Volume 1
Capítulo 2: Prenúncio
Uma certa inquietude era evidente no rosto de muitos Impuros que estranharam a demora para o início dos trabalhos diários. Estalos marcaram o momento em que a comporta foi desobstruída, permitindo o acesso do subterrâneo à superfície, especificamente ao interior de um grande galpão com portas e janelas lacradas. Pouco depois, o portão de ferro do cortiço também foi aberto, quando a rua ficou visível, logo perceberam que o número de guardas que os escoltavam nesse dia era reduzido.
— Não abaixem suas cabeças. Lutem por liberdade! Ouçam as palavras de nosso salvador. Fantasma será quem nos guiará para uma nova era — alegou um arauto que, lá fora, não muito longe dali, divulgava as palavras de um famoso e escorregadio Demônio.
O arauto era uma das figuras que causavam um grande alvoroço nas ruas, que obrigou os Patrulheiros a mobilizar parte da guarda para monitorar a área.
O ambiente turbulento e o trabalho dobrado dos Patrulheiros foram fatores que contribuíram para que, ao deixarem o Ninho, um empurra-empurra começasse quando parte dos manifestantes revoltosos correu em sua direção.
A comitiva contornou a confusão por uma estreita e sinuosa passagem formada pelas construções que se apinhavam. Passou por paredões corroídos pelo tempo e por figuras magras, esguias e maltrapilhas, que os encaravam com olhos receosos, levando Vromir a desviar ocasionalmente os seus.
— Para onde vocês acham que nós seremos levados hoje? — perguntou o novato, deixando transparecer em sua face seu desconforto com relação à miséria nas ruas que assolava aqueles que não possuíam a herança das chamas.
— Cavar, empilhar pedras, se arriscar no alto de uma construção. Quem se importa? — reclamou Melgar.
— Que animador…
E assim se fez. Em meio a gotas de suor, respirações ofegantes e dores que os faziam ora levar as mãos as costas, ora mudar de postura, as exaustivas horas lentamente passavam.
— Porcaria — resmungou Melgar, ao derrubar um denso e pesado bloco de pedra no chão.
— Rápido, pega isso, antes que vejam — falou Daigon.
— Já sei, inferno.
Com muito esforço, conseguiu erguer o bloco de pedra e carregá-lo com uma expressão de agonia no rosto.
— Tente não derrubar isso de novo.
— Talvez eu derrube você na próxima vez — murmurou. Na sequência, deu um pequeno encontrão no colega, aborrecido.
A conversa foi interrompida por dois Impuros que vieram ao chão. Lutavam e rolavam pelo calçamento de pedra. Vromir pretendia apaziguar a situação, porém desistiu logo que percebeu a aproximação dos Patrulheiros.
Os guardas rapidamente deram fim ao embate à base de chutes, empurrões e severos alertas. Mais preocupados com a retomada das atividades do que com a integridade dos prisioneiros que vigiavam.
— Ignore-os — disse Daigon para Vromir. — Isso acontece toda hora.
— Não vá se achando, quase todos aqui são bons de briga — comentou Melgar.
— Então por que você não faz alguma coisa?
— Ficou maluco? Aqui não é o melhor lugar para brincadeiras. Sabe que lutar contra Demônios é outra história. — Melgar observou com cuidado a armadura de placa de um dos guardas. — Ninguém aqui consegue bater de frente com um Patrulheiro.
Em resposta, Vromir apenas soltou um grande suspiro como se procurasse soprar para longe todas as suas frustrações.
— O que foi? — disse Melgar. — Ainda não se acostumou com a rotina daqui?
— Não é bem isso… Muita coisa está acontecendo na cidade ultimamente — respondeu, enquanto via um Impuro magro e sujo, sentado no chão, apoiado em uma parede, debilitado. Largado na rua, sem nenhum amparo.
Uma das muitas almas assoladas por uma praga que costumava atingir apenas a massa miserável de Vespaguem. Ele gemia e falava algumas palavras desconexas em um tom mais alto que um sussurro, estava pálido e seus olhos exibiam uma coloração amarelada. Essa estranha enfermidade que destruía aos poucos o infectado era chamada, na cidade-fortaleza, de a febre do demônio.
Uma pequena agitação adiante chamou a atenção dos presentes.
— Se aproximem! Amanhã, não percam essa oportunidade! Se alistem para ingressar na ordem dos Coletores! — anunciava um Coletor, segurando uma espécie de anúncio, para todos que quisessem ouvir. Ao seu lado estava um grande cartaz que ilustrava, através da imagem de uma torre, as nove classes guerreiras: Coletores; Patrulheiros; Caçadores; Batedores; Oradores; Paladinos; Lanceiros; Guardiões; Senhor da Tempestade.
Este sistema salientava a hierarquia do poder, ao enaltecer a força e competências do indivíduo, enquanto sua origem era vista em segundo plano, possibilitando a ascensão de guerreiros poderosos através de conquistas.
Vromir apontou mais adiante para um jovem alto e esguio. Gotas de suor escorriam por seu rosto enquanto carregava alguns folhetos e os oferecia a quem passava por ali.
— O que é aquilo?
— Apenas um fantoche. Ele está fazendo o trabalho sujo de escolher os candidatos para participarem do próximo Exame de Seleção para sua ordem. Imagino que seja um Impuro que ascendeu, desse modo, a ordem dos Coletores. Provavelmente foi por isso que o designaram para essa tarefa — explicou Melgar.
— Até onde eu sei, subir de classe é algo quase impossível.
Daigon começou a empurrar as costas de Vromir para a frente.
— Fazer o Exame de Seleção é algo muito perigoso. E caso ainda queira se arriscar a morrer, saiba que nossa vida não se transformará em um mar de rosas. Mesmo após a promoção, os Impuros não são tratados da mesma forma que os demais membros.
— Nos últimos dias, percebi que os Demônios que participam das campanhas para fora da cidade estão inquietos, em especial esses chatos. Até podem ser de uma classe guerreira baixa, mas contra os Sombrios desempenhavam um papel importante ao estarem familiarizados a explorar o desconhecido. Não é incomum alguns esquadrões recorrerem pontualmente aos serviços dos Impuros nesta função, como peças descartáveis que realizam as tarefas mais perigosas.
— Enfim, já chega disso, vamos deixar essa conversa de lado. Os Patrulheiros estão vindo — alegou Daigon.
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Mais tarde, a caravana de Impuros regressou até a entrada do cortiço onde eram alocados, todos esgotados devido a exaustiva rotina. Os quatro colegas estavam reunidos mais uma vez, ao redor de uma nova fogueira, acompanhados de um grupo maior e melancólico.
— Vocês já ouviram sobre o novo incidente? Parece que realmente tem um Demônio-predador nessa área — comentou um dos presentes.
— Foi o segundo caso só nessa semana… — falou outro.
— Talvez ele venha pegar você hoje — disse Melgar, chacoalhando os ombros do Impuro em uma tentativa de acalmar os ânimos.
— Há boatos que ela é uma Demônia linda e esbelta, de longos cabelos negros — alegou alguém mais ao fundo.
— Na última vez que ouvi eram castanhos — rebateu o primeiro, com um sorriso no canto da boca.
— Me falaram que é um barbudo, de três metros de altura. — Fez uma pausa, contendo as risadas. — Ainda mais depravado que Melgar.
— Mentirosos.
— Quero ver o próximo que vai me chamar de depravado. — Melgar balançou um dos punhos no ar apontando aos demais.
O Meio-sangue somente acompanhava tudo de longe, com as costas apoiadas sobre uma das construções que ficavam de frente para a rua. Acomodados a poucos metros do rebuliço, Vromir e Daigon não demonstravam nenhuma pretensão em intervir.
— Ele sempre é assim? — perguntou Vromir.
— Um idiota é só um idiota. Talvez isso de alguma forma o ajude a esquecer um pouco os problemas. — Suspirou fundo e fez uma pausa. — Os dias aqui parecem intermináveis… Cheguei há cerca de cinco meses ao Ninho, porém minhas lembranças parecem tão distantes. Sinto que estou esquecendo de quem sou aos poucos.
— Pretende recuperar o que perdeu? Tentar recomeçar tudo longe daqui?
Daigon o encarou com um olhar de desprezo.
— Fala como se isso fosse possível. — Suas pupilas se dilataram. — Não me diga que…
— Farei o Exame de Seleção — disse, interrompendo o amigo.
— Já o avisei que isso é loucura — argumentou Daigon, que segurou seu braço direito com uma das mãos.
— Eu preciso… preciso tentar. — respondeu, se levantando.
— Espere. Não faça isso, idiota — ordenou ao puxar Vromir, mas ele se desvencilhou sem grandes dificuldades.
Sem conseguir conter sua inquietude, Vromir caminhou em direção a fogueira e expôs aos outros um desejo que apertava seu peito:
— Quem estará presente na seleção dos Coletores amanhã?
— Como é? — perguntou um colega que logo se virou, espantado.
O novato repetiu para que todos ali pudessem ouvir:
— Participarei dos exames para a qualificação de classe.
Rapidamente um pequeno alvoroço ganhou forma.
— Você só pode estar louco — declarou um deles.
— Somos a porcaria de um bando de Impuros, a escória. A desgraça nos rodeará onde quer que formos — complementou um segundo, incrédulo que grandes mudanças fossem alcançadas.
— Ele está certo — concordou um terceiro.
— Me recuso a passar o resto de meus dias esquecido, na miséria… nas mãos desses infelizes — continuou o jovem, com um tom exaltado, procurando convencer os demais.
Melgar se aproximou e estendeu o braço como se quisesse detê-lo.
— Não seja precipitado.
— Ficar parado só nos condenará a mais sofrimento. O que acham que acontecerá quando não tivermos mais utilidades para eles? Agarrarei essa chance com unhas e dentes para tentar algo diferente além da Grande Barreira.
— Perderemos companheiros que estão aqui… Os condenará à morte — argumentou alguém mais distante, que aparentemente analisava a ideia.
— Precisamos tentar, não me intimidarei. — Vromir gesticulava com os braços, seu corpo evidenciava sua emoção.
Aos poucos alguns começaram a ver o exame como uma possibilidade real, sabiam que o caminho era repleto de pedras, ainda mais para aqueles considerados fracos, porém estavam cansados de serem tratados como brinquedos descartáveis e sem outras opções.
— Quero lutar por algo que valha a pena, que seja real. — Agarrou um dos presentes e disse olhando nos seus olhos. — Não vou desistir de tudo que foi tirado de mim.
— Vai acabar morto — afirmou o Meio-sangue. — Não venha com essas bobagens. Me diga então o que é algo real para você? — questionou, conforme se aproximava.
— O que deu nele? Sempre é tão quieto — cochichou uma voz.
Antes de alcançá-lo, o Meio-sangue parou e desviou de uma pedra arremessada em sua direção.
— Quem é você para opinar qualquer coisa por aqui? — Um dos residentes o intimidava brincando com um pedregulho em mãos. — Meio-sangue. Suma daqui!
Uma nova pedra foi arremessada. Logo outras voaram sobre o Meio-sangue, uma atingiu seu supercílio banhando o rosto com uma listra vermelha e irregular enquanto debandava às pressas.
— Pelo visto não somos os únicos que têm uma vida difícil por aqui. — comentou Melgar para Vromir. — Espere, onde você está indo? — disse, ao agarrar seu braço. — A noite não é um lugar seguro.
— Ele se machucou. Isso é minha culpa. Não vou demorar.
— Não é hora para isso, todo mundo está vendo. Certamente não quer fazer nenhum amiguinho. Deixe disso, logo fecharão os portões.
Contrariando as orientações do colega, assim que viu uma distração da maior parte dos Impuros, Vromir saiu. Preocupados, Melgar e Daigon seguiram seus passos com um semblante nada amistoso.
— Ótimo, e agora? — resmungou Daigon.
— Precisamos ser rápidos. Sabem onde ele pode ter ido? — perguntou Vromir.
— Ele costuma ficar em um velho cortiço perto daqui, na rua onde os Demônios Batedores passaram. — Melgar levou a mão sobre alguns fios revoltos em sua barba negra. — Você também o encontrou lá ontem, lembra?
Ao refazerem o percurso que há pouco tempo os levou a um grande tormento, por sinuosos e traiçoeiros becos que ganhavam um aspecto ainda mais intimidador com a rala luz dos poucos lampiões espalhados pela rua, chegaram até uma passagem que dava aos pés de uma grande e antiga construção de paredes desbotadas e castigadas pelo tempo.
— Tem certeza que é aqui mesmo? — questionou Vromir.
— Bem… posso garantir que de dia esse lugar é bem menos tenebroso — comentou Melgar.
— Vocês me trouxeram até aqui. Se vamos entrar, se apressem. — Daigon tomou à frente.
Dessa forma, adentraram na construção com passos lentos e receosos, os quais ecoavam pelos cômodos sem mobília. A quietude reinava e a luz do luar transpassava pelas fissuras presentes no teto e nas paredes.
No interior do cortiço, o trio se separou para cobrir uma área maior. Chamavam o Meio-sangue conforme vasculhavam os cômodos tomados pelas sombras.
Assim, em uma sala, Vromir avistou uma pequena Demônia de longos cabelos prateados que realçavam o par de chifres amarelados acima de sua testa. Em nenhum momento desviou os olhos que estavam fixos para a luz da lua que descia por uma das fendas. De repente, ela correu e subiu as escadas, sumindo no breu, antes que Vromir falasse qualquer coisa.
Ao subir para o segundo andar, Vromir viu uma pequena mancha de sangue sobre um dos degraus da escada de acesso. Adiante ouviu o som de grunhidos sutis e irregulares, similares ao de uma fera rasgando sua presa.
Uma sombra esguia se movimentou, dando forma a uma silhueta banhada por uma fraca claridade que brotava de uma falha no teto, não o suficiente para revelar suas feições, mas sim para mostrar uma mancha vermelha em seu supercílio e seus dentes de ferro, os quais sempre escondia e que hoje pareciam curiosamente ameaçadores.
— É você? Meio-sangue?
— O que fazem aqui?
— Achou alguma coisa? — disse Melgar, olhando para cima.
Antes que Vromir percebesse, o Meio-sangue não estava lá. Um zunido de aço cortou o ar e destroçou algo na direção oposta, acompanhado pelo som de algo desabando e de um grito rouco, mais alto que um sussurro.
Vromir permaneceu estático por alguns segundos, sem reação. Decidiu se aproximar devagar, à medida que ainda colocava as ideias em ordem. Ficou em choque ao perceber a trilha de respingos que o conduziu até a garganta dilacerada de Melgar, que mantinha suas íris dilatadas em um semblante que perdia a vida.
Ouviu no andar inferior um enrosco de passos apressados, que logo cessaram. Correu para baixo o mais rápido que pôde até cair enquanto cruzava pelos últimos degraus, mesmo com um dos joelhos latejando seguiu apressado. Ao virar o corredor, se deparou com o Meio-sangue com as mãos e o rosto impregnados por um sangue vivo que ainda percorria seus dedos e as maçãs de seu rosto. Ambos marcados por estranhas manchas negras, pareciam escritos, indecifráveis na escuridão.
Em frente do Meio-sangue, estava Daigon, sentado, com as costas apoiadas na parede. Ele pareceu pedir ajuda, mas tudo que saiu foi uma espuma de sangue e saliva. Em agonia, sua boca se retorcia na medida que seus olhos perdiam o brilho e o profundo corte que se estendia do peito ao umbigo banhava o piso com um sangue vivo e viscoso.
— Por que fez isso? O que você fez?! — disse com uma voz trêmula e cheia de ódio. Avançou, mas um ágil chute o derrubou.
Com a penumbra que tomava o local, só notou a longa e fina espada do Demônio quando já estava no alcance dela. Dois golpes precisos mutilaram suas pernas. Gritou, o mais alto que conseguiu e rastejou para trás assustado, em busca de ajuda. O Meio-sangue sequer esboçou qualquer movimento para silenciá-lo, pelo contrário, parecia esperar por algo.
— Quero que responda uma pergunta — exigiu o Meio-sangue, que via Vromir apavorado, sem dar ouvidos a suas palavras. — Eu quero que responda!
Rastejando, o Impuro logo se deparou mais uma vez aos pés da escadaria que dava acesso ao segundo andar.
— Me diga, para você o que é algo real? — As palavras pareceram engasgar na garganta de Vromir. — Responda! Sua vida depende disso.
— É sonhar com o dia em que seremos livres, em que teremos nossa vida longe desse lugar. Com as pessoas que amamos. Uma coisa que alguém como você nunca entenderia, seu monstro!
O Meio-sangue se aproximou e a luz da lua que rompia por uma das fissuras no teto enfim deu forma aos contornos de suas feições, revelando não um semblante assassino, mas sim um olhar choroso.
Uma dor alucinante acompanhou o movimento da espada do Meio-sangue que desceu estraçalhando músculos, órgãos e ossos em um frenesi de diferentes tons de vermelho, à medida que Vromir se perdia em uma breve e medonha dança de movimentos involuntários.
— Talvez eu realmente nunca entenda os porcos.