Volume 1
Capítulo 9: Espíritos e Maldições
A quietude sublime da noite realçava o vento forte e frio que assobiava pelos prédios, cortava as ruas pavimentadas com pedras irregulares e soprava pelos trincos e janelas, realçando a extensão dos vários andares da torre de observação.
A meia-luz das lamparinas e velas que ocupavam o espaço davam um ar mais melancólico às especiarias e ornamentos que tomavam em uma aparente desordem o salão dos Alquimistas.
Uma visão familiar para Esfer. Como membro da família Leier, uma das poucas, entre os Impuros, que ainda tinha algumas regalias em Vespaguem, estar ali fazia parte de suas funções, mas, para ele, essa não era uma tarefa enfadonha.
Sem se importar com todos os frascos, estatuetas e poções, seguiu em frente até ser banhado pela luz da lua que transpassava por um vitral colorido, o qual dava forma a uma caveira dourada com olhos azuis.
Mais adiante, da meia-luz, uma silhueta esguia deu forma as curvas de uma alta e esbelta mulher de longos cabelos negros. O tremular da rala claridade das velas contra seu corpo lhe dava um ar místico que parecia seduzi-lo, assim como aquele sorriso fácil que conhecia tão bem e o atraía como o canto de uma bela sereia.
Tentou chamá-la, porém suas palavras soaram inaudíveis. Tentou se aproximar, mas seu corpo parecia pesado, parecia vazio, parecia distante.
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De repente, passou a ouvir algumas palavras abafadas. O som aumentava e sua visão começava a clarear conforme era balançado de um lado para outro, por Cão. Acabava de acordar de um sonho.
“Quando foi a última vez que tive um sonho assim? Minha antiga vida parece tão distante”, pensou Esfer.
Ele não pôde refletir mais profundamente já que viu em sua frente o colega com os dentes de ferro amostra e ambas as mãos sobre seu manto, agoniado.
— Como diabos você consegue dormir assim?! — disse Cão com uma voz raivosa e cambaleando.
Esfer olhou para um lado e para outro procurando a espada, todo atrapalhado.
— O que está acontecendo? — Um violento estrondo os interrompeu. Era Bolor que havia sido arremessado contra uma parede.
— Galezir e Olfiel surgiram do nada falando que queriam nos testar e nos atacaram em seguida.
Às costas de Cão, surgiu Galezir ostentando sua nova espada em mãos. Ele partiu na direção dos novatos, com uma sede assassina estampada em suas feições morenas, enquanto seu manto marrom tremulava sobre suas vestes negras.
O recruta estendeu o braço direito para a frente e um intenso brilho antecedeu o momento em que três chicotes de luz dançaram e rodopiaram no ar antes de darem forma a uma longa espada dourada, semitransparente.
Pela primeira vez, Esfer revelava seus poderes diante dos olhos de Cão, projetando uma grande lâmina que parecia leve como uma pena em suas mãos, habilidade esta que era chamada, dentro de sua família, de mestre de armas. Com ela, amorteceu o pesado golpe do veterano, com dificuldade.
— Já chega! Pare com isso!
Galezir ignorou suas palavras. No movimento seguinte preparou um ataque frontal, mas no último segundo, girou e mudou a trajetória da lâmina. Quando as duas espadas se encontraram o novato se desequilibrou, teria o nocauteado com a empunhadura caso Cão não conseguisse interceptar o golpe com a espada de Bolor.
Assim que Esfer se recompôs, atacou o flanco exposto do Demônio que foi obrigado a recuar.
— Vejo que temos um espertinho aqui — falou Galezir.
Os dois colegas desferiram uma série de golpes em conjunto, contudo o Demônio manteve-se em pé de igualdade, sempre que ficava desconfortável se afastava ou abusava de sua agilidade sobre-humana com movimentos traiçoeiros, se mostrando um oponente escorregadio.
Olfiel, que apenas via de longe a disputa, provocou o camarada:
— Com problemas?
— Calada, eu sei o que estou fazendo.
— Isso soa como as palavras de alguém que não sabe o que está fazendo.
— Vou resolver isso agora e fazer você morder a língua.
Ele tirou de seu casaco um pequeno recipiente amarronzado, feito de madeira, similar a uma cabaça. Ao posicionar sua espada horizontalmente e retirar a rolha que lacrava a vasilha, uma enorme corrente de vento começou a se formar pelo alojamento e envolver, em uma espiral, os escritos negros que agora brilhavam sobre a superfície da arma.
Galezir canalizou o poder através da lâmina e investiu um grande ataque seguido por um estridente assobio.
Olfiel, prevendo a insensatez do colega, colocou-se no caminho para impedir seu avanço.
Em resposta, ele desfez a corrente de ar que envolvia a espada. Embora tenha tomado a medida, parte de seus poderes colidiram contra as manoplas de ferro que envolviam os punhos da Caça-contrato, produzindo uma onda de ar que percorreu todo o casebre.
— Não viemos aqui para matá-los, quer colocar esse lugar abaixo?! — A Demônia ajeitava, com o antebraço, os longos cabelos negros, nervosa.
— A culpa é sua por se meter onde não deve.
Olfiel balançava um de seus punhos no ar.
— Eu vou te socar até você aprender…
— Me afasto por alguns minutos e o mundo parece à beira do caos mais uma vez — disse Teslan ao entrar com os braços abertos, fazendo referência a antiga guerra, ocorrida pela disputa da centelha da criação.
Ela forçou um sorriso.
— Estamos aqui para ajudar.
— É verdade o que ela diz — complementou Galezir.
— Quem em sã consciência pediria ajuda para os dois brigões da unidade? — Teslan cobriu o rosto com uma das mãos.
— Foi um pedido de Barock! — alegou Olfiel em sua defesa.
O Demônio que ainda avaliava se havia algum dano nas estruturas do casebre, respondeu:
— Agora tudo faz sentido, aquele brutamonte adora ver uma confusão.
— Podemos continuar? — perguntou Galezir.
— Claro, mas você vem comigo, quase derrubou toda a construção.
— Mas o que!?
— Cão, espero você daqui uma hora em frente ao portão principal — disse Teslan que escoltava o briguento. — Não pense que terá vida fácil aqui.
Olfiel provocou disfarçadamente Galezir que saía a empurrões do local.
— Muito bem, agora podemos prosseguir. — A Caça-contrato bateu suas manoplas de ferro de forma ameaçadora e as esfregou uma contra a outra como se quisesse estalar os dedos.
— O que? Ela nos atacará sem uma espada? — perguntou Esfer para o companheiro.
A Demônia partiu em direção de seus pupilos. Esfer, sem usar força total, deu um golpe de espada para afastá-la, mas ela facilmente conseguiu conter a lâmina com suas manoplas de ferro. Vendo o que se desenhava, Cão anulou com a arma o ataque do punho esquerdo. Contudo, não esperava um chute poderoso de Olfiel, que o mandou para trás.
— As pernas são mais fortes que os punhos. É melhor se lembrarem disso ao lutarem um combate desarmado. — Ela percebeu a hesitação da dupla e passou a caminhar em sua direção. — Devem se perguntar qual minha habilidade, pois bem, meu atributo provém da terra e meu poder é fortalecimento corporal, obtido por meio do meu pacto com um familiar da terra. Familiares são raros, porém em seus casos as particularidades também podem ser lapidadas de outras maneiras.
— Precisamos criar uma abertura, me acompanhe! — afirmou Esfer para Cão.
Os dois investiram ao mesmo tempo e foram repelidos. Esfer ameaçou uma nova tentativa, mas foi alertado pelo colega a não se afastar. Ele logo rebateu com um olhar nada amistoso.
Insistiram, mas suas tentativas em conjunto não conseguiam ser efetivas.
— Não ceda, continue tentando.
A dupla preparava um ataque em pinça, porém, Esfer foi surpreendido pelo familiar de Olfiel, que o puxou na direção oposta. Tudo o que pôde ver foi uma pequena criatura disforme feita de terra que logo se dissipou depois de intervir.
Nesse meio tempo, Cão foi acertado por um fulminante soco no estômago, que o deixou se contorcendo no chão.
Olfiel se aproximou com passos lentos e despreocupados, sem esconder que tinha sua vitória como certa.
— Perdeu sua confiança? Novato.
Esfer reagiu por impulso. O pequeno descuido ganhou forma através de um poderoso soco da Demônia, que desceu como um foguete contra suas costelas. Assim, Olfiel saiu triunfante do duelo.
— Talvez tenham mais sorte da próxima vez — desdenhou a Demônia, ao deixar o casebre.
Cão, ainda no chão, antes de partir para atender as ordens recebidas, comentou:
— Ela não teve pena da gente.
— Deixe de ser molenga, nem parece que queria treinar com Barock, ontem. Você nem se empenhou muito. Achou que eu não notaria? — disse Esfer.
— Bem… eu, pelo menos, tentei.
— Pois devia ter apanhado sozinho, isso sim.
— O que vai fazer o resto do dia sabendo que não terá como me infernizar?
— Vou sair, pretendo espairecer um pouco a cabeça. Se tiver sorte, talvez eu consiga achar um túnel que me leve para bem longe daqui — disse com uma voz debochada. — Pelo menos é melhor do que ficar nesse buraco, junto com essas vespas.
— Nos vemos mais tarde — falou, disfarçando a cara de dor enquanto se levantava.
Cão saiu apressado. Mal sabia que o final desse dia traria um dos maiores tormentos que viveria em Vespaguem.