Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 8: Lado Negro

As chamas tremulavam e reluziam com as pedras que queimavam dentro de lamparinas, guiando o avanço do curioso grupo. A visibilidade era baixa e prejudicava o progresso fora da Grande Barreira. Por mais que a atividade fosse algo rotineiro para a maioria, era difícil se sentir acomodado nas planícies do Velho Mundo. Sabiam que o perigo constantemente os rondava e a paisagem turva tornava o cenário ainda mais intimidador.

Nesse cenário inóspito, chamavam a atenção duas luzes bem à frente do restante do grupo. Eram Esfer e Bolor que desempenhavam o audacioso papel de tomarem a dianteira e explorarem os novos locais. Foram eles os primeiros a avistar, em meio ao terreno rochoso, as ruínas de um pequeno vilarejo.

Caso pressentissem alguma ameaça, lançariam um sinal para os demais membros recuarem ou no pior dos casos se prepararem para um possível confronto. Cientes que disputas internas e ataques de outros grupos havia crescido exponencialmente com a escassez de relíquias nas redondezas, e que os encontros com Sombrios, raros até então, nos últimos tempos, havia se tornado uma realidade.

Acompanhados pelos Caça-contratos, o décimo primeiro esquadrão de Coletores realizava uma expedição nas Terras Ermas, exercício recorrente dentro das atividades desempenhadas pela unidade. Diferente do trabalho braçal feito pelas populações de Impuros, sua tarefa era vasculhar itens valiosos, runas antigas e conhecimentos perdidos.

Ao lado de Belter, Teslan liderava os demais. Sempre que podia, se dispunha a examinar qualquer escrito antigo, já que sua origem era nobre e possuía saberes privilegiados. Contudo, devido a certos acontecimentos relacionados a seu passado, que acarretaram em seu exílio das Casas Centrais, perdeu o nome de sua linhagem, assim como suas regalias como nobre.

Fechavam os Caça-contratos Barock, Sark, Galezir e Zifria. Estes últimos incumbidos de atuar para a proteção dos Coletores, mas que também possuíam permissão para realizar suas próprias pilhagens. Nessa lógica de trabalho a tensão inicial gerada por tal empreitada foi rompida com o passar das horas. Sentiram-se mais confiantes para adentrar mais profundo, afastando-se cada vez mais em um sublime silêncio para cobrir uma área mais extensa.

O ócio somente foi quebrado por uma voz repleta de espanto.

— Vejam! Vejam o que encontrei! — Galezir empunhava em suas mãos morenas uma majestosa espada prateada que acabava de encontrar ao pés de uma coluna acinzentada que parecia ser o esqueleto do que há muitos anos foi um moinho. Contra o trepidar das chamas da lamparina, emanava um pequeno brilho azulado. Estava intacta apesar da ação do tempo. Aparentava ser forjada do valioso aço godafer, que possuía propriedades únicas, porém sua intuição dizia que ela tinha um valor ainda mais elevado.

Barock arregalou os olhos, surpreso.

— Parece que alguém ganhou o dia. 

Outros membros foram até eles atraídos pela agitação.

— Quem diria que encontraria um item valioso nesse fim de mundo. — Galezir aproximou a lamparina para admirar melhor a espada antiga.

— Tenho que concordar, ela é linda — afirmou Sark que segurava uma sacola com algumas antiguidades sem grande valor.

— Achados como esse são casos raros? — perguntou Esfer.

— Calado, seu verme! — Galezir levantou a espada como se fosse golpeá-lo.

— Calma, não precisa causar confusão. — Sark gesticulou com uma das mãos para cima e para baixo repetidas vezes, pedindo calma. 

— Não enche o saco! — disse ao apontar de forma hostil a lamparina na direção do companheiro.

Em meio à barulheira, não muito longe dali, Bolor, em uma caminhada solitária, avançava pelas sombras e se distraiu com a turbulenta conversa de seus colegas, que se destacava na quietude. Quando olhou atentamente para sua direita, viu de relance uma tenebrosa silhueta escura que se movimentou como uma sombra, incrédulo com seus sentidos, um longo arrepio percorreu a espinha. Com o susto, se afastou de imediato, indo rumo ao restante do grupo.

Os companheiros logo notaram seu semblante pálido e apavorado.

— Há algo errado? Está tudo bem? — perguntou Teslan.

— Não senhor, nada para relatar — falou o Impuro, assustado e se aproximando com passos atrapalhados. Optou por ocultar a informação já que não tinha certeza sobre o que havia visto.

Cauteloso como o habitual, Teslan sugeriu a Belter suspender os exercícios, o qual logo deu por encerradas as atividades do dia. Ao ouvirem as palavras do líder da expedição, todos as atenderam sem nenhuma cerimônia.

O manipulador de maldições, intrigado com o colega, resolveu realizar uma demonstração de seus poderes. Do bolso de seu casaco pegou alguns papéis quadriculares e os soltou ao vento, esses pequenos marcadores plainaram e se prenderam na pele de todos.

— Vamos pegar um atalho.

Das gravuras negras, uma misma da mesma cor rapidamente se alastrou e envolveu a pele e as vestes de todos até serem absorvidos por uma sombra que se encolheu até desaparecer. Longe dali, ela reapareceu, libertando a comitiva aos pés da muralha.

— Sempre me espanto quando penso sobre como suas particularidades são convenientes — disse Barock que conferia se todos estavam presentes.

— Não posso atravessar a barreira com meus poderes — falou Teslan, com uma respiração pesada. — De qualquer maneira, levar todos além disso seria muito cansativo. Bem… — Ele passou uma das mãos na testa como se tivesse dores de cabeça. — Chega de perder tempo com conversa fiada.

Belter sacou o pingente preso a sua pedra da aliança que mais uma vez passou a emanar uma luz avermelhada. A barreira logo começou a se decompor e se retorcer, na mesma medida que voltava ao estado original conforme o grupo progredia. Desse modo, regressaram e se despediram dos Coletores no meio do caminho.

Durante o retorno à sede do esquadrão foi evidente a tristeza que assolava as ruas compostas em grande parte pelos Impuros, população mais predominante nas regiões costeiras a barreira. Uma visão que os acompanhou até a entrada para o subterrâneo. Ao avistarem novamente a base da ordem, o grupo logo se dispersou depois dos últimos esclarecimentos sobre a missão.

Esfer passou pelos portões fortificados, atravessou o pátio de entrada e cruzou o amplo salão de recreação. Este último era a parte mais povoada do forte, onde Kairom costumava regular as ações dos demais membros.

Quando Esfer chegou no alojamento e se jogou em uma cadeira, imaginou que teria enfim alguns minutos de sossego, mas logo o brandir da espada de Barock, que curiosamente praticava na área de treinamento dos Impuros, ao lado, perturbou seus ouvidos.

De início, apenas ignorou, contrariado. Porém, depois de uma pequena pausa, a barulheira aumentou. Era como se dois tacos zunissem dentro de sua cabeça. Espiou pela janela e viu que Barock e Cão treinavam com bastões de madeira.

Ficou surpreso ao perceber a imprudência do colega que ainda carregava as marcas do incidente promovido na cerimônia de entrada.

— O que acha que está fazendo? Você ainda está todo ferrado. Enlouqueceu? — alegou Esfer para Cão.

Barock escolhia um novo bastão.

— O pequeno insistiu, alegando que queria me acompanhar.

— Posso não ser tão forte, mas sempre vivi por conta própria. Isso não será diferente agora — argumentou Cão.

— Você se saiu bem na torre, por acaso já se arrependeu do que fez?

— Chega de conversa, vamos para a ação — disse Barock ao lançar um bastão de madeira para Esfer.

Antes que tivesse tempo para reagir, Barock partiu em sua direção. Espantado, Esfer apenas levantou a vara para conter o ataque que soou como uma explosão e exigiu o máximo de seus músculos. Por um momento duvidou que o bastão resistisse a outra investida.

Cão tentou surpreender o veterano, atacando seus calcanhares, porém não atingiu o resultado desejado. Barock o deteve sem dificuldades e quase acertou, em um contra-ataque, uma estocada no peito.

Os golpes que desciam contra o bastão ecoavam por todo seu corpo, evidenciando uma exorbitante diferença de força. Não demorou para o treino se revelar uma tortura para os novatos.

— Não tem como a gente lutar contra esse monstro — reclamou Esfer, ofegante e cansado, devido à intensidade dos golpes que desciam como trovões.

— Vocês precisam ficar preparados para tudo, até eu tenho um ou dois trunfos escondidos, talvez algum dia surja a oportunidade em que eu seja capaz de mostrá-los. — O Demônio com uma das mãos girava o bastão como se os provocasse. — Para viverem aqui terão que ser capazes de contornar ameaças ainda maiores.

Esfer desabou no chão e refutou o comentário agourento:

— Espero que esse dia nunca chegue.

Insatisfeito, Cão se sentou e olhou seus próprios ferimentos.

— Sou um inútil, sem uma espada. Para completar, sigo sem qualquer pista de como controlar melhor essas maldições.

— Por que não conversa com o Xamã do esquadrão? Até Teslan costuma procurá-lo para repor seus brinquedinhos. — Barock se virou. — Acredito que Dibian saberá orientá-lo a respeito de seus poderes. — Em seguida, deixou o espaço fazendo um estranho sinal, ao fechar o punho e erguer os dedos anelar e mínimo. Se tratava do gesto do louco, hábito feito entre os Demônios, sempre que sentem a necessidade de superar alguma adversidade.

— Talvez eu aceite seu conselho… depois.

Cão também se deitou no chão após uma fisgada nas costas. Todo seu corpo estava dolorido.

 

☼☼☼☼

 

Mais tarde, já próximo aos aposentos do Xamã, Cão pareceu hesitar em entrar na construção. Em seguida, se virou para Esfer que estava a suas costas.

— Você não vem?

— Por que eu deveria? — rebateu Esfer. — Isso é coisa sua.

— Ué, mas você já está quase na porta.

Esfer soltou um longo suspiro, aborrecido, antes de entrar no alojamento de Dibian.

— Pronto, chegamos. Agora se resolva logo.

— Que seja…

O interior da choupana de madeira, isolada das outras construções, revelou o rudimentar laboratório de Dibian, que ostentava, em uma aparente desordem, ossos, especiarias, poções e muitos quadros. Ao lado de uma pequena caveira dourada com olhos azuis, situada sobre o balcão que decorava o local, estava o sábio. Um Demônio alto, magro e de meia idade, vestido com um largo manto marrom que realçava o broche circular e metálico em seu colar, com a gravura de uma estrela de cinco pontas. Demonstrava ser um estudioso das artes negras e aparentava ter grande conhecimento a respeito dos mais variados assuntos.

— Olá, sei que talvez não seja o melhor horário, mas ouvi que o senhor poderia me ajudar…

“Que lugar medonho! Vou arrumar logo uma desculpa para sair daqui”, pensou Cão.

— Quem são vocês? Novos membros?

— Sim, pensei que todos aqui nos conhecessem depois do que aconteceu outro dia — disse Esfer que se apoiou ao lado da caveira posta sobre o balcão.

— Eu não saio muito… — comentou o Xamã que mexeu em algo atrás do balcão, sem dar muita importância para o visitante.

— Enfim… vim aqui em busca de seus saberes. Gostaria de controlar melhor minhas maldições, acha que pode me ajudar?

— Talvez sim, talvez não. No momento em que você entrou aqui percebi sua afinidade com maldições e que inclusive foi assolado por uma. Na verdade é difícil para um Xamã não perceber. É como se uma nuvem negra o acompanhasse.

— Uma maldição? O que isso quer dizer?

— Seu caso é curioso. — O Demônio levou a mão ao queixo enquanto analisava a situação. — Se o que diz é verdade, não me espantaria se sua condição fosse obra de um Maculado. Porém, não tenho certeza se poderei lhe ser útil.

“Um Maculado?”, pensou Cão.

Ficou curioso, porém não queria estender sua consulta mais que o necessário.

— Há algo que possa fazer?

— Seu problema não é simples, pode me explicar melhor? Já vi que você é o Demônio-predador que ingressou na ordem.

— Acha que isso tem alguma relação? Bem… — Desviou o olhar como se algo na parede tivesse chamado sua atenção. — Por que acha que isso pode ser obra de um Maculado?

— A maioria dos Maculados costumam adquirir a habilidade da metamorfização, mas não é algo que seja restrito somente a eles, Demônios de classes mais baixas também podem obtê-la, é mais uma questão de afinidade do que poder. Contudo, dentre os Maculados, uma pequena minoria é dona de poderes únicos.

A imagem do Demônio que o atacou na torre, durante a seleção das novas espadas do Fosso, rondou os pensamentos de Cão.

— Peço que foque no meu problema. — Ele levou uma das mãos ao pescoço, agoniado.

— Lamento por não poder ajudar muito, no entanto, sugiro que vá até o Covil das Feiticeiras, acredito que este seja o local mais apropriado para entender, melhor, seu problema.

— Vou pensar a respeito. Acho que já vou indo, boa sorte… com isso — disse apontando para os inúmeros itens espalhados pelo casebre. — Ei! Você não vem? — perguntou para Esfer.

— Claro, estou indo.

— Velho esquisito — comentou Cão, ao fechar a porta.

— Sou obrigado a concordar.

— Senti que talvez ele tenha escondido algo importante, mas aquele lugar me dava arrepios. — Avistou a entrada do alojamento dos Impuros. — Só quero descansar…

— Precisamos estar prontos para tudo — disse Esfer, conforme Cão o deixava para trás.

Nesse momento, aproveitou e tirou de seu bolso uma pequena figura, semelhante ao pingente de um velho colar. Tinha um formato ovalado e a forma de uma caveira, dourada, com olhos azuis.



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