Volume 1
Capítulo 30: Dança das Chamas
A poeira de detritos que se ergueu, com o desmoronamento, tomava conta das estreitas passagens esculpidas no subsolo. Os túneis adotavam um trajeto sinuoso, fato que indicava que foram escavadas de maneira rudimentar. Cão não conhecia a área, mas, ao analisar o espaço, soube que se tratava da galeria subterrânea de Cirki, contudo, não fazia ideia de suas reais extensões e qual direção tomar.
A visibilidade era limitada e o desabamento poluiu o ar. Cão olhou para cima e tentou avistar o ponto no qual estavam antes de despencar, mas o trecho acabou obstruído. Sem saber ao certo, tinha certeza de que havia sido uma longa queda. Todo dolorido, começou a avaliar seus machucados. Como havia se envolto na própria sombra de maldições, os ferimentos foram reduzidos a leves escoriações.
Ciente que os perigos estavam à espreita, propagou suas sombras em distintas direções para monitorar os arredores e se antecipar a qualquer atividade hostil, tarefa facilitada pelo ambiente tomado pelo breu que permitia um maior alcance de seus poderes.
Perto do ponto de onde se encontrava, detectou duas presenças: um deles estava ferido; outro somente zonzo. O Caça-contrato logo os identificou através de suas habilidades, eram Petrir e Morcail.
— Ai! Minha cabeça — disse Petri ao levar a mão direita na testa e sujar sua palma com o próprio sangue. — Que ótimo… Ei, seu idiota, como você está? — perguntou para Morcail, ao seu lado.
Ele tentou se levantar, porém, ao apoiar o corpo em seu braço esquerdo, percebeu um profundo machucado que limitava seus movimentos.
— Já estive pior.
Petrir continuava em estado de alerta, olhando periodicamente para os lados, enquanto conversava com o colega.
— Pensei que um membro das oito grandes famílias seria uma máquina de matar. Não ficaria incomodado se honrasse logo o sangue que corre em suas veias.
— Eu sou forte, mas nem todos são verdadeiros monstros como você pensa.
— Maravilha… — Petrir balançou a cabeça de um lado para outro, desagradado.
Os dois ficaram alertas ao detectarem a aproximação de alguém. Antes que entrasse no campo de ataque da dupla, a figura que vinha na direção oposta anunciou quem era, através da manipulação de sua sombra.
— Fiquem calmos, não sinto a presença de ninguém além de nós por aqui. — Apesar de suas palavras, Cão se mantinha de prontidão. A situação era nada favorável e o ambiente que se encontravam tornava a atmosfera ainda mais desconfortante.
— Vocês tinham conhecimento sobre essas rotas de fuga? Que sentido Mildifer vê em construí-las, se ninguém sabe delas? Certamente ele não confia em nós ou eu sou uma exceção?
— Talvez eu também seja uma exceção. — Petrir se virou e encarou Cão, com um olhar de poucos amigos.
— Não precisam se preocupar comigo, eu represento uma ameaça menor do que qualquer um lá em cima — argumentou Cão apontando para o teto que tremia, enquanto intensos estrondos podiam ser ouvidos ao fundo. — Posso dizer sem nenhuma dúvida que esses túneis são obra de Cirki, a Feiticeira da associação. Tinha um percurso subterrâneo igual a esse que iniciava-se abaixo de seu medonho casebre, mas não fazia ideia de suas reais extensões, muito menos sei como sair daqui.
— Quem imaginaria a existência dessa galeria aos pés da organização.
— Eu nem sabia que tínhamos um Xamã. Enfim, a maioria costuma ser um bando de eremitas.
As teias sombrias de Cão se arrepiaram de maneira espontânea, fato que chamou a atenção dos três.
— Temos companhia.
— O que foi isso? Quem está vindo para cá? — perguntou Petrir que agarrou com uma das mãos as vestes do manipulador.
— Eu simplesmente não sei…
— Pare de rodeios, você viu alguém, não é? Não esconda.
— Minhas sombras foram destruídas… pareciam chamas.
Uma nova sequência de intercalados tremores anunciou que a batalha vinha em direção ao grupo.
— Rápido, para o chão! — alertou Morcail, ao prever a iminência de um novo desmoronamento.
Cão antecedendo a situação, envolveu os aliados em um casulo negro.
Não muito longe dali um trecho do túnel veio abaixo, acompanhado por uma cascata de detritos e uma erupção de chamas ardentes seguida por uma brisa escaldante, acontecimentos que anunciaram a chegada de uma nova figura. Antes que a nuvem de poeira se dissipasse, Cão já havia identificado quem surgia pela passagem esculpida a murros, contudo, poucos segundos depois, também detectou a aproximação de duas presenças hostis que avançavam pelo caminho ainda incandescente.
Cão, com seus poderes, rapidamente agarrou Calisto que acabava de entrar e a puxou na direção em que estavam.
— Morcail, ataque com tudo a passagem. Agora!
Com o cenário adverso, o Demônio nem se preocupou em repreender o Meio-sangue que ousava lhe dar ordens, um nobre de sangue puro.
Ele tocou as costas da espada em sua testa, abriu os olhos que a partir desse momento adotaram pupilas negras, as quais contrastavam com sua íris que ganhou uma tonalidade castanha, inclinou a espada para trás, em uma postura horizontal e disse:
— Arte imperial, teto de agulhas. — O golpe proferido seguiu o curso do túnel que passou a ser preenchido por rochas densas e pontiagudas, que tinham a mesma cor castanha dos olhos de seu algoz.
Petrir lhe deu dois amigáveis tapas no ombro, impressionado com a combinação de poder e maestria.
— Sabia que um nobre como você não seria um completo inútil.
— Provavelmente é por causa de comentários como esse que os espertinhos são os primeiros a morrer.
Com a rapidez de um relâmpago, os dois não puderam sequer pensar em intervir para impedir Calisto. Com um ataque surpresa, que explodiu contra as costelas de Cão, ela, mesmo contendo sua força, deixou o novato encolhido no chão enquanto o assistia se contorcer em dores.
— Já disse para não me tocar, sabe que sua mera presença me enoja. Desde quando você passou a se preocupar comigo? Não acha que está sendo ganancioso demais ao intervir em problemas maiores do que é capaz de lidar?
— Um aviso será o suficiente. — Ele tentou se levantar, sem sucesso. — Se é assim, na próxima vez, eu a deixarei morrer, com um sorriso no rosto.
— Você nem é capaz de seguir ordens direito, fica ainda mais inútil quando começa a pensar.
Cão, com olhos raivosos e um sorriso irônico, levantava-se com dificuldade.
— Se tivesse tanto nojo de mim, duvido que se daria o trabalho de me arrastar até aqui, para firmar um pacto comigo. Mas como disse… — Uma pontada em suas costelas o interrompeu por um momento. — Sou melhor obedecendo muito e pensando pouco.
Ele empurrou, com suas sombras, Calisto três passos para o lado, uma distância relativamente pequena, porém o suficiente para cumprir seu desejo. O teto situado às costas da Demônia se partiu e um dos invasores veio rumo a ela em alta velocidade.
— Mas o que… — as duas espadas chocaram-se de maneira ensurdecedora.
As investidas de Morcail e Petrir fizeram o inimigo recuar.
— Mais um. — Cão deu três ágeis passos para o lado, mesmo assim o novo inimigo, que surgiu como um raio, quase o atingiu com a espada. Poucos metros adiante, Morcail produziu uma barreira de pedras, mais vivas e resistentes que as rochas anteriores. A colisão resultou em mais um desmoronamento que engoliu a dupla, levando-os para uma região ainda mais profunda. Tais acontecimentos voltaram a comprometer a visibilidade e a qualidade do ar.
— Será que eu estou cercado por um bando de toupeiras? — falou Petrir que tentava mirar no oponente que seguia no espaço.
— De novo essa conversa. Que raios são toupeiras afinal? — perguntou Cão.
— Saiam logo daqui e ajudem Morcail, apesar de tudo aquele imprestável ainda é um Kadira. Eu cuido sozinha desse daqui — ordenou Calisto, apontado na direção do túnel recém-formado.
Antes que Petrir tivesse qualquer reação, percebeu que Cão, com passos apressados e cambaleantes, obedecendo às ordens, avançou até a turva cratera e pulou à procura do aliado.
— Tá bom. Me espere! Seu Meio-sangue dos infernos. — O Demônio, com um ranço no olhar, também desceu e sumiu pela fenda recém-criada.
— Realmente acha que pode lidar comigo sem ajuda? — perguntou o Paladino. Os dois eram os únicos que continuavam na área.
— Pelo que vejo você não faz ideia de quem eu sou, de qualquer maneira já é tarde para ter arrependimentos. — Ela estendeu o braço e apontou para o guerreiro imperial. Um emblema negro, circular e irregular nasceu no dorso de sua mão direita. A marca se alastrou por seu braço até cobrir parte do rosto. Uma técnica arriscada que usava maldições para absorver o poder de outros Demônios. — Morrerá aqui e agora. — Calisto avançou sem hesitar.
O manto vermelho, com sua lâmina que passou a ser envolta por chamas, desferiu um poderoso golpe verticalmente, de baixo para cima, que partiu, de propósito, o solo e jogou uma pilha de destroços para o alto.
A Demônia conseguiu desviar do ataque, mas se desequilibrou por um instante devido a ação de uma das rochas, tempo suficiente para que o Paladino investisse contra seu flanco exposto. O golpe só não foi certeiro porque Calisto lançou como uma bala sua espada coberta de chamas, que retardou o avanço do inimigo, enquanto caía em um ponto mais afastado e absorvia as lavaredas que encontrava pela frente. Antes que sua espada tocasse o solo, ela tomou impulso para sua ofensiva em uma das rochas que ainda pairava no ar, deixando um rastro ardente pelo caminho.
— Maldita! — O guerreiro imperial desviou como pôde e sacou uma segunda e mais curta espada contra a assassina que somente não foi ferida porque mudou no ar sua trajetória com uma, moderada e intencional, explosão de fogo.
Calisto não conseguiu golpeá-lo, porém foi capaz de agarrar seu manto, completar uma volta como um foguete em torno do inimigo e mandá-lo, com uma rajada de chamas, na direção oposta de sua espada.
Sem parar de avançar para reaver sua arma, ela, a partir de pequenas gotas de sangue, lançou um ataque de suas espirais vermelhas no sentido contrário, com o intuito de atrasar qualquer reação do oponente. Contudo, a medida não surtiu o efeito desejado.
O guerreiro que havia produzido uma improvisada barreira para receber o último ataque, terminava os preparativos para ativar uma arte imperial, que eram capazes de se assemelhar às temíveis artes arcanas, dominadas apenas por alguns nobres de sangue puro.
Os olhos do espadachim passaram da cor vermelha para uma tonalidade negra, escritos gravados em sua espada também ficaram negros e começaram a movimentar-se até serem engolidos pelas chamas que tremulavam de forma ainda mais ameaçadora. A partir desse ponto um aglomerado de sombras negras também passou a pairar ao redor do guerreiro.
O Paladino, que passou a dominar dois atributos, desferiu múltiplos ataques com uma velocidade assombrosa, o que gerou um estridente assobio, quando interceptaram Calisto. As sombras pontiagudas e a massa de fogo que adotava o formato de garras fatiaram sem nenhuma dificuldade a rocha onde sua arma estava cravada. Ao desviar o olhar para fugir do ataque, quase não teve tempo de evitar o movimento da espada do manto vermelho, que estava muito mais rápido após utilizar a arte imperial.
— Morra seu bastardo! — exclamou Calisto desferindo um de seus mais poderosos golpes a queima roupa, que inclusive a atingiu parcialmente devido à proximidade entre os dois.
A investida desta vez havia causado algum dano, porém o Paladino não parecia se importar. Ele caminhava com calma à medida que as sombras absorviam as chamas que ainda cobriam parte de seu corpo.
— Eu ainda não acabei. — Ele voltou para a ofensiva enquanto as armas projetadas com seus poderes lhe davam apoio movendo-se de maneira independente, assim se aproximou da Demônia que entrou no alcance de sua espada.
Calisto deteve o ataque com um soco no antebraço do guerreiro e com um chute acertou horizontalmente seu outro braço, fazendo-o soltar a lâmina menor, tais movimentos permitiram uma brecha para atingi-lo no queixo com seu cotovelo envolto por chamas. Uma sequência de golpes foi impedida pelas massas de fogo e trevas que voltaram a cobrir as ações do inimigo.
Apesar dos três socos que soaram como trovões e resultaram em um considerável sangramento no supercílio do inimigo, parecia insatisfeita. Resultado de uma tortuosa lembrança de sua estadia em Armeria, meses antes, que, nesse momento, passava a martelar sua mente.
— Você conseguiu me deixar muito irritada. — Seus olhos vermelhos ficaram ainda mais vivos. — Seres como você em breve não terão mais espaço em Vespaguem, mas isso pouco importa, sua vida acabará aqui. — Calisto curiosamente passou a emanar um poder avassalador, como se a princípio estivesse escondendo as reais extensões de suas capacidades. As chamas ao redor da Demônia emanaram um calor escaldante que ofuscaram até os olhos do manipulador de fogo e derretia o solo de terra e as pedras à sua volta. Cada passo dela resultava em uma pequena explosão que faziam seu cabelo preso como um rabo de cavalo esvoaçar, exalando um apetite assassino pelos velhos túneis. Sua imagem parecia retratar a própria personificação do poder.
— Como uma mera plebeia pode ser tão poderosa?! — A voz do guerreiro oscilou e seu cabelo balançava devido a temperatura infernal que se propagava pelo ambiente. Nesse instante, na visão do Paladino, as paredes pareciam mais apertadas e o ar ainda mais poluído.
Com um único e certeiro ataque de seu punho que causou uma zona de impacto similar a uma explosão, ela deixou uma trilha de chamas e destruição à medida que abria uma cratera rumo à superfície, arrastando o inimigo já desfalecido por um grande percurso. O final de sua demonstração de poder a levou até uma área aberta, causando uma propagação de chamas semelhante a erupção de um pequeno vulcão, próxima da sala de entrada, primeiro ponto de acesso após as passagens estreitas que sucediam o discreto e reforçado portão de ferro que sempre era vigiado, mas que agora se encontrava destruído.
Desse ponto, Calisto se deu ao luxo de admirar por um segundo as luzes do Fosso que pareciam propagar pelas paredes subterrâneas uma aura ainda mais hostil que a habitual. Um breve refresco para as novas ameaças que logo surgiriam.