Alteza não faz parte da família real à toa.

Jilk, por outro lado, pareceu não aprovar muito a atitude e retirou a pistola da cintura. Graças a sua habilidade de tiro, ele era o único homem que tinha permissão de usar uma arma de fogo dentro da dungeon.

Atrás deles, Angelica exclamou: — O que pensam que estão fazendo?! Protejam seu príncipe!

Entretanto, antes que os outros times pudessem chegar perto, Greg gritou: — Não chegue perto!

Por conta do seu cabelo, olhos e lança vermelhos, parecia que um borrão carmesim estava indo para cima dos monstros. Usando o cabo da arma ele esmagou o primeiro inimigo, fumaça negra cobriu o cadáver em um instante.

Duas formigas se aproximaram pelos flancos nesse meio tempo. Quando Greg levantou a lança para continuar o ataque, uma das criaturas foi dividida no meio e a outra havia sido engolida por chamas.

— Você tem muitos movimentos inúteis — comentou Chris.

— São dois retardados mesmo. Se não tivessem entrado na minha frente, eu poderia ter pegos as três de uma só vez — falou Brad enquanto abaixava seu cajado.

De repente, houve o som de disparos ecoaram pelas paredes da caverna, duas formigas caíram no chão com um buraco na cabeça. Os cadáveres viraram vapor negro e desapareceram.

Uma nuvem de fumaça branca saia pelo cano da arma do Jilk. — Não se descuide, Sua Alteza.

O último monstro correu em direção ao Julius.

— O que pensa que está fazendo?! — gritou Angelica. — Proteja a Sua Alteza o mais rápido possível!

— Apenas assista — disse Jilk, em um tom calmo. — O príncipe desse país consegue cuidar de si mesmo.

Julius foi de encontro ao monstro levantando sua montante acima da cabeça. — Hah! — A lamina desceu cortado o ar, decapitou com facilidade a criatura e bateu no chão, fazendo algumas pedras voarem para todos os lados.

O corpo da formiga gigante se tornou fumaça e desapareceu.

Julius viu que sua mão estava tremendo quando foi limpar o suor do rosto. Ele olhou mais de perto e viu que havia um pequeno corte na parte de trás dela. Como não usava luvas, uma das pedrinhas deve ter causado aquela ferida.

Marie correu o mais rápido que conseguia e segurou sua mão. — Sua Alteza, você se machucou?

O calor daqueles delicados dedos acalmou o seu nervosismo. “Me sinto tão bem com ela por perto. Será que isso é estar apaixonado? Ou melhor, será isso é amor?”

O príncipe só voltou para a realidade quando percebeu uma a fraca luz emanado das mãos da Marie. Depois que o brilho se foi, o machucado já havia desaparecido. — O que você...

Ela pressionou um dedo em seus lábios. — Shh.

O Julius parou no meio da frase, percebendo que a menina preferia manter aquilo em segredo.

— Fico feliz que a Sua alteza esteja bem — disse Marie. —  Claro, também estou aliviada por nem um de vocês ter se machucado.

O príncipe preferia muito mais ter a Marie se preocupando com ele depois de uma batalha do que ver a Angelica desesperadamente tentando impedi-lo de lutar.

A filha do duque se aproximou, empurrando a Marie para o lado. — Sua Alteza, eu trouxe uma toalha para você.

Julius franziu as sobrancelhas. — Eu não preciso disso. Vamos logo, temos que continuar andando. — Segurou a mão da Marie e começou a caminhar.

***

Eu e a Olivia havíamos chegado na entrada do terceiro andar — o objetivo da aula daquele dia. Nosso professor já estava lá para garantir que nem um aluno tentasse continuar se aventurando. Não podíamos ir embora até que todos chegassem, então não tínhamos escolha a não ser esperar.

Aproveitei a oportunidade para verificar os itens que coletamos durante o percurso.

— Como o esperado da dungeon da capital. Aquele bando de mimados nos mandaram ir na frente, pensando só iriámos encontrar problemas, mas, graças a isso, a gente conseguiu todos os minérios para nós mesmos.

Pegamos ferro, cobre e vários outros metais, tudo perfeitamente refinado, nas paredes da caverna. Era tão conveniente que quase acabei chorando.

Olivia olhava para um cristal em suas mãos. — Nossa, é tão lindo. Parece até um diamante. Isso aqui serve para o que?

 — ‘Tá falando dos cristais mágicos? Eles servem como fonte de energia. No processo de têmpera5, se jogar um deles na fornalha, o metal vai sair com uma qualidade maior. Não sei de muitos detalhes, mas servem para fazer um monte de coisas. Bem, só me importo com o fato de que dá para ganhar uma boa grana os vendendo. Com mais essa aqui dá para conseguir uns 200 dhias...?

Se vendêssemos tudo iriamos ter 500 dhias. Não precisávamos dividir com mais ninguém, já que recolhemos tudo sozinhos enquanto fazíamos a patrulha. Bem, para começo de conversa, aqueles filhinhos de rico não iam nem ligar para um valor tão pequeno.

— Com tudo isso, mesmo depois de dividimos, ainda vou ter o suficiente para fazer uma cerimônia do... não, não vai dar. Merda. Preciso conseguir muito mais.

Eu tinha o jogo de chá que comprei na última vez, no entanto, as folhas e os aperitivos iriam sair bem caros. Não dava para fazer muita coisa com apenas algumas centenas de dhias. Meus ombros caíram quando percebi nisso.

— Como será que a caverna produz esses cristais? Eu entenderia se fossem só metais, mas não conheço nenhuma mina com esse tipo de mineral. E ouvi falar que eles só aparecem em dungeons. É estranho se pararmos para pensar — perguntou Olivia.

Acabei respondendo sem pensar muito. — Ah, você sabe. Quando matamos os monstros, a mana deles vai para o solo e se concentra até virar um cristal mágico.

— Sério? Nunca tinha ouvido isso antes. Eu também acho que os nossos livros comentaram que o motivo ainda não foi descoberto...

— Tenho certeza de que li isso em algum lugar. Espera. Será que os baús de tesouros funcionam com o mesmo princípio? Nossa, magia e mana são mesmo muito convenientes.

“Para a próxima cerimônia, devo tentar preparar tudo de acordo com as preferencias da convidada? Mas talvez eu tenha que compra um novo jogo para isso. Claro, não vai adiantar ter utensílios de qualidade se o chá em si não estiver à altura. Merda. Porque esse caminho tem que ser tão profundo? Finalmente consigo entender o motivo dos comandantes do período Sengoku6 colecionarem esses conjuntos. Agora que parei para pensar, as cerimonias do chá dos dois mundos são mesmo muito similares...”

Enquanto eu pensava nessas coisas, percebi que a Olivia estava olhando para mim. — O que foi?

— Você é mesmo inteligente, Leon. — disse a menina. — Só fiquei um pouco surpresa.

Inteligente? Muito pelo contrário. Aquela era a minha segunda vida e ainda assim só consegui uma nota medíocre no exame de entrada da academia. Havia vários alunos melhores do que eu por lá.

Porém, ainda fiquei muito feliz por ser elogiado. Era uma pessoa simples na época. Não que isso fosse uma coisa ruim.

— A-acha mesmo? Bem, se quiser, eu posso te dar uma ajuda quando você tiver alguma dúvida.

Ela sorriu de orelha a orelha. — Muito obrigado!

Não devia fazer nenhum mal ajudá-la um pouco nos estudos enquanto eu procurava uma parceira mais realista.


Notas:

1Boys Love, termo usado para mangas, animes ou outras mídias que tenham romance entre homens e que o público alvo é o feminino.

2 – Katana é uma espada tradicional de duas mãos japonesa. Imagem.

3 – Montante é uma espada de duas mãos usada na Europa medieval. Imagem.

4Kendo é uma arte marcial japonesa moderna, desenvolvida a partir das técnicas tradicionais de combate com espadas dos samurais do Japão feudal, o Kenjutsu.

5 – Endurecimento por têmpera é um processo metalúrgico pelo qual ligas de aço e ferro fundido têm sua dureza aumentada. Isso é feito aquecendo-se o material até certa temperatura, a qual depende do material, e resfriando-o em seguida.

6 – O período Sengoku foi uma das fases mais conturbadas e instáveis da história do Japão, marcada por constantes guerras. Ocorreu entre a metade do século XV e o final do século XVI.



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