Volume 1
Capítulo 4: Falsos Demônios
— Vejo que já acordou — disse a Demônia.
— Como poderia dormir com esse capiroto me encarando a noite toda? — Ele apontou para uma pequena fera reptiliana que rastejou pelo cômodo antes de desaparecer no ar.
O quarto era simples e meio caído, as paredes pareciam um pouco desbotadas, as camas surradas e a mobília já havia visto dias melhores. Estavam em uma hospedaria, por hora, longe de problemas.
— Deixe de ser chorão.
A Demônia puxou e estendeu a cortina que dividia as duas camas.
— Depois de ontem não me espantaria se esse bicho arrancasse a cabeça de alguém.
— Tenho certeza que ele é menos traiçoeiro que você — disse ao soltar o casaco de couro sobre o suporte da cortina.
O Meio-sangue discretamente acompanhava uma silhueta quase imperceptível que parecia se trocar do outro lado.
— Quanta confiança… — Suspirou. — Afinal, como eu devo chamar a poderosa Devoradora que tanto temem pela cidade.
— Calisto — respondeu contrariada. — Mas evite maculá-lo com essa boca suja. Quero evitar qualquer transtorno.
— Não a culpo. — Espiou as ruas pela janela. — Depois de toda aquela confusão, devemos ser cuidadosos.
— Isso é culpa sua. Ninguém o acharia se não causasse problemas.
— Sabe muito bem que não podemos nos esconder para sempre.
— Isso logo não será um problema, estamos indo para a Cidade Baixa — disse enquanto cobria as costas com a blusa.
— Estamos? Até onde me recordo ainda não aceitei nada.
— Você não tem muita escolha e pelo que vejo já pode caminhar. Apesar de ser um verme, você ainda tem sangue de Demônio.
— Foi você que veio me pedir ajuda.
— Eu fui te matar, lembra? Afinal, por que você está tão despreocupado? Somos Demônios-predadores, se esqueceu disso também?
— Só pensei que você não se mostraria uma figura tão… vulnerável. — Logo percebeu uma silhueta ameaçadora se virar em sua direção.
— Não acha que está sendo muito ambicioso?
— Apenas quis dizer que, apesar de toda essa pose, você não parece me ver como uma ameaça.
Ela saiu enquanto ainda vestia o casaco marrom novamente.
— É isso que está te incomodando — falou estalando os dedos.
— Na verdade… — Seus olhos ganharam uma coloração vermelha. — É porque eu ainda não me livrei de você.
A Demônia soltou um suspiro debochado.
— Chega de conversa fiada. Temos trabalho a fazer — alegou, ao sair.
— Não me ignore assim — reclamou, seguindo Calisto.
Caminhar pelos subúrbios de Vespaguem se revelou mais uma vez um ambiente inóspito para aqueles considerados fracos. A vida dura refletia nas feições de muitos, aspecto reforçado pela tensão que pairava no ar, gerada pela febre do demônio, desaparecimentos pela cidade, avistamentos de Sombrios e a insatisfação dos Demônios que participavam das atividades realizadas fora da Grande Barreira de Vespaguem, principalmente das classes guerreiras mais baixas.
De tempos em tempos era possível observar grupos de Impuros sendo escoltados por Patrulheiros, fato que se tornava mais incomum conforme se distanciavam da Grande Barreira de Vespaguem.
Ao alcançarem uma grande rua, tomada por um intenso vai e vem de carruagens e pedestres, ficou difícil acompanhar os passos de Calisto. Logo a rua se desdobrou em outras, menores e apertadas. Se esgueirar por passagens lotadas se tornava uma atividade quase sufocante.
— Por aqui — disse a Demônia, ao dobrar em uma nova esquina.
Depois de pegarem um beco e passarem entre algumas grandes construções, alcançaram uma espécie de portão circular que dava forma a um túnel com um visível declínio. A entrada estava aberta e os guardas não pareciam preocupados em fiscalizar a conduta dos presentes que se apinhavam pela passagem, tornando uma tarefa ingrata não trombar com um ou outro durante a caminhada.
Aos poucos o túnel se tornava mais largo e amplo, revelando-se uma longa passagem subterrânea, iluminada por cristais luminosos alocados dentro de lamparinas douradas penduradas no teto. Um novo declive no trajeto marcou o momento em que uma escadaria ficou visível e um frenesi de vozes e passos apressados ganhou forma.
Ao cruzarem o longo jogo de degraus e passarem por um novo portão de ferro, se depararam com uma grande vila subterrânea modelada no formato de um caldeirão, suspensa sobre um pequeno abismo, formando um labirinto de estreitas passagens que se entrelaçavam uma nas outras, as maiores, por vezes, ganhavam a forma de uma espiral.
Havia vendedores por todas as partes, oferecendo os mais variados produtos, desde frutas e temperos até armas e produtos proibidos. Era inevitável ouvir ao fundo a palavra batata ou rabanete.
Quanto mais perambulavam pela imensidão de lojas e favelas, mais se mostrava evidente as grandes proporções de uma verdadeira cidade que se ramificava até muito além do que os olhos alcançavam.
— Batata, rabanete, batata, repolho, rabanete, repolho, batata…
— Pare de resmungar, não quero ouvir essa ladainha dos infernos. Agora mantenha a boca fechada e trate de se preparar.
— Me preparar? Para que?
— Isso não importa mais. Chegamos. É lá dentro — afirmou ao apertar o passo e iniciar a travessia de uma passarela suspensa que seguia até o topo de uma ampla torre de pedra, circular, composta por vários andares.
Enquanto chegavam, foi possível observar abaixo dezenas de corpos que eram recolhidos de uma arena também circular, que lembrava uma espécie de coliseu. No centro da arena, do terreno de terra batida, os corpos mutilados eram removidos, na mesma medida que a multidão na plateia deixava o local. Um espetáculo macabro parecia chegar ao fim.
— O que aconteceu aqui? — perguntou o Meio-sangue.
— Apenas um Exame de Seleção. Os Impuros que se destacam costumam ganhar uma vida um pouco melhor. Na Cidade Alta, a maior parte das ordens guerreiras também está realizando eventos semelhantes.
— A cidade realmente está um caos.
— Isso não é nenhuma novidade, agora vamos, nosso destino está em frente.
O caminho os levou direto para o andar mais alto da torre, a parte melhor estruturada da construção. Assim como toda a torre, o andar era circular, porém dividido em dois níveis: No inferior, havia centenas de bancos e mesas, uma taberna, além de uma bancada onde um grupo de Demônios parecia comandar tudo. Os guardas, que vigiavam os lutadores que duelavam em um ringue, também animavam a pequena multidão com ofertas e muita bebida. O superior se destacava pelos camarotes e ornamentos das mais variadas qualidades, espaço utilizado por Demônios interessados na seleção e na negociação das peças abaixo. Mercenários, mercadores, Demônios em busca de um bom servo, além de curiosos prontos para investir se vissem uma oportunidade promissora que beneficiasse seus bolsos.
Do alto, muitos curiosos vigiavam atentos a progressão dos acontecimentos. Dois observadores em especial demonstravam grande interesse por alguns dos candidatos mais promissores que lutariam.
— Os pequenos dessa leva são cheios de energia — disse uma Demônia de pele morena e longos cabelos pretos, dona de curvas atléticas que realçavam sua postura truculenta. Chamada Olfiel.
— Coitados, talvez seus cuidados sejam mais traiçoeiros que essa arena — alegou Teslan, um Demônio calmo e esguio, importunando a colega.
— Não ligo para as palavras de um exilado — retrucou, na tentativa de alfinetar o companheiro.
— Vejo que estão mostrando serviço para variar — disse Calisto, ao chegar.
— Olhe como fala. — Olfiel cruzou os braços. — Você está longe de ser a integrante mais prestativa do esquadrão.
— Saiba que tenho andado bastante ocupada, bem mais do que você. — Ela apontou para trás. — O Meio-sangue aqui fará parte da unidade.
— Esse rato de sarjeta?
— Mais tarde acompanharei os novatos, cuidem do restante, tenho assuntos para tratar — disse Calisto enquanto saía, emanando um ar de superioridade.
Teslan levantou uma sobrancelha, curioso com a mudança de hábitos da colega.
— Não é do seu feitio ser tão voluntariosa nas atividades do esquadrão — falou o Demônio para Calisto.
— Quem se importa com isso? — perguntou Olfiel com tons de ironia. — Deixe ela para lá. Vamos logo repor os novos bichinhos.
— Entendo o desespero deles… às vezes não temos para onde correr.
— Parece que as coisas estão evoluindo. — Olfiel se agarrou em uma das guardas de proteção, com os olhos fixos no desenrolar do combate.
Um dos Impuros saía vencedor do duelo da rodada. Era alto e magro, sua pele clara e apresentava alguns hematomas espalhados pelo corpo, principalmente nas mãos e no rosto. Seu nome era Esfer. Estava cansado e ofegante, mas ainda esboçava um olhar indomável apesar da posição em que se encontrava.
— Vamos. Você ouviu, temos trabalho a fazer. — Teslan olhou para o Meio-sangue. — Isso também inclui você.
— Que ótimo…
— Não seja tão debochado, você ainda não provou nada a ninguém — alegou Olfiel.
— Vamos descer, não resolveremos nada parados — falou Teslan.
— Calisto sempre age sozinha, nem costuma ser participativa com as atividades do círculo. Estou surpresa que ela tenha feito questão de arrastar alguém para cá — comentou Olfiel para o novato.
— É uma longa história… e nada agradável.
— Talvez a gente possa conversar sobre isso outra hora, agora temos assuntos mais urgentes.
Eles baixaram para a ala inferior, contornaram a pequena arena e desceram para o penúltimo andar. No espaço havia um conjunto de tendas onde transitavam guardas, lutadores e alguns compradores.
— Veja. — Um sorriso malicioso surgiu nos lábios de Olfiel. — Aquele será seu novo coleguinha.
— Vamos, se mexa — ordenou um dos guardas, que conduzia o vencedor da última luta até uma das tendas espalhadas pelo ambiente.
— Não precisa se incomodar, ficaremos com ele. — Teslan se aproximou com passos lentos, sacou de suas vestes negras a permissão que recebeu da ordem e ajeitou o chapéu de couro e as longas mangas, antes de a entregar ao vigia.
— Cuidado, esse verme é problemático. Se fosse você, daria umas pancadas nele agora mesmo — falou o Demônio.
— Acredito que nos daremos bem, não é? — disse Teslan para o Impuro. Ele apenas respondeu o Demônio com um olhar intimidador, contrariado com a situação. — Muito bem, só falta… Esperem. — Levantou um braço. — E Olfiel? Onde essa doida se meteu?
— A colega de vocês foi para lá — afirmou o guarda com o braço estendido rumo às escadarias para o andar superior. Os outros logo regressaram.
Diante do ringue de combate, um dos organizadores, do alto da bancada de madeira, acalorava os ânimos dos presentes, no centro das atenções.
— Vocês já estão cansados das lutas desses vermes, não é? — A grande maioria concordou com um berro entusiasmado. — Então o que acham de animarmos um pouco as coisas. No canto direito eu os apresento Bardeg, o touro negro.
Um imponente Demônio entrou na arena arremessando a camisa para cima. Alto, moreno, musculoso, dono de olhos castanhos e profundos.
— Colocarão um Demônio contra um mero Impuro? — falou um dos presentes.
— Pensei que isso era contra as regras — comentou outro.
Na plateia, Olfiel surgiu na frente do Meio-sangue e antes de responder qualquer pergunta, tomou sua espada. Dois guardas se aproximaram e o agarraram sem qualquer aviso prévio, em seguida, o jogaram no ringue contra sua vontade.
— Ele lutará contra esse Meio-sangue — anunciou o organizador.
— Mas como eles descobriram? Olfiel… — resmungou o jovem enquanto procurava a Demônia, com olhos famintos.
Com o soar de um apito, Bardeg partiu ao ataque. Sua envergadura era maior e seus movimentos rápidos e calculados, um experiente guerreiro familiarizado com lutas corpo a corpo. Um, dois socos partiram na direção do Meio-sangue, os quais facilmente desviou. Contra-atacou com um chute alto que se perdeu no ar.
O Demônio desferiu um poderoso chute diagonal, mas o jovem amorteceu o impacto com o antebraço. Ainda em ataque, girou o corpo, acertou uma joelhada nas costelas do novato e tentou imobilizá-lo. Contudo, o Meio-sangue conseguiu agarrar seu braço e torcê-lo até levar o oponente ao chão. Porém, com sua elasticidade, Bardeg liberou a tensão do membro acompanhando o movimento. Seus corpos estavam suados e escorregadios, ambos rolaram no piso empoeirado antes de recobrarem a compostura.
Apesar de ser uma luta clandestina, os movimentos do Meio-sangue se mostravam ainda mais traiçoeiros que os de seu oponente. Parecia provocá-lo com cada investida, uma mera tentativa para desestabilizá-lo. Viver em Vespaguem era uma missão para os fortes, sabia que um lutador devia guardar um ou dois trunfos escondidos.
De repente, o Demônio parou e estendeu o braço direito, suas unhas se transformaram em longas garras castanhas e a musculatura de todo o corpo se tornou mais definida, realçada por algumas veias dilatadas sobre seus braços e testa. A maior parte de seu corpo foi encoberta por uma densa couraça.
Bardeg ativou uma habilidade que apenas alguns Demônios possuíam, chamada metamorfização. Sangues mais puros poderiam realizar feitos muito mais grandiosos, como alterar a própria natureza de seus corpos.
Com capacidades físicas sobre-humanas, o Demônio partiu como um estouro na direção do jovem, causando um rastro de poeira, que cresceu exponencialmente quando um barulho similar ao de uma explosão ecoou no momento em que os dois duelistas se encontraram.
Depois de alguns segundos, a face do Meio-sangue surgiu em meio à poeira. Seus olhos estavam vermelhos como rubis e as veias de seu corpo estavam dilatadas, especialmente nos braços e ao redor dos olhos. A silhueta de Bardeg desmaiado no chão ainda estava turva quando começou a se afastar da arena.
— O que aconteceu? — perguntou Esfer, na plateia.
— Chute no queixo — respondeu Teslan, olhando para o Demônio caído no chão. — É muito difícil se mexer com essa armadura, isso limitou seus movimentos. Tinha tudo para vencer se fosse mais cuidadoso.
O Meio-sangue se distanciou do ringue, queria sumir, qualquer presença o desagradava. Assim, os deixou para trás, ultrapassou a sacada e se aventurou pela encosta, antes de sentar em uma das marquises da torre, longe de todos. O forte vento que assobiava da superfície e o abismo de luzes alaranjadas a seus pés pareciam mais aconchegantes que suas companhias na torre. Porém, não demorou para Olfiel ir ao seu encontro com um sorriso no rosto.
— Sabia que você não me desapontaria — disse enquanto o alcançava, se equilibrando de pé com passos travessos.
— O que significa tudo isso? Me diga! Não venha me dizer que você aprontou toda essa confusão por um mero capricho.
— Eu só estava entediada — disse com uma voz falsa.
— Devolva minha espada, sua doida — exigiu, conforme a tomava de suas mãos.
— Na verdade não foi por mal. Nós só queríamos testá-lo.
— Nós quem?
— Calisto não te explicou nem isso?
— Fala como se fosse possível entender aquela criatura.
— Pois bem. — Ela se curvou e vez uma referência debochada. — Seja bem-vindo aos Caça-contratos. — Em seguida, tirou da mochila um manto que ostentava o símbolo de um esqueleto sem metade da cabeça e o ergueu para o alto com uma das mãos até que começasse a tremular com a ventania, assim como seus longos cabelos negros. — A irmandade que luta contra as classes guerreiras e o mau desse mundo.