Volume 1
Capítulo 6: Rebanho
Os primeiros raios de sol ainda nasciam na superfície, enquanto Esfer percorria um longo corredor que o levava do alojamento até uma vasta área descampada, a qual aparentava ser local de frequentes exercícios.
As luzes que iluminavam a maior parte da base ainda estavam apagadas. Aproveitou a oportunidade para explorar as dimensões da unidade e colocar as ideias em ordem, contudo, ao aproximar-se da ala que levava ao salão principal, se recordou dos terríveis acontecimentos ocorridos durante a noite anterior, na recepção como os mais novos membros da unidade. Elas dificilmente seriam esquecidas.
Calisto, com uma ira indomável e um sorriso cruel estampado em uma face assassina, agrediu o Meio-sangue, naquele lugar, poucas horas antes. De início, todos os Demônios esperavam apenas uma breve cerimônia, em que os novatos tomariam o conhecimento de que internamente existia uma clara superioridade da raça, receberiam um tratamento similar ao que encontrariam em sua estadia no esquadrão e encerraria com a nomeação de adjetivos pejorativos pelos quais seriam chamados.
Ao entrar, Calisto logo entendeu a situação. Sem nenhum aviso prévio, prontamente se encarregou de realizar esse rito de passagem que consistia em salientar a autoridade da parcela elitizada da ordem. Ninguém esperava uma atitude tão drástica, ainda mais de Calisto, que nunca demonstrou grande participação nas atividades do círculo.
Quando Esfer começava a pensar em voltar para o alojamento, percebeu o aceno de Barock. O Caça-contrato indicava para que o novato fosse em sua direção, onde treinava com uma longa espada.
Barock, como todos na unidade, tinha uma fisionomia humana, contudo, era enorme se comparado aos demais e demonstrava ser dono de uma grande força física ao portar, sem dificuldades, uma espada colossal. Carregava consigo diversas armas como um verdadeiro arsenal ambulante que impunha respeito a qualquer adversário que atravessasse seu caminho.
— Parece angustiado, Cascalho — disse Barock para Esfer.
Durante a cerimônia de entrada, assim Teslan o nomeou.
— Foi uma noite turbulenta, Barock, não é?
Ele acenou novamente sem mostrar muita importância, estava focado em seus movimentos com a enorme espada forjada com um pouco de aço godafer, o qual tinha famosas propriedades que permitiam causar maiores danos contra Demônios em relação a armas comuns. Essa capacidade tornava muito elevados os gastos em adquirir produtos feitos desse material e as proporções da lâmina justificavam sua concentração em cada movimento.
Barock, após soltar a espada e pegar uma fina e densa barra de ferro, perguntou:
— Como está o pequeno?
O Meio-sangue, como todos os Impuros que acenderam a ordem dos Caça-contratos, agora atendia por um novo nome que lhe foi imposto, em seu caso Calisto o intitulou de Cão, assim seria chamado pelos outros membros da irmandade.
— Se recuperando no alojamento. — Esfer baixou a cabeça.
— Sua veterana sabe ser intensa, sempre que lhe convêm.
— Ontem pudemos ver isso bem de perto. — O olhar do novato se tornou mais distante à medida que apertava os punhos.
O Demônio coçou a barba, pensativo.
— Calisto tem chamado a atenção nos últimos dias, não é do feitio dela ser tão empenhada nas atividades do batalhão, ouvi inclusive que ela também os avaliou na torre, com Teslan e Olfiel.
Teslan, que já partia ao encontro dos dois, se intrometeu na conversa, percebendo os olhares desagradáveis de Esfer.
— É complicado entendê-la. Parece que muitos mistérios rondam seu passado.
— Você também está agindo diferente do costume. — Barock deu meia dúzia de passos e encarou o colega com um sorrisinho atrevido. — Por acaso está, de alguma maneira, envolvido com ela?
— De modo algum — negou, erguendo as mãos. — Também desconheço os motivos da sua recente mudança.
— Qual é a função dela na unidade? — perguntou Esfer. — Falam como se ela não pertencesse ao esquadrão.
— É quase isso — respondeu Barock, antes de partir horizontalmente um espesso bloco de pedra com a densa barra de ferro. A poeira que se ergueu incomodou um pouco seus colegas.
Teslan dispersou um pouco do pó movimentando uma das mãos.
— Calisto é uma Predadora. O mestre da ordem contou que a conheceu durante uma visita ao mercado negro, como desempenhava frequentes serviços passou a ficar por aqui.
— Um Demônio-predador? Os que são caçados por todo império?
— É… são uma linhagem de Demônios poderosos, alguns possuem a capacidade de manipular sangue, a qual os torna muito temidos.
Barock escolhia com cuidado sua próxima arma.
— Existem boatos de que ela era chamada, nas áreas mais próximas da Grande Muralha, de a Devoradora.
— Tenha cuidado com ela. — Teslan admirou o horizonte. — O mau acompanha aquela Demônia. — Seus olhos vermelhos e distantes ficaram gravados na cabeça de Esfer.
Com o término da conversa, o novato decidiu retornar para o alojamento porque sabia que não seria requisitado para exercer qualquer função referente às atividades como integrante da unidade naquele dia.
As tarefas desempenhadas pelo esquadrão eram a fonte de sustento de todos, o trabalho nunca faltava. A rotina dos membros era intensa e as falhas punidas de forma severa, especialmente para os Impuros. No entanto, sempre que alguma folga surgia, os Caça-contratos passavam seu tempo livre como bem entendiam, sem qualquer sermão do mestre Latrev. Embora trabalho e cooperação fossem duas palavras próximas, Esfer sentia na pele o abismo que existia entre Impuros e Demônios.
Ao retornar, se deparou com o alojamento ainda tomado pelas sombras, avançou pela entrada e pôde ver a imagem de seu colega ainda debilitado. Os moradores da ala dos Impuros carregavam em suas almas as marcas de uma realidade repleta de amarguras que consumiam devagar qualquer vislumbre de dias melhores. Nessa atmosfera pesarosa, as paredes pareciam mais desgastadas e os dormitórios ainda mais singelos.
Era difícil compreender o Meio-sangue, agora chamado de Cão. Sua postura sempre foi de um exímio observador. Era uma figura arredia e a atmosfera cercada por recorrentes perigos, que alimentava a desconfiança que pairava no ar, apenas agravou isso. Ninguém sabia nada sobre seu passado e entender o que se passava em sua cabeça sempre era algo difícil.
Esfer caminhou até um dos Impuros.
— Como ele está?
— O novato está se recuperando bem — disse “Verme”, um dos residentes com quem havia conversado pouco antes do incidente ocorrido na noite anterior. Todos os Impuros do esquadrão atendiam por nomes que lhe foram impostos.
— Nem mesmo aqui podemos dizer que estamos seguros — murmurou, enquanto olhava para os lados.
— Ele vai ficar bem… O que mais me preocupa é a nossa situação, o tempo vem sendo o nosso maior inimigo. Tudo o que aconteceu… Vocês são novatos, em breve entenderão.
— Não é a melhor coisa para falar a alguém que acabou de chegar. — Ele observou da entrada os membros presentes.
— Se me permite, vou ajudá-lo — falou Verme enquanto via o aceno de um segundo Impuro, que pedia seu auxílio.
Esfer aproveitou a oportunidade para conversar com Cão que estava sentado no chão, com as costas escoradas em uma parede, trocando uma das bandagens. Seu corpo moreno exibia as diversas marcas deixadas por Calisto.
— Como se sente?
— Vou sobreviver…
— Teremos que ser fortes — disse Esfer, agoniado.
— Aquela desgraçada vai me pagar — afirmou Cão, ao fechar o punho e expor seus dentes de ferro que neste momento pareciam ameaçadores. — Aposto que também foi ela que roubou minha espada naquela confusão.
— Tenha mais cuidado com o que fala, antes que ela venha aqui te pegar.
— Olhe ao redor, nada de bom nos espera aqui. Não podemos confiar em ninguém.
— Um problema por vez, aposto que antes sua situação era ainda pior — alegou o companheiro em voz alta, como se falasse para si mesmo.
— Já começo a ter minhas dúvidas.
Esfer esfregou uma das mãos na nuca na tentativa de aliviar a própria tensão.
— Melhor aproveitar o tempo para esfriar a cabeça, enquanto ela ainda está em cima do pescoço.
A dupla sequer havia recobrado a compostura quando passou a ouvir estranhos ruídos que vinham mais ao fundo, semelhante a um choro agoniante. Como estava amanhecendo e havia pouca iluminação, boa parte do casebre ainda estava coberta pelo breu. Entender o que se passava no outro extremo do alojamento se tornava uma tarefa ingrata.
Curioso, Esfer foi averiguar o que acontecia. Seu colega, embora claramente incomodado, apenas ignorou o que ocorria adiante.
— Está tudo bem? — perguntou ao Impuro que, há poucos instantes, havia recebido os cuidados de Verme.
Ele se chamava “Esquerdo” e possuía uma ferida em uma das mãos. Esse residente, em específico, passava muito tempo acompanhando Galezir. Os dois estavam longe de serem amigos, porém o Demônio via que o pupilo possuía um senso de dedução afiado, habilidade benéfica em diversas situações. Era prudente sempre que possível ter um conselheiro competente para discutir questões que envolviam perigos e contorná-las, algo bem recorrente quando se está habituado a viver com atividades percalças na agitada e tortuosa cidade dos Demônios.
Em resposta ao questionamento do novato, Esquerdo somente gesticulou indicando a aproximação de alguém.
— Algum problema? — disse “Cinzento” que surgiu da ala dos fundos, que continuava tomada pelas sombras.
— Você não me parece bem.
Cinzento levou uma das mãos à testa.
— Estou com um pouco de febre, isso tem acontecido com alguma frequência nos últimos dias.
— Cuidado, não seria a febre do demônio?
— Não é nada disso, não se preocupe, logo eu ficarei bem. O mesmo vale para Mitir. — O amigo apenas o respondeu com sorriso gentil, como se tentasse esconder um grande sofrimento.
Por alguns segundos, o silêncio reinou absoluto, como se os lamentos dos dias enfadonhos e cruéis fossem agora pesos em seus ombros que os afundavam à medida que aceitavam um triste fim dentro daquelas paredes escuras e desbotadas.
— Eles nos tratam como bem entendem, somos peças descartáveis — argumentou Esquerdo.
Esfer se virou na sua direção.
— Sim, nossa situação não é das melhores.
— Também somos Caça-contratos, mas os Demônios nunca nos viram como iguais. Penso às vezes que eles se esqueceram do objetivo da irmandade há muito tempo… Aos poucos começo a esquecer o nosso lugar aqui. Possuímos os mesmos direitos.
— Acabar com as classes guerreiras? O que seria o mal desse mundo? — perguntou em tom de deboche.
Esquerdo o encarou com um olhar cauteloso.
— Cuidado com o que fala, até as paredes têm ouvidos por aqui. — Ele se aproximou e sentou perto de Esfer. — Quem contou isso?
— A doida da Olfiel.
— Aquela desmiolada… Não a culpo. Vespaguem é uma farsa. Vivemos em uma mentira e nem percebemos mais isso, somente aceitamos calados — disse Esquerdo.
— Sinto que vamos enlouquecer.
— Nossa sentença foi traçada assim que nascemos em Vespaguem.
“Bolor” entrou no alojamento e logo resolveu intervir.
— Chega! Um problema por vez. Por acaso quer arrumar confusão? Justo agora… sabe o que aconteceu.
Esquerdo se calou e abaixou a cabeça, com um ar melancólico.
Todos os Impuros que pertenciam ao esquadrão estavam reunidos. Esfer, atordoado com os relatos de seu infeliz companheiro, olhou para todos os presentes se perguntando o que o destino os reservava. Contudo, não teve muito tempo para realizar tais questionamentos, porque subitamente foi interrompido ao ouvir algo cair no chão. Era a mochila de Bolor que acabava de revelar uma série de objetos e equipamentos para a expedição agendada para o dia seguinte, rumo ao lado negro da Grande Barreira. Sua primeira missão pela irmandade.