Volume 1
Capítulo 31: Promessas e Contratos
“O que ele quis dizer com isso?”
Esse era o pensamento que remoía a cabeça de Esfer, enquanto via Cão sumindo na noite, sem imaginar que mais tarde seu colega se envolveria em uma série de problemas vinculados à sigilosa ordem dos Kadiras.
Incomodado, decidiu caminhar para arejar as ideias. Deixou o alojamento para trás e perambulou pela sede, ainda tomada pelas sombras, até alcançar o pátio de treinamentos. Lá, se acomodou e passou a admirar as várias luzes no horizonte, as quais escalavam as paredes do Fosso em direção a superfície, lembrando um conglomerado de estrelas travessas.
Deitado, suas pálpebras ficaram mais pesadas. Em seu descuido, de alguns segundos, viu duas novas luzes que pareciam o encarar e uma silhueta esguia banhada pela fraca luz da penumbra. Instintivamente, suas pupilas se dilataram conforme os contornos das expressões de sua observadora se tornavam mais nítidos.
— O que está fazendo aqui — perguntou Olfiel.
— Nada… — disse, engolindo em seco o susto. — Já estava voltando.
— Devia tomar mais cuidado, a noite não é um lugar seguro.
— Vou me lembrar disso.
Ela se virou e aproveitou para explorar a vista que o colega admirava há instantes.
— Está tudo bem mesmo ou algo aconteceu entre os porcos? Vi que Cão deixou a sede há pouco. — Olfiel avaliou a postura de Esfer, na tentativa de se divertir ao alimentar alguma discórdia entre os dois. — Espero que ele não cause problemas e vá se alimentar bem longe daqui.
— Pode ficar tranquila, aquele traste sabe o que faz.
— Como pode ter tanta certeza disso? Ouvi de Calisto que ele costumava ser bem descuidado, antes de vir para cá.
— Porque foi justamente ela que o convocou.
— O convocou? A essa hora?
— Veja. — Ele jogou a mensagem massada, que encontrou no chão do quarto de Cão, para Olfiel e a viu agarrá-la no ar.
— Não pode ser… Aquela desgraçada. — Sem dizer mais nada, a Demônia virou as costas e saiu com passos apressados e truculentos.
— Espere — pediu Esfer, que a seguia sabendo que a colega em breve aprontaria alguma bagunça.
Ela não lhe deu ouvidos e somente parou em frente do quarto de Teslan.
— Abra logo, seu infeliz. Apareça! — ordenou Olfiel, que batia com força na porta.
Sem entender o que sucedia, Teslan logo surgiu não escondendo sua má vontade.
— Pare logo de latir, sua tampinha. Eu já estou indo — disse antes de abrir a porta. — O que diabos você quer?
— Olhe como fala comigo ou eu amasso sua cara.
— Está bem, está bem, agora pare com isso, vai acordar todo o esquadrão.
— Isso pouco importa, precisamos nos apressar. Os Kadiras já foram convocados.
— Isso não pode ser possível, nós deveríamos… Calisto…
— Ainda vou dar uma surra naquela desgraçada — afirmou Olfiel olhando para os próprios punhos.
— Terá tempo para fazer isso depois. Antes, precisamos nos mexer.
— E quanto a Barock e Galezir?
— Não adianta procurá-los, aqueles imprestáveis não estão por aqui. Será melhor assim, ambos estão com raiva de Calisto. Não ajudarão em nada com a cabeça quente. Agora trate de se apressar.
Olfiel se voltou para o novato e disse:
— Esqueça o que viu aqui.
— Não — falou Teslan. — Depois de tudo que passou, ele pode vir, se quiser.
— Tem certeza disso?
— Tenho, mas andem logo, estamos sem tempo.
Assim o trio rapidamente providenciou os preparativos para partirem. Visitariam a sede dos Kadiras e acompanhariam os próximos passos da irmandade.
Em seu quarto, com tudo pronto, um símbolo negro e circular surgiu na palma de Teslan. Ele estendeu o braço e tocou a superfície da parede, em seguida, os escritos negros se alastraram por ela, antes de darem forma a uma espécie de portal negro, o qual os conduziu até o interior de uma velha construção, corroída pelo tempo.
— Onde estamos? — perguntou Esfer.
— Em um barraco, perto da sede dos Kadiras. Não poderia, nem se quisesse, entrar lá assim. Aquele lugar está repleto de encantamentos que repelem minhas maldições.
— Pensei que vocês também respondessem aos Kadiras.
— Não é tão simples assim, acredite.
— Quais são suas funções aqui? Por que os demais Caça-contratos não têm acesso à associação?
Olfiel se aproximou e apoiou as costas sobre uma das pilastras.
— Se recorda do que disse no alto da torre? Após o Exame de Seleção.
— Que o seu, não, que o objetivo da ordem era lutar contra as classes guerreiras e o mal desse mundo? Depois de todo esse tempo, eu duvido muito.
— Quase isso. Para começar, a maioria das atividades desempenhadas pelos Caça-contratos é uma mera fachada. A ordem foi fundada por Latrev e são poucos que compartilham de seus verdadeiros segredos.
— E esses seriam vocês. Correto?
— Está aqui por um mero capricho de Teslan, não pense que é igual a um de nós. Já percorremos um longo caminho muito antes de você sequer imaginar em parar aqui.
— Isso pouco me importa. Estou aqui agora, não é?
— Se quer mesmo saber toda a verdade, terá primeiro que provar que está disposto a entregar tudo em favor de sua ambição.
— Muito bem, chega desse falatório — alegou Teslan. — Temos que ter extremo cuidado a partir de agora. Depois de tudo o que vem acontecendo, não me espantaria se Calisto não fosse a única criatura que não nos quer por perto.
— Trate de ficar esperto, novato.
Com cuidado, deixaram o barraco e se esgueiraram pelas ruas e becos da favela, até alcançarem o quarteirão da associação. Ao avistar uma das construções mais elevadas, Teslan assumiu a dianteira e se dirigiu até ela. Lá, um Demônio os recebeu e pareceu alarmar-se mais e mais à medida que Teslan explicava a situação. Assim, após muito hesitar, permitiu a entrada do trio.
Apesar de não terem anunciado com antecedência sua chegada, Teslan e Olfiel também eram rostos conhecidos por ali, por esse fato suas presenças não chamaram a atenção dos demais guardas que defendiam a torre de vigia e monitoravam quem subia o morro em direção a entrada da sede da associação.
Do alto da torre, Teslan pôde espiar com olhos atentos a sede, sabia que tentar alcançá-la seria uma tarefa bem diferente.
Ainda pensavam no que fazer quando um intenso apito partiu da base e percorrem os arredores. Da torre, logo acompanharam uma intensa movimentação seguida por uma explosão.
— Andem! Se mexam! Protejam o forte! — ordenou um dos guardas, convocando os demais.
Em uma intensa correria pelas escadarias que pareciam mais íngremes conforme o grupo descia as pressas a torre de vigia, alcançaram a rua. Sem tempo para serem precavidos, romperam pelas vielas o mais rápido que podiam.
Não demorou para alcançarem o portão de ferro. Estava trancado e os guardas ausentes. Sem cerimônias, Teslan o mandou pelos ares e abriu passagem para os soldados.
— Acompanhem os guardas — ordenou Teslan para os colegas. — Vamos para o salão principal.
— Cuidado! — gritou Olfiel, ao escutar o som de um assovio que cortava o ar, antes de empurrar os colegas, tirando-os do alcance de uma sequência de flechas de madeira que ganharam ao longo do percurso as dimensões de verdadeiras lanças gigantes que caíram como bombas contra o solo e levaram o caos para os defensores.
Ainda atravessavam o pátio, quando, no horizonte, em cima de uma das construções, avistaram um único Demônio, mascarado, com um arco de madeira.
— Não percam tempo, temos que nos certificar que os Kadiras consigam escapar — afirmou Teslan, enquanto todos se abrigavam sob as paredes da associação, longe do campo aberto.
A passagem que alcançaram seguia para o coração da unidade. Em passo acelerado avançaram até o caminho ser obstruído por um espesso paredão de pedras e tijolos que se moldaram como uma barreira. Dela, surgiu um guerreiro mascarado que logo se envolveu em uma grande armadura de pedra, que lhe deu uma fisionomia similar a uma espécie de besta. Seus braços haviam se transformado em grandes garras ameaçadoras e pontiagudas, de longe as maiores peças que compunham sua densa e colossal armadura.
Outros invasores se aproximaram e uma disputa sangrenta ganhou forma, percorrendo os corredores da unidade, até que uma densa nuvem de fumaça tomou conta do ambiente.
Três explosões negras pareceram abrir caminho para parte dos defensores.
— Por aqui — afirmou Teslan, na dianteira.
Mais adiante, se depararam com uma ala repleta de corpos destroçados, preenchida somente por guerreiros mascarados. Uns estavam em pedaços, outros pareciam apenas terem sido estraçalhados por algum tipo de besta faminta. Não sabiam ao certo, mas sentiam que algo muito temível havia passado por ali.
Ainda atravessavam, quando, ao tocar em uma das paredes, o poder de um dos invasores criou uma pequena rachadura que, de imediato, se ramificou e se estendeu de forma exponencial, causando assim um desmoronamento que separou o grupo e poluiu o ar, tornando uma tarefa ingrata ver e respirar.
Receoso em avançar sozinho, Esfer tomou distância e contornou a passagem, alcançando, dentro da unidade, um terreno aberto, com várias construções de pedras e cabanas de madeira que lembravam uma vila, tomada pelo fogo e pela fumaça. Devastação que se alastrava rapidamente pela sede da associação à medida que os últimos soldados ainda de pé, naquela ala, caíam.
Esfer se esgueirou pela fumaça e pelo caos até se abrigar todo atrapalhado no interior de um velho casebre de madeira que ainda estava intacto, repleto de vidros, frascos, ervas, livros e amuletos.
Antes que percebesse, uma presença que se aproximava hesitou no meio do caminho, incrédula e com semblante choroso. Ao se voltar para a atendente, Esfer se deparou com uma visão nostálgica. Conhecia muito bem aquele olhar doce e profundo, assim como seus longos cabelos negros e lisos. Um pequeno sorriso surgiu no canto de seus lábios, mas não foi suficiente para esconder as marcas de sua longa agonia.
— Layrrel… Layrrel! — disse ao correr em seu encontro.
— Eu não entendo… Como veio parar aqui?
— Não era você que sempre brincava que as linhas travessas do destino eram imprevisíveis, talvez foram elas que me trouxeram até aqui — alegou com uma voz nasalada.
— Se soubesse que você estava por perto… Eu teria feito algo.
— Tem tanta coisa que eu quero falar — disse secando uma lágrima de Layrrel enquanto acariciava seu rosto.
— Teremos tempo, mas primeiro precisamos sair daqui. A irmandade já não é um lugar seguro. Precisamos nos apressar.
Antes que pudessem partir, uma grande explosão flamejante estremeceu o casebre e lançou para o alto a comporta da entrada para passagem subterrânea, causando uma pequena fenda no teto e levando a baixo várias estantes repletas de frascos e ervas, os quais passaram a se perder entre as chamas que começavam a se alastrar pelas estruturas.
Da origem da explosão, berros de ódio prenunciaram a chegada de uma nova presença que logo surgiu da densa fumaça negra, coberta por chamas. O Demônio não parecia se importar com elas, na verdade pareceu se alegrar um pouco quando os viu.
— Parece que encontrei um belo prêmio — afirmou, com um sorriso sombrio.