Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 32: Destinos Cruzados

As chamas ainda vivas dançavam e cobriam o piso de um dos pátios da sede dos Kadiras, próximo a entrada principal, mascarada pelos olhos da grande maioria como um singelo e reforçado portão de ferro que se perdia entre as inúmeras construções da região, mas que agora estava destruído.

Ofegante com tamanha demonstração de poder, Calisto passou a caminhar pelo campo desolado. Deixou o cadáver do Paladino jogado pelo local e analisou a paisagem arrasada à procura de qualquer movimentação suspeita conforme se afastava da área tomada pela fumaça.

Esperava encontrar um frenético confronto, contudo tudo com que se deparou foram os vestígios de uma recente luta e algumas estacas gigantes de madeira cravadas sobre o solo, além do corpo de outro intruso, esmagado contra uma das colunas, o que mostrava sinais que havia sido arremessado de um ponto distante.

— Mas o que é isso daqui? — ela caminhou até uma pequena fissura entre os escombros e encontrou um pequeno redemoinho. Intrigada, se abaixou, na tentativa de entender o que sucedia.

De suas costas, Calisto sentiu uma presença hostil. Por um instante, seus olhos adotaram uma coloração levemente amarelada conforme seu punho direito se estendia em longas garras vermelhas, que lembravam agulhas afiadas, e suas espirais assassinas voltavam a envolvê-la.

Um mercenário se materializou a poucos metros de Calisto e se lançou sobre ela, sedento por sangue. Porém, antecipando seu contra-ataque, uma terceira figura interveio.

Apenas olhos aguçados seriam capazes de ver a passagem do orbe negro que explodiu ao lado do invasor, que acabava de sair, com seus poderes, de dentro de uma pequena sombra, lançando-o para trás. Os destroços que ainda caíam ganharam escritos negros que se desdobraram em um dança sinuosa até o imobilizarem na mesma medida que o arrastavam até um ponto mais adiante. Por fim, o guerreiro parou aos pés de Teslan que surgia à frente.

Um corte preciso na garganta do intruso marcou a entrada de Deneris, que passou a acompanhar o colega. Mais ao fundo, Olfiel e Cunaiver pareciam vigiar a retaguarda.

Ela ainda retirava o excesso de sangue da espada, quando começou a falar.

— Calisto, desde quando se tornou tão descuidada, certamente morreria nas mãos daquele verme. — Deneris apontou para trás, onde estava o corpo do intruso, fazendo pouco-caso da situação.

Seu semblante transpareceu as alfinetadas da rival.

— Poderia muito bem ter resolvido essa bagunça sozinha, sempre posso contar com um ou dois trunfos escondidos.

— Espero que isso não seja apenas conversa fiada. — Ela soltou um pequeno sorriso e olhou para a direção oposta.

— Veja ao redor, essa doida quase transformou a gente em cinzas — argumentou Cunaiver, assim que os alcançou.

— Não seja dramático — rebateu Deneris.

Olfiel se abaixou e analisou a sombra de onde o manto vermelho havia surgido.

— Não é de menos que você foi incapaz de detectá-lo, provavelmente o mesmo aconteceria comigo, caso meu familiar não delatasse sua posição. — A Demônia estendeu a mão e um redemoinho de poeira pairou sobre sua palma, devagar a silhueta de um lagarto tomou forma conforme a terra escorria pelos seus dedos. — Se não abusasse dessas artes proibidas, o seu não se afastaria tanto — disse, com os olhos fixos em Calisto.

Teslan se aproximou do cadáver.

— Esses insetos são escorregadios.

Calisto sacou a espada do guerreiro morto.

— Ele estava ferido, com certeza lutou por aqui. Pensei que encontraria um campo de batalha ao chegar.

Deneris e Cunaiver se entreolharam, pareciam hesitantes em continuar a conversa.

— Terminamos há pouco a escolta do grupo que fugiu pela passagem subterrânea. Quando voltamos à sede, encontramos uma área cheia de corpos, todos da ordem dos Sem Face, uns sete, talvez dez, restou pouca coisa deles para identificarmos ao certo.

— É verdade — falou Teslan. — Também passamos por lá, antes de encontrarmos Deneris e Cunaiver. Depois disso, você nos atraiu com toda essa barulheira.

— Ah! Ah! Ah! Quem diria que aquele velhote mostraria as garras — disse Calisto, incapaz de conter os risos.

— De quem está falando? — questionou Deneris.

Ela ignorou a pergunta.

— Se ele decidiu comprar essa briga, não temos motivos para continuar aqui. Vamos logo sair dessa bagunça enquanto ainda podemos — sugeriu a Demônia que começava a caminhar até a rota utilizada pelos primeiros Kadiras conforme ouvia leves temores, os quais indicavam que as lutas continuavam pela base.

Os demais relutaram em deixar a base naquela situação, mas, por fim, cederam e a seguiram até um ponto seguro, fora dos limites da associação.

 

☼☼☼☼

 

Em outra extremidade da sede, o brandir das espadas anunciava que a luta entre Vedrak e Mildifer ainda perdurava, porém aproximava-se de seu desfecho. Contudo, a paridade de antes era desnivelada pelo momento de Vedrak que assumia o claro controle do duelo, fazendo seu oponente recuar.

Neste momento, os anos do experiente guerreiro pareciam pesos que tornavam seus movimentos mais lentos e dificultavam sua respiração. Suando e ofegante, Mildifer inspirou fundo antes de retomar sua concentração em cada movimento.

— Pelo que vejo os jovens de hoje tem cada vez mais energia, é uma pena que as boas maneiras não sejam seu ponto forte. — À medida que admirava a construção, com um olhar nostálgico, a imagem de um menino alegre assombrou seus pensamentos. — Destruiu esse lugar, eu tinha apreço pelas lembranças que fiz aqui.

— Foi você quem começou a mudar a paisagem. — Vedrak inclinou o pescoço para a direita, fazendo-se de desentendido.

— Tentei liquidar o confronto de forma breve, para evitar maiores problemas. Não imaginei que meu oponente seria um dos Sete Guardiões.

— E agora assinou a própria sentença de morte.

Mildifer fez questão de mostrar um largo sorriso no rosto.

— Presumo que eu tenha me envolvido, sem saber, nos planos de uma poderosa mulher. Nunca procurei ser um empecilho para a realização das vontades dela… a menos que ela tenha tirado algo precioso para mim. — Seus olhos vermelhos se tornaram ainda mais ameaçadores.

O pequeno grupo de invasores, que apenas se entreolhavam enquanto acompanhava o embate particular, ficou incomodado com as traiçoeiras insinuações e começou a cercá-lo com espadas em punho.

— O que pretende insinuar com isso? Enfim, isso pouco importa, mortos não são capazes de tagarelar.

Um grande estrondo anunciou o instante em que uma nova figura partiu com um único golpe a densa porta de madeira que dava acesso ao salão. Ela adentrou com uma velocidade sobre-humana e rompeu na direção de Vedrak, com um movimento de sua espada, que era acompanhada por sombras densas e revoltas, que lembravam uma chama negra. Com maestria, o Guardião o deteve. Ainda assim, a aura negra que envolvia a espada do inimigo transpassou a arma, ferindo o braço esquerdo de Vedrak, na altura do ombro.

As investidas dos intrusos o levaram a recuar momentaneamente. A evasiva do recém-chegado foi uma injeção de coragem para que seguissem na ofensiva.

Um Paladino escondido entre os mercenários fez menção de avançar, mas Vedrak agarrou seu ombro.

— Recuem! — disse olhando para seus demais colegas. — Esse é Latrev, o mestre da espada da noite. — Após o aviso, a súbita propagação das sombras de Latrev antecedeu o movimento de sua espada coberta por uma misma negra que, com um único golpe, foi capaz de liquidar três mercenários, deixando uma trilha negra pelo percurso feito pelo dominador das sombras, quando os invasores caíram como moscas a seus pés.

Chamas negras começaram a tomar conta da ferida de Vedrak.

Benção imperial. — Sua espada feita do puro e inestimável aço godafer começou a emanar um moderado brilho, levemente azulado, quando ativou suas raras propriedades. Assim que a tocou em sua ferida, gerou um barulho ácido, como se cauterizasse uma ferida, para a agonia do Guardião. Dessa forma, extinguiu o fogo e as maldições que o acompanhavam.

Com passos lentos e calmos, Latrev continuou a avançar.

— Parece que meu pupilo seguiu um caminho tortuoso, você e seus guerreiros aprontaram uma tremenda confusão na minha ausência.

O Guardião secou o suor de seu rosto e sorriu diante do perigo.

— Presumo que sua presença aqui explica a demora no retorno dos mercenários que contratei. Havia dois dos meus Paladinos entre eles, seu maldito.

— Digo o mesmo para meus servos, não os encontrei em lugar algum. — A misma negra ao redor do seu corpo começava a ficar maior.

— Acredito que já estão cientes que se meteram com problemas maiores do que podem lidar. Mesmo sob ordens, quero evitar o problema de matar um Ex-guardião. — Seus olhos ficaram negros, as gravuras de sua espada adotaram a cor verde e passaram a se movimentar. Gradualmente produziram um tufão de ar que cresceu e se intensificou, engolindo Vedrak e todos os seus soldados espalhados pela associação. — Vocês, agora, são inimigos do império, considerem-se mortos, serão caçados pelas treze grandes cidades até o fim de seus dias.

Quando a ventania começou a ceder, os dois veteranos eram os únicos no local. A dupla não podia descansar, precisavam buscar um lugar seguro e colocar as ideias em ordem.

— Para onde vamos agora? — perguntou Latrev.

— Acho que essa é a oportunidade perfeita para vermos um velho amigo.

Nesse cenário arrasado, os dois deixaram para trás a ordem dos Kadiras, que formaram com tanto custo, e começavam a se retirar, assombrados por uma grande ameaça de proporções incalculáveis.

 

☼☼☼☼

 

Sem nada saber o que ocorria fora dos túneis subterrâneos, uma traiçoeira inundação mostrava que Cão, Petrir e Morcail continuavam a flertar com o perigo. Tal martírio não era um simples acaso, mas fruto dos poderes do Paladino que transformou os túneis apertados em verdadeiras corredeiras que arrastavam para longe os três.

Cão soltou um urro de dor, ao colidir-se contra algumas pedras, adquirindo incômodas escoriações enquanto tentava se agarrar, sem sucesso, nas paredes.

— O que faremos? — perguntou enquanto buscava sempre que podia o menor caimento da água corrente para ter uma chance de respirar.

— Maldito! Vamos… — Petrir foi surpreendido pelo percurso, engolido pela água só ressurgiu segundos depois.

Por mais que procurasse, Cão não encontrava o paradeiro de Morcail. Ele voltou sua atenção para a frente e reconheceu uma certa familiaridade nas passagens agora inundadas.

— Venha comigo, se quiser seguir vivo. — O Caça-contrato amarrou sua teia de maldições em Petrir como se fosse uma corda.

Ele, esticando suas maldições como grandes pinças sombrias que se apoiavam nas paredes, lutou contra a correnteza e controlou o caminho que os levou até um rudimentar elevador que estava destruído pela ação das águas. Era preciso improvisar.

— Está vendo aquela porta de metal? — Cão apontou para cima. — Destrua! — Petrir somente continuou a tossir. — Apenas destrua aquilo, seu imbecil!

Com um grito raivoso, deu três passos para frente andando sobre as sombras e canalizou com todas as suas forças uma grande esfera flamejante em suas mãos, antes ensopadas. Ao lançá-la, facilmente destruiu a porta e abalou todas as estruturas à volta, com um intenso clarão seguido por uma brisa escaldante e um estrondo ensurdecedor, dando forma a uma explosão muito mais forte que a necessária.

 

☼☼☼☼

 

— Quem é você? — perguntou Esfer, com a espada apontada para o Demônio que surgia sem se importar com as lavaredas escaldantes que cobriam a passagem subterrânea.

Apressado por Cão que subia as escadas de emergência, a dupla saiu do pequeno fosso e pouco mais à frente desabou exausta no chão, acabavam de alcançar o interior do casebre da Feiticeira Cirki.

O descanso foi breve, logo uma explosão destruiu os fundos da construção. Eram Morcail e o Paladino que ainda lutavam, seu duelo particular encaminhava-se para um desfecho.

Suas espadas brandiam e colidiam intensamente, os dois espadachins estavam ofegantes e em pé de igualdade, fato que mudou quando Morcail acertou um contundente chute que o jogou o oponente alguns metros para trás, até chocar-se contra um conjunto de prateleiras.

— Me recuso a cair aqui, pagará com… — suas palavras passaram a soar mais abafadas, quando o Paladino olhou para baixo, viu que seu peito era coberto pelo sangue vivo e viscoso que vertia de sua garganta, impregnando suas vestes.

Morcail não perdeu tempo e enterrou sua espada no peito do inimigo moribundo.

— Vejo que a honra não é um de seus pontos fortes — disse o nobre olhando para Cão.

Ele limpava sua sombra que traiçoeiramente havia acabado de atacar o manto vermelho.

— Não sou cavaleiro, muito menos um nobre.

— Vou querer uma explicação sobre isso tudo quando… — Esfer foi interrompido por um violento estampido que ressoou pelo ambiente. Cão ouviu algo ser acertado às costas de onde estava e, ainda sem entender a situação, agarrou o colega e o puxou em busca de um ponto mais seguro. Enquanto procurava um abrigo, viu que Morcail tinha uma toca em seu crânio, da qual vertia, de forma irregular, um intenso fluxo de sangue, em uma queda lenta seu corpo tocou o chão. Sequer teve a menor chance de reação.

“Não acredito que me descuidei e parei de espalhar minhas sombras”, pensou Cão.

Estava exausto e seu ferimento, causado ao chocar-se em algumas pedras, na luta contra as corredeiras, latejava. Com esforço, esticou sua sombra e ficou surpreendido ao descobrir seu inimigo, instintivamente a esticou ainda mais para atacá-lo.

— Já sei o alcance de sua sombra — disse Petrir ao dar um pulo para trás, mesmo assim suas sombras se cruzaram por um pequeno instante, tempo insuficiente para lhe oferecer perigo. — Não levem isso a mal, minha intenção não era traí-los, acontece… que os planos mudaram. — Com uma das mãos, ele apontava sua arma carregada a procura dos Caça-contratos. Ao seu lado, caída no chão, estava Layrrel, nocauteada pelo Demônio quando os demais lidavam com o Paladino.

— Seu verme! O que pretende com isso? — disse Cão.

— Apenas vou levar um presente para um amigo e ser muito bem recompensado por isso. — Petrir se agachou e por um momento admirou os olhos dourados de Layrrel. — Queimem, filhos da centelha — falou, ao ver as lavaredas se alastrarem pelas estruturas.

— Eu vou te estraçalhar, desgraçado! — Ao olhar para o lado, viu o colega já estendendo o braço.

— Corra! — gritou Cão, que, após o aviso, viu Esfer escapar por pouco de um tiro que passou ao seu lado.

O Demônio agora tendo a certeza que a dupla ainda estava longe, voltou a atear fogo na choupana de madeira com seus poderes, em instantes as chamas tomaram conta do local. Em meio a essa confusão, Petrir conseguiu fugir com a Impura desacordada.

Cão, ferido e cercado pelo fogo, pegou Esfer contra a vontade e saltou dentro da passagem que Morcail e o Paladino abriram à força enquanto lutavam. No fundo, caíram na água que não representava mais um perigo, devido a morte do Paladino o fluxo reduzia rapidamente. Esgotado, o Meio-sangue escutava os lamentos do companheiro perturbarem seus ouvidos. Apoiou as costas em uma das paredes e abriu a palma da mão, um fragmento da sombra de Petrir surgiu, com isso era capaz de rastreá-lo aonde quer que fosse.



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