Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 5: Fosso dos Enjeitados

— Finalmente os dois começaram a se dar bem — disse Teslan, conforme Olfiel e o Meio-sangue regressavam até a sacada da torre.

— É falta de educação xeretar e não seja exagerado — respondeu a Demônia, olhando para Esfer, parado ao lado de Teslan.

Tanto Olfiel quanto Teslan emanavam uma certa cordialidade apesar de não esconderem uma pequena arrogância enquanto observavam de cima a baixo os novatos.

Olfiel levou as mãos as costas e se inclinou para frente, com uma expressão presunçosa em suas feições morenas.

— Parece que já escolhemos os novos bichinhos.

— Do que você nos chamou? Demônia — rebateu Esfer.

— Eu e Teslan selecionamos os dois, agora fazem parte dos Caça-contratos.

Teslan bateu com delicadeza uma pequena prancheta na cabeça da companheira. Sabia que algum curioso poderia ouvir a conversa.

— Somos os encarregados de orientá-los.

— Agora todos estamos no mesmo barco — comentou a Demônia com um sorriso cheio de malícia.

— Que animador…

— Deixe de fazer drama. Saiba que apesar de ter se tornado uma das espadas do Fosso, era possível que alguém o arrematasse, caso pensasse que poderia lucrar alguns trocados. Trate de melhorar essa cara porque corria o risco de ser sujeito a todo tipo de serviço nas mãos de outros compradores.

— Enquanto vocês conversavam, eu resolvi as nossas pendências por aqui. — Teslan abanou a poeira de seu chapéu negro. — Espero que já estejam prontos para partir.

— Imagino que não teremos uma vida fácil, não é? — perguntou Esfer.

— Logo saberão — respondeu Olfiel que se divertia com cada pergunta.

Com o término dos preparativos, partiram rumo à base dos Caça-contratos, situada em meio a um emaranhado de favelas que povoavam grande parte do Fosso dos Enjeitados. No caminho, passaram a ouvir as primeiras explicações referentes às atividades exercidas pela ordem:

— Já devem estar a par sobre as tarefas realizadas aqui, caso contrário, não iriam tentar se matar sem motivo — falou a Demônia, sem nenhuma empatia pela dupla.

— Deveríamos? — questionou o Meio-sangue, com uma voz debochada.

— Basicamente as tarefas que desempenhamos estão vinculadas a nosso ofício como mercenários. Executamos as missões pelas quais somos contratados e atuamos, sempre que convém, como caçadores de recompensas. Porém, também realizamos os mais diversos empreendimentos — contou Teslan.

Esfer olhou para o Meio-sangue.

— Parece que teremos muitas surpresas…

— Cuidado com o que procura — alertou Olfiel, avaliando as intenções do novato.

— Estamos chegando. — Teslan assumiu a dianteira.

A base era antiga, feita de pedra e suas amplas dimensões lhe davam um ar imponente, diferente das simplórias construções ao redor. Na entrada estava um Demônio de vigia e um Impuro que o acompanhava.

— Galezir, estou trazendo os novatos — falou o Caça-contrato que apontava para o grupo a suas costas.

— Vamos, entrem — respondeu Galezir sem dar muita importância.

Cruzaram pelos portões de ferro e adentraram por um corredor que seguiu até um amplo salão com mesas e cadeiras que constituía um espaço semelhante a uma taberna, onde estava um atendente de prontidão. Um pouco mais afastado, outro membro passava o tempo livre, sem dar nenhuma atenção para a chegada dos visitantes.

— Kairom, estou de volta — disse Teslan.

— Então estes são os escolhidos? — Kairom via Olfiel se retirar.

— Tenho que colocá-los a par de como as coisas funcionam por aqui — alegou, já apoiado no balcão.

O atendente desviou os olhos dos dois novos membros da irmandade.

— Imagino que sim.

“O que eles estão escondendo?”, pensou o Meio-sangue.

Teslan não perdeu tempo e conduziu a dupla por um novo corredor que os levou até um grande pátio. Enquanto contornavam o terreno, viram uma figura morena e robusta, não muito distante, que treinava em campo aberto.

— Este é Barock, outro membro da unidade. Vejam. — Teslan apontou para a choupana de madeira próxima ao Demônio que praticava. — Lá Dibian, o Xamã do esquadrão, passa praticamente todo o dia recluso manipulando frascos e poções.

— Conheço Alquimistas, mas nunca vi um Xamã de perto — comentou Esfer.

Ao dobrarem no final do corredor, viram à direita um resquício de resplendor em meio a uma imensidão que já havia perdido seus dias de glória. Uma construção amarronzada, luxuosa, dona de um longo jogo de escadas que conduziam a entrada, exibia um sopro de vida naquele cenário apático.

— Aquelas são as instalações de Latrev, líder da unidade, mas não se animem, o espaço de vocês não está longe.

Pouco depois, a caminhada chegou ao fim.

— Chegamos? — perguntou o Meio-sangue, olhando torto.

— Aqui são suas instalações, junto com os demais Impuros. Os outros membros retornarão mais tarde. Não esqueçam de voltarem à sala de recreação quando a noite chegar — falou Teslan antes de sair.

Os dois adentraram o extenso, porém desgastado, casebre de madeira, que era o recinto dos Impuros, localizado em um espaço isolado dos demais membros da unidade.

Não precisava ser um observador aguçado para constatar que havia uma clara distinção, apesar de todos serem considerados membros da irmandade, os Impuros eram tratados muitas vezes com indiferença, em parte por não serem descendentes da Grande Chama, mas o fator principal que gerava grandes disparidades era a lei do mais forte que regia Vespaguem, a qual consolidava um imenso abismo entre Demônios e porcos. Fato que estabelecia uma supremacia internamente.

No alojamento encontraram outros moradores que os encaravam com desconfiança. Esfer procurou conversar com um dos residentes que tossia.

— Você está se sentindo bem?

— Esse lugar é perigoso. Não deviam ter vindo até aqui. — Ele se afastou devagar, mantendo em seu semblante um olhar distante.

— Como você se chama?

— Não falaram nada para vocês? — Um segundo integrante o analisou dos pés à cabeça.

— Mais surpresas… — disse o Meio-sangue para o colega, com tons de ironia.

— É melhor descansarmos — afirmou Esfer distanciando-se de seus veteranos.

— Tem razão, o mesmo vale para Mitir — concordou o adoentado, sem entender a situação.

O Meio-sangue também se afastou, preferiu evitar contato até que estivesse certo que o lugar era seguro.

 

☼☼☼☼

 

Conforme as orientações passadas, ao cair da noite, os dois retornaram para a área mais ampla do esquadrão, onde Kairom atendia os outros membros. Local que além de receber os integrantes da ordem, também era utilizado para periódicas reuniões informais.

Chegando lá, além dos rostos conhecidos, avistaram seis novos membros.

Teslan se aproximou dos recém-chegados.

— Estão quase todos aqui.

— Por que tanto alvoroço? — perguntou o Meio-sangue, ainda arredio.

— Você entenderá em breve, por hora descanse. Vamos, sentem-se.

Os dois escolheram um lugar discreto e acataram o pedido.

Não demorou para uma nova presença surgir no salão. Pela entrada principal entrou uma bela e alta Demônia, que ostentava uma pele alva e longos cabelos castanhos presos como um rabo de cavalo, porém sua imagem não escondia uma sensação ameaçadora que ecoava por todo o ambiente, dando um aspecto mais sombrio as antigas paredes. De prontidão, os demais aguardavam receosos as surpresas que poderiam acompanhar seu temperamento tempestuoso.

 

 

Era Calisto que adentrava o local. Após observar todos, direcionou-se rumo aos novos membros que mais cedo com seu auxílio foram avaliados.

— Vejo que os dois já se sentem em casa.

Os olhos de Calisto lentamente ganharam a tonalidade vermelha. O Meio-sangue logo estranhou a presença hostil que emanava da Demônia.

— Estamos aqui para colaborar — explicou Esfer que mantinha a cautela redobrada.

Ela sorriu e o empurrou para trás.

— Vocês não pertencem a esse lugar.

— Cuidado, Esfer — alertou o jovem Predador.

— Algum problema, cãozinho? — desdenhou Calisto.

— Cãozinho? Como assim?

Sem hesitar, Calisto o golpeou no estômago, fazendo-o cair de joelhos, em agonia.

Surpreso, Esfer esboçou uma reação, mas antes que pudesse intervir, ela o lançou para trás com um violento chute. Mesmo contendo sua real força, Calisto demonstrava ser muito superior a qualquer um dos dois.

O Impuro ainda tentou reagir, porém foi alertado por Teslan a recuar:

— Se preza pela sua vida, não deve irritar a Devoradora, caso o fizer, certamente será seu fim.

— Desgraçada… — O Meio-sangue conseguiu sacar a espada. — Vou te ensinar a ter boas maneiras.

Ele desferiu dois golpes com a arma, mas Calisto pulou diagonalmente para a esquerda e para direita, desviando com facilidade de seus movimentos que ficaram lentos com o golpe que recebeu. O sorriso estampado no rosto da Demônia mostrava que ela parecia brincar com o novato.

— Depois do que aconteceu, pensei que você seria mais divertido.

Kairom, que sempre desempenhava a função de monitorar a sala, bateu as mãos contra o balcão de bebidas.

— Não deixem essa louca sujar o carpete com o infeliz! — Ele ergueu um copo cheio para o alto. — Bebida de graça para quem resolver a situação.

Os presentes desviaram o olhar, abaixaram a cabeça ou tomaram um profundo gole de bebida. Ninguém mexeu um músculo para acatar a ordem.

O Meio-sangue visualizou uma abertura e atacou, porém, com uma agilidade sobre-humana, a Demônia o acertou com um chute nas costelas que soou como um raio pelo salão.

— O… que? — A momentânea falta de ar, enquanto se contorcia no chão, o impediu de expressar suas emoções em palavras.

Ela o conteve e o desarmou.

— Vamos ver agora quem aprenderá boas maneiras, cãozinho.

Os pés pesados de Calisto passaram a pisotear a cabeça do novato, que começou a sangrar. Um silêncio impenetrável se formou, interrompido ora pelos golpes de Calisto, ora pelos lamentos do Meio-sangue.



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