Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 7: Mundo Fragmentado

O sol provavelmente ainda não havia nascido quando o badalar de um pequeno sino fixado no final do corredor marcou o início dos preparativos para a missão que logo aconteceria. Protegeriam Coletores em uma expedição rumo ao lado negro da Grande Barreira.

Esfer alongou um dos braços para trás, esboçando mais receio do que sonolência. Movido pela agitação dos companheiros, logo pegou suas coisas e se dirigiu para a área central do alojamento, chegando lá percebeu que nenhum Demônio estava pela área, pelo contrário, parecia que ninguém os importunaria tão cedo.

— Realmente há necessidade de acordarmos nessa hora? 

Verme se sentou e levou uma das mãos ao rosto enquanto com a outra soltava a mochila no chão.

— Você não vai querer dar brechas para eles, acredite nisso.

Os dois novatos apenas se entreolharam.

Com esforço, Cão se levantou de uma das cadeiras.

— Com certeza pretendemos evitar isso — concordou, atormentado por um fleche dos acontecimentos ocorridos com Calisto, no salão de recreação.

— Ontem, ouvi o boato que outro Sombrio foi avistado fora de Vespaguem. Muitos estão assustados. — Esquerdo analisou as reações dos colegas que ouviam suas palavras.

— Já tenho minhas dúvidas se essas histórias são mesmo verdade, nos últimos tempos já vaguei algumas vezes por esse fim de mundo acompanhando Coletores e ainda não encontrei nenhum — rebateu Bolor.

— Vamos, pense comigo, sabemos que fora de Vespaguem as terras estão mortas, mas acha que eles viveriam isolados por causa de meras superstições? — Esquerdo apontava para o centro da unidade.

— Está pensando demais, já temos muitos problemas para resolver, remoer isso não vai ajudar em nada.

Com estas palavras em mente, o grupo finalizou os preparativos. Após tudo pronto, não demorou para chegarem seus superiores.

Barock foi o primeiro a adentrar nas instalações dos Impuros.

— Vejo que estão todos apostos. — O Demônio olhou para Esfer. — Teremos um longo dia pela frente.

— Falando assim nem parece um preguiçoso, só sabe falar pelos cotovelos e praticar com as inúmeras armas de sua coleção. Uma hora você ainda vai se matar — alertou Teslan que veio em seu encalço.

— Fala o guerreiro exemplar. — Barock virou-se de costas e resmungou com uma voz baixa. — Nem parece o devasso que é.

— O que você disse? Seu desgraçado. — Uma das palmas de Teslan foi tomada por escritos negros, indecifráveis e ameaçadores.

O grandalhão apenas se afastou contendo os risos.

— Deixem de besteira, temos muito o que fazer — disse Bolor para seus superiores.

Teslan desfez as maldições e levou uma das mãos sobre os olhos como se estivesse com dores de cabeça.

— Enfim, venham comigo, os outros devem estar esperando.

Esfer e Bolor, que fariam parte da expedição comandada por Teslan, seguiram rumo ao campo de treinamento, onde aguardariam os outros membros que os acompanhariam. Os demais permaneceram no alojamento à disposição da unidade.

O grupo comandado por Teslan atravessou o distrito subterrâneo que ganhava vida à medida que as lamparinas nas ruas eram acesas e alcançou a superfície sem dificuldades. Conforme avançavam pela cidade, era óbvio perceber como as populações mais pobres estavam concentradas nas áreas mais cercanas a barreira que brindava o império, do resto do mundo.

Entre as muitas figuras que cruzavam seu caminho durante a caminhada, três indivíduos atraíram a atenção de Esfer. Usavam uma espécie de batina marrom com listras diagonais pretas nas mangas e na região das costelas. A costura justa do tecido facilitava seus movimentos e davam um ar mais atlético a seus usuários. O mais velho do trio pareceu entregar a outro uma faca negra enquanto avaliava o perímetro.

Esfer viu de relance um símbolo gravado no cabo do punhal, composto pela representação de uma águia negra que destruía a gaiola espinhenta que a prendia.

Um deles, ao perceber a fixação do Caça-contrato, decidiu se afastar. Os outros apenas o acompanharam sem entender a situação.

— Esses adoradores estão por toda parte, parecem ervas daninhas. — Barock olhou para Teslan como se esperasse uma resposta.

— Devem estar se aproveitando da fama do último Maker para tirar o pouco daqueles que não tem quase nada.

— Lembro que há semanas atrás você nem acreditava na existência de Fantasma.

— Ainda tenho as minhas dúvidas, provavelmente isso é uma artimanha dos simpatizantes de Sirum, o antigo imperador.

Barock se aproximou do companheiro para continuarem o assunto com uma certa discrição.

— E o que essa imaginação fértil está escondendo?

— Desde que Vespaguem cortou o contato com as outras cidades-fortaleza, nunca a centelha da criação teve que suprir tão bem seu povo. Isso concentrou o poder nas mãos dos imperadores e em contrapartida, enfraqueceu o da nobreza, principalmente as grandes famílias, são apenas uma sombra do que um dia já foram.

— Eu quase tenho pena deles. — Um sorriso surgiu no canto da boca de Barock.

— Com a ascensão de Turcarian, eles tinham a expectativa de que finalmente o contato com as outras cidades-fortaleza fosse retomado, o que não aconteceu.

— Perder suas regalias deve ser algo bem incômodo.

Teslan ignorou o comentário do colega.

— Estamos prestes a observar o início de uma rebelião, contudo, a soberana parece não se importar.

Barock pegou o ombro de Teslan sem interromper sua caminhada.

— Acho que está pensando demais, foque no presente. Não reviva velhos fantasmas. — A mão que antes parecia importuná-lo, agora tentava consolar o amigo.

— Esqueça isso, temos muito o que fazer — afirmou com um olhar sério ao se soltar do companheiro.

Os dois Demônios que seguiam na dianteira e lideravam o grupo passaram a economizar as palavras. Avançaram em frente encarando uma realidade cada vez mais precária. Enquanto se aproximavam da barreira, a atenção de Esfer foi atraída para a direita. Centenas de metros os separavam, mas o Caça-contrato era capaz de ouvir parte da agitação gerada por uma acentuada multidão que preenchia o espaço à volta da mais alta e pontiaguda construção da região.

Bolor reparou a curiosidade do novato.

— Aquilo é um Posto de Troca, nesses lugares são comercializados a maioria dos espólios adquiridos fora de Vespaguem. Nunca havia visto um antes?

— Não, só sei que costumam ser lugares traiçoeiros. — Esfer passou a observar seus superiores com o mesmo receio que admirava o horizonte.

O Impuro se aproximou e sussurrou para que suas palavras alcançassem apenas os ouvidos de Esfer.

— Nem todos são como Calisto, dificilmente farão algo com você, ainda mais na companhia de Teslan, seu padrinho e nosso líder nessa missão.

— Padrinho? — perguntou o novato.

— Sim, por acaso esqueceu que foi ele que lhe nomeou como Cascalho? Agora pode parecer estranho, mas, dentro da ordem, os Demônios daqui costumam cuidar de suas propriedades. Eles tem suas particularidades, logo vai entender.

— Estou começando a compreender porque Olfiel me chamava de bichinho no dia em que entrei na ordem.

À frente avistaram um grupo de Coletores. Um deles, moreno, de meia idade, com um grande chapéu redondo preso nas costas, os recebeu com um aceno. Parecia liderar a comitiva.

— Então esses são os seus camaradas?

— Belter, essa é a minha equipe, também trouxe alguns Impuros, como combinamos — afirmou Teslan.

— Malditos Sombrios… mataram um de meus soldados, além de todos os Impuros. Também tivemos que deixar os nossos achados para trás.

— Ainda penso que você deveria buscar ajuda no Posto de Troca.

— Se eles se preocupassem com isso, vocês não teriam tanto serviço. Imagino que tenham reforçado a proteção de muitos Coletores nos últimos dias, estou errado?

Teslan desviou o olhar.

— Deve ser mesmo complicado trabalhar no lado negro, longe dos olhos de todos.

— Continuar aqui é loucura. Não só pelos Sombrios, mas também pela escassez de relíquias. Todos estão gladiando-se pelo pouco que ainda resta nesse lugar. Vespaguem precisa deixar essa terra maldita para trás. — Ele pegou a mochila. — Vamos, ficar parados não resolverá nada.

— Vocês ouviram, mexam-se — disse Teslan para seus colegas de ordem.

O grupo não demorou para ultrapassar as últimas construções que preenchiam a paisagem até pararem diante da Grande Barreira de Vespaguem que mantinha vivo esse oásis dentro de uma imensidão desolada. Tal boa fortuna era fruto da centelha da criação controlada por Turcarian, que também era responsável por alimentar o monumento que os separavam do restante do mundo, em ruínas.

Os membros da expedição pararam perante uma grande e espessa muralha com cerca de quarenta metros de altura, a qual contornava todo o território de Vespaguem, se estendendo muito além de onde o horizonte alcançava. As singularidades em sua estrutura podiam ser observadas por qualquer um, claramente estava longe de ser uma simples construção. Nenhum tijolo ou encaixe aparecia à vista, pelo contrário, sugeriam que tal obra não era resultado do trabalho de escravos, mas de poderes que desafiavam as leis naturais. Densas rochas formavam o muro que parecia ser um desenho feito através de uma obra de mágica. Acima de seu topo era possível observar um pequeno reflexo espelhado, causado pela ação da luz do sol contra a barreira transparente.

Belter caminhou na direção de um amontoado de runas que adornavam um determinado ponto da muralha rochosa e sacou de seu manto um item que carregava consigo. Era uma pedra vermelha e circular presa a um pingente prateado. Ela logo passou a brilhar intensamente, em resposta, às escrituras gravadas no imenso paredão ganharam a mesma tonalidade. Desse modo, a passagem se abriu.

Com o progresso dos integrantes, o paredão se decompunha adiante na mesma proporção que se restaurava a suas costas, lembrando a inteligência de um ser vivo. Foi impossível para Esfer não se sentir encantado com o que acontecia à sua volta.

Vários metros depois a outra extremidade da muralha de proporções colossais ficou visível. O novato sabia que a partir daquele ponto estava diante do desconhecido. As terras desoladas além dos limites de Vespaguem.

Aos poucos, um terreno árido e turvo ganhou forma. A paisagem estava coberta por um denso nevoeiro, o ar pesado e a vegetação que ainda vingava era rala e murcha. A atmosfera inóspita tornava desconfortável respirar, desempenhar suas funções pela unidade certamente causaria muitos transtornos, porém não estava em uma posição que o permitia recusar.

Teslan se aproximou de Belter, que liderava o grupo.

— Qual será a rota que seguiremos?

Belter abriu o mapa apenas o suficiente para que o Caça-contrato visse uma de suas marcações.

— Digamos que hoje seremos mais ambiciosos.

Todos lentamente se distanciaram da cidade-fortaleza e adentraram nas terras arrasadas desse antigo mundo rodeado por mistérios.



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