Volume 1
Capítulo 33: Juramento Negro
O amanhecer se aproximava e em breve, no Fosso, as lamparinas da sede dos Caça-contratos se multiplicariam, assim como os raros vigias que mantinham em suas feições um ar sonolento. Sequer imaginavam que, longe da visão de todos, uma grande sombra esguia começava a se espalhar pelo esquadrão, engolindo os encantamentos que protegiam a base e todos os marcadores ligados às maldições de Teslan.
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— Eles não respondem — disse Teslan, para Olfiel e Calisto, com uma expressão confusa estampada no rosto, quando tentou regressar a sede dos Caça-contratos. — Meus marcadores foram destruídos. — Lentamente levou a palma de uma das mãos sobre o rosto. — Como o império poderia agir tão rápido? — Desnorteado, um emblema negro nasceu no dorso de um de seus punhos.
Olfiel agarrou, com força, seu ombro e olhou em seus olhos.
— Nos leve com você.
Teslan, a contragosto, estendeu o braço e criou uma sombra circular e corpulenta que passou a flutuar a sua frente. Era uma passagem, entraram sem questionar. No instante seguinte, em uma das ruas do Fosso, uma pequena sombra nasceu e se expandiu exponencialmente, até dar forma a uma espécie de portal negro, de onde saio o trio.
— Nossa, ainda falta uma bela caminhada — falou Olfiel, ao avaliar o cenário à sua volta.
Teslan partiu correndo na frente.
— Nos espere, imbecil — ordenou Calisto, que passou a seguir seus passos.
— Precisamos nos apressar — afirmou Teslan, em sua correria desatinada. Sabia que algo estava estranho, além disso, tinha certeza que, após a confusão na base dos Kadiras, eles também haviam se tornado um alvo do império. — Algo está errado. Temos que avisar os outros.
Ao dobrar a rua e avistar uma mancha escura se erguer no horizonte, as preocupações de Teslan apenas aumentaram. Avançava pelas ruas o mais rápido que podia, alarmando os pedestres que assustava ou trombava. Ao se aproximar da base, se deparou com um bando de curiosos que cercava a entrada para o portão principal e bloqueava a passagem. Ao ultrapassar todos em um empurra-empurra, se recusou a acreditar no que via.
Com passos hesitantes e trêmulos, Teslan se aproximava com o coração apertado. A fumaça ofuscava seus olhos e o cheiro das sombras e morte estava impregnado por toda parte. Desnorteado, vagava sem rumo pelas nostálgicas paredes destruídas, quando tropeçou em um bloco de pedra caído no piso trincado e irregular. Um dos destroços da sede dos Caça-contratos.
As últimas chamas ainda se mostravam presentes nas redondezas à medida que atravessava um dos corredores que ainda estavam de pé, longe dos sermões de Calisto e Olfiel, que ainda estavam com dificuldade em atravessar a pequena multidão.
Cruzava, um a um, pelos corpos de seus colegas de ordem, com as vistas pesadas, até se desequilibrar. Não queria continuar, estava com medo.
Mesmo assim, de algum modo conseguiu voltar a ficar de pé. Avistando mais adiante, perto do casebre que conhecia tão bem, agora tomado pelas chamas, o corpo de Dibian jogado no chão. Antes que Teslan percebesse, as lágrimas passaram a descer por seu rosto.
Correu na direção do Xamã o mais rápido que pôde, mas quando finalmente o alcançou, foi derrubado e puxado por Olfiel e Calisto.
— Precisamos sair daqui — disse Calisto. — A guarda imperial pode aparecer a qualquer momento. Deixe ele aí. É preciso! — Ela agarrou o rosto de Teslan e o puxou até próximo ao seu. Pareceu não reconhecê-lo por um momento. A agonia estampada nas vistas lacrimejantes e no contorno das feições avermelhadas e ofegantes do companheiro, que sempre emanava uma postura sólida e de liderança, seria algo que ficaria gravado em sua memória. — Não morra aqui, seu idiota…
Essa imagem atormentou seus pensamentos.
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— Malditos — murmurou, ao socar a parede. A noite já havia caído. Em um pequeno galpão situado nos limites do Fosso dos Enjeitados, um esconderijo conhecido apenas pelos membros da irmandade, os Caça-contratos sobreviventes estavam reunidos.
Barock baixou a cabeça e encarou as chamas da pequena lamparina, enquanto se recordava daquela tempestade de lanças e espadas negras que assolou a base e das sombras esguias e assassinas que se alastraram pelo piso e pelas paredes, destruindo tudo que viam pela frente.
— Nunca vou esquecer aquele inferno — disse, ao fechar os olhos por um momento. — Eu e Galezir apenas escapamos por conta dos amuletos de Teslan. Estamos vivos por pura sorte. Segundo ele, seus marcadores nem deveriam ter funcionado no meio daquele caos.
— Devemos assumir que, além de Latrev, somos os últimos sobreviventes da ordem — falou Calisto. — Mesmo que mais alguém tenha sobrevivido, o que acho muito difícil, duvido que queira restabelecer a irmandade, muito menos lutar contra o império.
— Aquele maldito é a nossa prioridade! — brandou Barock.
— Um Demônio das sombras… — murmurou Esfer para si mesmo, com os punhos apertados.
Queimem, filhos da centelha, Esfer enfim entendeu porque a afirmação de Petrir lhe pareceu tão familiar, havia se recordado onde já tinha ouvido as mesmas palavras antes. Foi na noite em que sua família foi atacada e dizimada pelos fanáticos seguidores do último Maker. Sabia que o amigo mencionado por Petrir devia ser alguém importante na seita ou até mesmo o próprio Fantasma.
Cabisbaixo, Teslan surgiu dos fundos do galpão e encarou vagarosamente seus companheiros: Barock, Galezir, Olfiel, Calisto, Cão e Esfer. Os últimos Caça-contratos sobreviventes.
— Vamos matar o último Maker!
— Está maluco? Como vamos fazer isso? — perguntou Olfiel.
— Podemos rastreá-lo. — Esfer se voltou para Cão. — Não é?
Ele devolveu ao colega um olhar nada amistoso.
— Petrir traiu os Kadiras. Esse tempo todo ele era um fiel do último Maker. Posso seguir o desgraçado com meus poderes. — Cão se inclinou para frente, ficando mais perto de Teslan. — O farei contar onde podemos encontrar Fantasma.
Assim, dentro daquele galpão, com suas faces banhadas pelo tremular da rala luz da lamparina, o grupo se decidiu. Caçariam o último Maker.
Naquela noite, as horas passaram devagar e os minutos de sono foram raros para a maioria. O dia logo amanheceria quando Teslan começou a ajeitar suas coisas na sacola.
De repente, algo chamou sua atenção. Era o colar de Dibian, que possuía um broche circular e metálico com a gravura de uma estrela de cinco pontas. Ele, com cuidado, o colocou sobre o pescoço antes de se levantar.
— Vamos, não temos tempo. Em breve esse lugar não será mais seguro.
— Para onde? — questionou Barock.
— Há alguém que nos ajudará — disse, ao virar as costas para o grupo, enquanto deixava o esconderijo.
Os Caça-contratos, com semblantes cansados e infelizes, um a um, começaram a segui-lo, ouvindo um espírito vingativo que aflorava em seu peito, conforme avançavam pela rua e se perdiam entre a multidão que aos poucos tomava mais uma vez as frenéticas ruas do Fosso, onde apenas os pedestres, à volta, mais atentos, podiam perceber a passagem de uma aura sedenta e furiosa. Algo bem corriqueiro para a grande maioria. Mais uma manhã tumultuada e perigosa começava em Vespaguem.
Mais atrás, afastado da travessia obstinada de seus companheiros entre a multidão, Cão recordava-se, com um olhar vazio, de sua última conversa com Dibian.
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Passos pesados e cansados ressoavam sobre o piso de pedra e deixavam evidente a pressa de sua afoita caminhada. Gotas de suor desciam de forma constante do rosto de Cão, que sequer hesitava em romper passagem, para o espanto dos demais que ainda não entendiam o porquê de tanto alarme àquela hora, pouco antes do nascer do sol.
Em uma caminhada atabalhoada, que parecia sem rumo certo, os pés pesados de Cão passaram a bater sobre o chão do pátio e erguer um pouco de poeira a cada pisada. Assim, desatinado e ofegante, apoiou uma das mãos no casebre de Dibian, seu tutor no manuseio de maldições.
Por um momento a determinação, que alimentava sua marcha impetuosa, pareceu se apagar. Um rápido percalço. Logo retomou o passo e abriu quase trombando com a porta.
Parou mais uma vez, já dentro da cabana. Não pela dúvida, mas pelo descuido e o tumulto que havia causado. Certamente o Xamã, se estivesse por ali, já teria percebido sua barulhenta chegada.
Não demorou para Dibian surgir dos fundos do casebre, trajado com um largo manto marrom que destacava a estrela prateada em seu colar. Nem se importou muito em procurar adivinhar o que se passava na cabeça do Xamã, pois sabia que isso era como tentar desvendar um grande enigma.
— Não é do seu feitio entrar causando esse tumulto. Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceram muitas, mas isso pouco importa agora.
— Então, o que me leva a receber essa ilustre visita — disse com uma voz falsa.
O Meio-sangue virou o rosto por um instante.
— As circunstâncias apenas me trouxeram até aqui.
— Hum… não é de bom tom tratar seu mestre assim.
Cão soltou um suspiro debochado.
— Eu tive apenas um único mestre. E ele não foi você.
— Você já comentou algo assim antes, enfim… Se essa não é a questão, por que veio até aqui?
O visitante dedilhou de forma ansiosa os dedos sobre uma das estantes que acomodavam frascos e especiarias do Xamã.
— Fazer o que deve ser feito.
— E isso seria?
O Meio-sangue baixou a cabeça, antes de deslizar a palma de ambas as mãos sobre a face e o cabelo.
— Pagar meu carma.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Dibian, com um olhar difícil de decifrar.
— Eu já passei por muita coisa no passado… e alguns assuntos ainda seguem inacabados. — Respirou fundo. — Em um ponto eu cheguei a desistir de tudo, mas então eu fiz uma promessa… uma promessa que irei cumprir.
Um sorriso vazio surgiu no canto da boca do Xamã, quase como se já esperasse uma resposta parecida.
— E agora eu sou um empecilho para você. Correto?
Cão o encarou com o canto dos olhos.
— Isso me poupará de explicar, não é? — Ele caminhou meia dúzia de passos até pegar e admirar um pequeno boneco de palha, o qual logo devolveu para o mesmo lugar. — Quando descobriu? — Não houve respostas. — O Meio-sangue esticou o pescoço como se o Feiticeiro estivesse com dificuldade para ouvir. — Soube desde o começo?
— Quanto desrespeito pelos mais velhos…
— Já terminou os seus preparativos? — disse com um tom de indiferença, enquanto via o Xamã reunir alguns amuletos, sem esboçar grandes preocupações.
O sorriso sumiu dos lábios do Feiticeiro.
— Não pensem que isso será fácil — afirmou, ao sacar uma espécie de lamparina, adornada com alguns amuletos.
— Será mesmo? — Cão tomou sua atenção ao arremessar uma faca negra, feita de sombras, que se multiplicou no caminho. Todas, no instante que tocaram um pequeno círculo semitransparente, similar a uma barreira, projetado pelo sábio, voltaram a ser meras sombras.
Nesse meio tempo, da sombra do Meio-sangue, saiu, em um grande salto para o alto, uma pequena Demônia de longos cabelos prateados, dona de feições infantis, que ostentava um par de chifres amarelados acima de sua testa.
Ela girou no ar e apoiou seus pés no teto, assim, pegou impulso e disparou pelo casebre, parando somente a poucos metros do Xamã. Uma mera distração. Múltiplas lâminas negras projetadas por Cão, muito similares às criações de Calisto, avançaram sobre o Feiticeiro, o qual as defendeu com dificuldade, antes de cair atabalhoado no chão.
Sem entender direito ainda o que estava diante de seus olhos, Dibian se espantou quando centenas de sombras que estavam ocultas ao longo da base romperam passagem pelo casebre e começaram a rodopiar em uma espiral assassina que quase arranhava o teto. Muitas tomaram a forma de lanças que levitavam e cercavam o Xamã. Mesmo sem ser capaz de ver, o sábio sabia que algo talvez muito pior acontecia do lado de fora, através dos gritos desesperados que passaram a percorrer toda a base.
— O que está acontecendo? Eu sempre soube que você escondia alguma coisa nessa sombra, mas nunca poderia imaginar que essa maldita criança representava um perigo assim… escondido debaixo do meu nariz esse tempo todo. — Dibian olhou nos olhos de Cão, enquanto via a pequena se abrigar atrás do aprendiz. — Me diga, miserável. Por que fez tudo isso? Quem são vocês afinal?! — Por um momento, ao admirar aqueles longos cabelos prateados balançarem intensamente, suas pupilas se dilataram quando reconheceu uma pequena semelhança entre aquela pequena criança e a temível mulher estampada nos cartazes espalhados por todo o império. Um dos três Demônios mais procurados de Vespaguem. Enbel, a tempestade.
Cão baixou sua mão devagar e centenas de lanças negras e famintas desceram sobre o Xamã.
Muitas ficaram cravadas sobre o piso, a grande maioria ao seu redor, mas somente uma havia perfurado Dibian que, sem forças, tossiu um pouco sangue, enquanto uma pequena poça vermelha começava a banhar o chão.
— Por que você fez tudo isso? — perguntou novamente, com os olhos vermelhos e uma voz sufocante.
— Você descobriu a verdade sobre Enbel, outros Feiticeiros também podem fazer o mesmo. O último Maker é um deles. — O Meio-sangue percebeu que Dibian já estava com dificuldade em acompanhar tudo. — Agora sei disso. — Virou as costas e se aproximou da janela, o caos do lado de fora havia acabado. — Precisarei de aliados a partir de agora… E os sobreviventes daqui cumprirão esse papel.
— E pensar que fez tudo isso para caçar um Demônio que não existe.
Cão pareceu se divertir com a resposta.
— Ele é apenas uma isca.
— Para que?
Seus olhos se acenderam como chamas à medida que cerrava os dentes e apertava os punhos com uma face assassina.
— Para matar o monstro que tirou tudo de mim… aquela desgraçada que causou todo esse inferno… a Demônia que reina sobre o trono dentado, como o Senhor da Tempestade. Minha irmã. Turcarian, a campeã do império.