Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 3: Mundo Caído

A quietude da noite parecia alimentar uma sensação melancólica e nostálgica em seu peito, não conseguia se livrar do gosto indigesto em sua boca, que o perseguia como uma infortuna companhia, somente dos escritos negros gravados em sua pele, que já não eram mais visíveis.

Aqueles que um dia se arriscou a imaginar como seus companheiros se encontravam estáticos pelo chão empoeirado. Uma visão solitária, frequente para muitos Demônios-predadores, ainda mais para um Meio-sangue, rejeitado tanto por Demônios quanto por Impuros.

Seus olhos vermelhos e vazios se voltaram para a longa e fina espada que portava, feita do inestimável aço godafer. Sob a rala luz do luar, emanou de sua superfície prateada um pequeno reflexo que revelou uma boca impregnada de sangue. Mais abaixo, admirou o cabo vermelho que segurava, o qual ostentava a gravura de um touro indomável.

Uma das gotas que banhavam a imagem tremulou antes de lentamente começar a levitar sobre ela, como um corpo inanimado que ganhava vida. Logo outras ao redor, por todo o ambiente, pairavam sobre os cômodos do velho cortiço. Algumas se reuniram e adotaram a forma de uma espiral que se solidificou em uma espécie de estaca rodopiante que disparou, como uma flecha, na direção do Meio-sangue.

Sentiu uma brisa em seu rosto ao escapar por puro reflexo. Dezenas de projéteis romperam sobre o Demônio que ora desviava, ora os partia com sua espada, os quais ao tocarem a lâmina feita do mais puro aço godafer voltavam a sua forma líquida, liberando um pequeno vapor residual, como se queimassem.

Enquanto recuava às pressas, percebeu um corte no ombro causado por um dos projéteis. Dele uma espécie de praga se alastrava por sua pele, mas ao tocar o dorso da espada sobre a ferida, a maldição que o afligia foi neutralizada. Porém, em troca, deixou uma incômoda queimadura.

As massas de sangue que pairavam no ar cresceram de maneira espontânea e sobrenatural. Duas grandes espirais deram forma a lâminas que giravam de uma maneira ameaçadora, muito maiores e densas, capazes de dilacerar músculos e ossos, enquanto o Demônio fugia como podia das estacas de sangue.

Se desdobrando entre as lâminas e os projéteis que dançavam no ar, procurou uma saída, mas novas espirais bloqueavam o caminho. De uma das janelas rompeu uma terceira lâmina, o Meio-sangue desviou sua trajetória parcialmente com a espada antes de conseguir se esquivar ileso, por pura sorte.

Ciente que não era capaz de partir as lâminas maiores com um único golpe, alcançou o segundo andar. Lá estava escuro, muito mais que o normal. Percebeu que o barulho no andar de baixo havia cessado, forçou a vista e viu um pequeno fio de luz transpassar por uma das fissuras no teto, ela logo sumiu. Todas as saídas estavam lacradas por paredes de sangue.

Seus instintos sabiam que seu oponente finalmente estava próximo. De trás, se esquivou de uma traiçoeira investida e contra-atacou. Sua espada se encontrou contra as garras de uma criatura, as faíscas resultantes, por um segundo, iluminaram a face de uma medonha besta disforme, feita de sangue, dona de três pares de olhos, que rastejava como uma serpente.

— Maldição! Fique quieto e morra logo, seu verme escorregadio — alegou a besta rastejante, com uma voz rouca e medonha. — Nem faz ideia de quanta dor de cabeça me causou.

— Não fazia ideia que esse território já tinha um dono.

— Um dono? Olhe a bagunça que você fez! Depois de tudo que aconteceu, como ainda podem restar idiotas como você?

O Meio-sangue rolou para evitar um movimento da cauda pontiaguda da besta. Com um novo serpenteio, ela arremessou seis projéteis que se perderam no caminho ou desviaram contra a espada do Demônio.

— O que você quer?!

A criatura recuou e esticou seu pescoço, atenta. Parecia detectar algo.

— Nosso tempo acabou. Eles estão aqui. — A fera esguia regressou ao sótão esburacado, sumindo nas sombras.

As paredes que bloqueavam as saídas se dissiparam. O Meio-sangue voltou apressado para o primeiro andar. Estava inquieto. Em guarda alta, acompanhava com olhos atentos qualquer movimentação. Assim, mais à frente, avistou um Demônio moreno, de meia-idade, que o encarava com uma expressão de desdém. Trajava um manto cinza com o emblema de uma serpente, a marca da ordem dos Caçadores.

— Parece que você fez uma bagunça, sua praga.

— As coisas simplesmente aconteceram… Não queria fazer tudo isso, acredite — disse enquanto espiava as saídas com os cantos dos olhos.

— É mesmo? Já matei uns três ou quatro de vocês e todos falavam a mesma coisa. Mas os dias de sua laia já estão contados. — Seus olhos vermelhos se voltaram para o Meio-sangue.

Uma das janelas se estilhaçou quando um segundo Caçador rompeu como um raio, portando duas lâminas curvadas ligadas por uma corrente e usando um manto cinza, como o do companheiro. Surpreendido, o Meio-sangue se esquivou como pôde, com movimentos nada belos, dos golpes de rugiam no ar, até pular para o térreo.

Ainda caía, quando uma Demônia morena com cabelo curto e preto avançou com uma fina e longa espada. O Demônio-predador girou no ar e conseguiu deter a lâmina da oponente com a própria. Tentou fugir, porém, um quarto Caçador, que portava uma lança, bloqueou a saída.

— Não venham me dizer que ainda não deram jeito nesse magricelo.

— Trate de ajudar, seu imbecil.

— Cuidado! — O aviso antecedeu o momento em que duas grandes espirais vermelhas cruzaram em disparada, varrendo o que encontravam pela frente.

— Se mexam, molengas! Por acaso esqueceram tudo o que aprenderam? — falou o Caçador de meia-idade, que liderava o grupo.

Da parede às costas do Caçador mais velho, a besta reptiliana abriu passagem, abalando as estruturas do recinto. Ele apenas rolou para a direita, parando diante do Meio-sangue.

O Predador tomou a iniciativa, já próximo do oponente, saltou para a frente e girou no ar, mudando sua postura. O Caçador deteve o golpe com facilidade. Em uma combinação de explosão e agilidade em cada movimento, o Meio-sangue pressionava o experiente espadachim que adotava uma postura mais cautelosa. Na menor abertura, mandou o jovem para trás com um golpe de sua empunhadura.

— Seu velho desgraçado… — resmungou ao perceber um corte em seu lábio inferior.

Ambos trocavam golpes em curtos intervalos, em pé de igualdade. Seus movimentos eram mais traiçoeiros, porém o Caçador, com sua experiência, ditava o ritmo do embate. Com um chute rasteiro, o Meio-sangue o desequilibrou, mas a brecha que esperava não surgiu.

Seu oponente sorriu, curioso.

— Pelo visto você não é apenas um rato sujo. Se fosse, já estaria morto a essa altura.

— Talvez você tenha ficado velho… e senil — comentou, ao apontar a espada, deixando a mostra o emblema que adornava o cabo.

— Espera, eu conheço o símbolo dessa casa.

Um medonho berro agonizante antecedeu o momento que a besta reptiliana ultrapassou a parede ao lado, deixando um rastro viscoso por onde passava. Com a aparição, a dupla prontamente recuou.

Ela tentou fugir para o andar superior, porém os demais Caçadores seguiram seu rastro.

— Peguei — gritou o usuário da corrente ao rasgar, com um corte diagonal, as costas esguias da fera, em agonia.

— Idiotas, saiam daí! — avisou o capitão, empurrando para longe a Demônia de cabelo curto.

Uma Demônia de longos cabelos castanhos amarrados em um rabo de cavalo, dona de olhos vermelhos como rubis que se destacavam na noite e que trajava um longo casaco de couro marrom, rompeu por uma das janelas e avançou na direção do usuário da corrente. A espada dela foi detida pelo Caçador, porém da outra palma se materializou uma grande espada de sangue, criada como mágica, transparente como um cristal de vidro avermelhado, a qual se ramificou em dezenas de lâminas que, ao atravessarem o oponente, se expandiram ainda mais.

— O que?! Primeiro essa besta e agora uma Dominadora de Sangue?

— Olhe outra vez, estavam caçando a porcaria de um familiar. Esse poder e essa aparência…  Ela deve ser a Devoradora, que tanto falam.

— Isso não importa, vou vingar nosso companheiro — afirmou o lanceiro.

Os outros Caçadores ofereceram apoio e tentaram cercá-la, mas o Meio-sangue afastou o líder, do círculo.

Uma, duas vezes, as espadas se encontraram e rugiram.

— Vocês, Predadores, são os culpados por essa praga, por tudo… Eu os exterminarei, nem que seja a última coisa que faça.

— E vocês? Só pensam em si mesmos, desgraçados.

— Acabar com toda a sua raça será o primeiro passo para as coisas voltarem ao normal.

Sua postura, antes mais cautelosa, se tornou mais agressiva. Os golpes pareciam mais pesados e seu olhar mais amedrontador. Em uma dança mortal, ambos mantinham um sorriso sedento, como se divertissem com o calor da batalha.

Um estrondo similar ao de uma explosão se propagou quando o Meio-sangue amorteceu com a espada o golpe do experiente espadachim. Ao ver uma brecha, o Caçador o lançou para longe com um chute, demonstrando suas capacidades físicas sobre-humanas.

Caiu como uma pedra no cômodo onde o trio duelava.

— Imprestável… — disse com desdém a Dominadora ao olhar para o Meio-sangue.

— Talazel não me ouve. Precisamos sair! — gritou a Caçadora de cabelo curto.

— Não vou sair daqui antes de matar essa praga.

— De novo e de novo essa ladainha detestável. Essa maldita ladainha! Se querem tanto assim nos odiar, darei um motivo para lamentarem no além. — A Manipuladora de Sangue ergueu sua lâmina prateada para o alto e um emblema negro nasceu e percorreu suas extensões.

— Corram! — berrou o Caçador mais velho.

Quando ela cravou com ódio a espada contra o chão, uma mancha vermelha se alastrou velozmente pelo piso e pelas paredes, acompanhada por dezenas de lâminas de sangue que se propagaram com movimentos irregulares por todas as direções.

Dos destroços, o Meio-sangue surgiu em meio ao frenesi de espirais assassinas e surpreendeu o lanceiro que saiu com um profundo corte na cintura.

O líder dos Caçadores pegou o colega ferido e se afastou enquanto a velha construção entrava em colapso.

— Recuar! — gritou.

Em uma correria afobada e cambaleante pelos corredores turvos e que vinham abaixo, o Meio-sangue sentia sua perna latejar devido a um corte causado pela estranha técnica da Demônia de longos cabelos castanhos.

A destruição mudava a paisagem e o ambiente turvo apenas tornava mais difícil se localizar. Um vulto mais à frente parecia saber onde estava a saída. O seguiu, ofegante e mancando.

Do lado de fora não encontrou ninguém, mas os burburinhos assustados, causados por toda a confusão, indicavam que seus problemas se multiplicariam caso continuasse ali.

Olhou para a própria perna e viu que aquela incômoda maldição se espalhava, tentou usar mais uma vez o dorso da espada, porém ela queimava como ferro quente contra sua pele e a ferida era muito maior que a anterior. Não havia tempo, precisava se apressar.

Ferido e mancando, desabou exausto algumas quadras adiante, no interior de um velho armazém de madeira. Suava frio. Perdia as forças conforme o tempo passava e sua perna latejava.

— Parece abatido, Meio-sangue — provocou a Demônia.

Ele sacou a espada.

— O que você quer?

A Dominadora de Sangue, sentada sobre a guarda de uma das janelas, pulou e pousou, com um ar triunfante, na outra extremidade do galpão. Seus olhos vermelhos se destacavam na noite e seus passos despreocupados pareciam debochar do Meio-sangue.

— Olhe como fala. Não está em posição de fazer ameaças — alegou a Dominadora de Sangue, que fechou um dos punhos. O Meio-sangue soltou um grito agonizante. A encarava como uma fera, mas sem dizer nada. — Posso dar um jeito nessa sua ferida.

— Agora há pouco queria me matar, o que foi que mudou?

— Tenho certeza que muitos adorariam cortar seu pescoço, mas, no fim, você mostrou que não é um completo inútil… e precisamos de pessoal.

— Vocês quem? — Soltou um pequeno sorriso para disfarçar as dores. — Precisam da minha ajuda?

— Como sabe, a febre do demônio, os Sombrios, os sumiços pela cidade… vivemos uma caça às bruxas e os patos somos nós. — A Demônia desviou o olhar, como se evitasse encarar um velho fantasma. — Não somos os culpados sobre esses desaparecimentos, muito menos pela praga, mesmo assim em poucos meses os Demônios-predadores quase foram extintos. — Ela apertou um dos punhos, em fúria.

— Você não vai me deixar sair, não é?

— Os Caçadores logo te encontrarão novamente e será seu fim. — A Demônia pôs uma de suas mãos sobre o cabo da espada. — Mas as coisas podem ser diferentes, caso se alie a mim.

— Para que?

— Justiça. — Ela largou a espada e estendeu sua mão. — Venha salvar Vespaguem junto comigo.



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