Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 28: Ponta de Tormenta

A atmosfera ficou mais pesada com a chegada de Calisto. As duas rivais transpareciam seus ânimos através de suas expressões, com os nervos visivelmente aflorados. A divergência entre elas resultou na apreensão dos presentes que acompanhavam o início da áspera discussão.

— Vejo que as cobras nunca perdem o seu veneno.

— Sua oferecida, se afaste já de meu servo ou sofrerá as consequências.

— Até parece que eu a obedeceria. Olhe, ele está se divertindo, não há motivo para tanto alarme… ou será que sua preocupação é devido a um forte apreço por esse traste?

Cão não se divertia, seu semblante estampava o receio que tinha ao manter-se próximo de Deneris. Ainda se afastava com passos lentos e precavidos quando teve uma ideia e resolveu arriscar, acreditando que Calisto não fugiria de uma briga.

— Essa Demônia é detestável, uma verdadeira louca, uma criatura vil e violenta que em nenhum momento parou de fazer insinuações… libidinosas sobre você e… — Ele foi interrompido pelo som de uma lâmina cortando o ar. Acabava de desviar por muito pouco do arremesso de um punhal lançado em sua direção por Deneris.

— Maldito inseto! Eu vou te estraçalhar, o único detestável aqui é você. Um minuto atrás disse que não gostava de intrigas! Como pode ser capaz de mentir assim?

Cão manteve uma cara deslavada como se sua vida dependesse disso.

— Se enalteceu a todo instante durante nossa conversa, inclusive alegou que sempre saia vitoriosa em suas disputas com Calisto. — Ele virou o rosto para disfarçar. A parte final de seu discurso era uma mentira completa, porém sabia que precisava ser convincente para escapar da enrascada.

Uma veia dilatada se sobressaiu na testa de Deneris.

— Me diga então que disputas eram estas.

Ele ficou ainda mais sério e com o rosto um pouco vermelho.

— Bem… sobre hom… sobre homens. — O Meio-sangue arrumou o cabelo. — Enfim, ela não foi muito precisa, apenas fez breves insinuações, afinal nossa conversa foi rápida. — Cão coçou o pescoço lembrando-se de que há poucos instantes quase foi decapitado por Deneris. Ele, com os olhos atentos, analisava qualquer reação hostil para anteceder o menor movimento, pronto para fugir corrido dali, caso fosse necessário.

Segundos tenebrosos e silenciosos reinaram de forma absoluta, aqueles que assistiam a cena pareciam não acreditar no que viam e ouviam.

Com um olhar assassino, Calisto se aproximou dos dois enquanto estalava os dedos.

— Só pode estar brincando comigo. Eu vou te matar. — Cão e Deneris se entreolharam. — Quantas vezes você vai lembrar daquela história, sua vadia.

— Mas o que?! Vai acreditar nesse inútil? Realmente eu me surpreendo com suas demonstrações de estupidez, mas tudo tem limite.

— Qual é a nova calúnia que andou espalhando sobre mim? Me diga se tem coragem!

— Ela não deu detalhes, mas se deleitava sobre o ocorrido — alegou Cão, antes de desviar mais uma vez o olhar.

— Prepare-se para morrer, inseto.

— Deneris, será você que morrerá — disse Calisto, ao partir para cima da rival com punhos furiosos.

A guerreira também partiu para a ofensiva. As duas estavam prontas para trocarem os primeiros golpes. Contudo, uma rajada de projéteis vermelhos caiu entre as duas, impedindo o início de um novo duelo.

— Eu disse sem intervenções, Cunaiver — falou Deneris, apontando para o companheiro.

— Desculpe, mas as ordens de nosso amo são absolutas.

Baltar andou rumo ao novato para acabar de vez com a discussão.

— Lembro que você foi um dos selecionados para ser uma das espadas do Fosso, depois de participar dos testes dentro da minha torre. Me recordo disso porque Olfiel armou uma bela travessura naquele dia.

— Evite falar coisas desnecessárias — alertou Calisto com os olhos vermelhos. — Estou sem paciência para brincadeiras.

— É o que parece, sendo assim vou me retirar. Trate de não arrumar novas confusões enquanto eu estiver longe ou serei obrigado a ter uma conversa séria com Mildifer. — Ele olhou para trás. — Chega de perder tempo, vamos sair daqui. A reunião está prestes a começar.

Deneris e Cunaiver obedeceram. A voz dos dois sumia à medida que se afastavam.

— Foi muito baixo da sua parte contar de suas aventuras com Calisto para aquele Meio-sangue — alegou Cunaiver.

— Desgraçado! Você também acreditou naquelas mentiras infundadas? Ele vai ver só, me pagará — disse Deneris.

— Agora que eles já foram, podemos colocar as coisas em panos limpos. — Calisto continuava com os olhos vivos como sangue.

— Do que está falando?

— Ainda é difícil engolir que aquela peste falou aqueles desaforos sobre mim. Sinto que algo não está certo. — Ela estalou os dedos e apertou o punho, tentando extravasar um pouco de sua raiva.

Cão estufou o peito. O pior já havia passado, não pretendia jogar fora todo seu esforço para escapar daquela bagunça.

— Eu que não deveria compreender aquela criatura. Se ela fala pelos cotovelos, que culpa eu tenho? Sou a única vítima aqui, ela que veio atrás de confusão. Vamos terminar logo o que viemos fazer aqui. — Ele apertou o passo e chegou em frente da sala de reuniões por uma passagem diferente da que Baltar utilizou.

Calisto continuava incomodada com sua postura, mas ignorou a situação por hora, tinha questões mais urgentes para tratar. Ela segurou o Caça-contrato impedindo-o que entrasse.

— Fique aqui fora e faça seu trabalho sem vadiar, lá dentro não é lugar para lacaios como você. — A Demônia fechou com uma certa agressividade a porta de madeira que possuía finos acabamentos prateados quase na cara de Cão.

Largado de lado por sua superiora, o Caça-contrato passou a esperar o término da reunião. Visualizou um bom ponto para montar guarda, desta vez ficaria com os olhos mais atentos para não ter outra surpresa indesejável.

No interior da sala, os doze Kadiras se reuniam em uma vasta mesa com doze lugares, a qual tinha delicados detalhes dourados esculpidos na madeira que realçavam, no centro, uma gravura composta pela representação em miniatura de treze relíquias ao redor de uma centelha, fazendo referência às treze armas portadas pelos grandes reis que regiam o mundo. Este era o emblema da associação. Ao fundo, os únicos que podiam assistir o debate era um pequeno grupo de soldados de alta confiança.

Os influentes se posicionavam para iniciar o encontro e discutirem a respeito dos recentes acontecimentos que abalaram Vespaguem e como esses eventos afetariam seus próximos passos.

Mildifer, sentado na cabeceira da mesa, começou a falar com os descontentes convidados.

— Peço a atenção de todos. Acredito que todos aqui não desejam perder seu tempo, devem ter muito o que fazer com os últimos ocorridos no império.

— Vamos tratar de um problema por vez, sei que o mesmo vale para você — disse Latrev, na cadeira à esquerda do velho amigo.

— Primeiro, vamos conversar sobre a mudança de Vespaguem. Tenho motivos para ter meus questionamentos, imagino que vocês possuam algumas dúvidas semelhantes.

— A paisagem da cidade nunca mudou antes, com a locomoção de Vespaguem. Agora tem esse interminável e detestável nevoeiro por toda parte — disse Morcail, um Demônio de cabelos pretos, pele branca e de porte atlético. Usava um casaco de couro marrom sobre uma fina camisa cinza e mantinha sua espada, que parecia ser uma velha companheira, ao lado da cadeira.

Ele foi o último dos integrantes da mesa a tornar-se um Kadira, sendo o mais jovem sentado ali. Era um Demônio de alta patente no terceiro esquadrão de Batedores e também um apostador nato em vários jogos organizados nos subúrbios das áreas pobres do império, reflexo de sua personalidade ávida e jovial. Tal comportamento não condizia com sua posição, como membro da família Grifen. Assim como Mildifer, também pertencia a uma das grandes famílias de Vespaguem.

— A questão que devemos priorizar são os Sombrios, foram eles que instauraram o caos nas ruas — argumentou Baltar.

— Realmente acha que essa é nossa única prioridade? — perguntou Petrir, sem medo de alfinetar o colega.

O líder da ordem se levantou, colocou as mãos sobre a mesa, inclinou-se para a frente e o questionou:

— O que está insinuando com isso?

— Turcarian demorou muito tempo para mover a cidade, as terras ao redor da Grande Barreira já tinham sido exploradas o suficiente. Não acham isso estranho?

— De fato, meus servos já percorriam distâncias consideráveis há tempos, acompanhando as buscas fora da barreira — falou Latrev, que analisava atentamente a reação dos presentes. — Durante o ataque dos Sombrios, eles estavam em um ponto bem ermo. É quase como se nossa soberana desejasse que o ataque dos Sombrios acontecesse…

Todos pensaram duas vezes antes de soltar qualquer palavra.

— Isso é no mínimo algo que deve ser considerado — comentou Mildifer.

Morcail levou uma das mãos ao queixo, pensativo.

— As aparições de Sombrios em pontos isolados, já seria em teoria motivo suficiente para mover Vespaguem.

— Temo que no momento os Sombrios não sejam a maior ameaça para Turcarian, seu real inimigo atende por outro nome — alertou Latrev.

— E o que mais seria capaz de causar problemas para a nossa soberana? A febre do demônio?

— Solenaris, senhor da cidade-fortaleza de Falazis — disse um dos Kadiras.

— A velha inimiga de Vespaguem — acrescentou um segundo.

Petrir levantou sua mão de forma irônica e a baixou antes de começar a falar.

— Não sejam tolos. Uma guerra entre duas das treze cidades-fortaleza nunca acontecerá, isso romperia o frágil equilíbrio de nosso mundo. Os outros soberanos, se eles ainda existem, interviriam antes do princípio de uma guerra.

— Não é aconselhável descartar essa possibilidade, mas devo admitir que sua lógica está certa. — Latrev ficou de pé, ao lado esquerdo de Mildifer.

Mildifer olhou para o velho companheiro.

— O passado entre Turcarian e Falazis não é nada amistoso, mas também duvido que um grande conflito possa ocorrer.

— Vamos parar de rodeios e focar em nossas próximas ações — disse Baltar, com um semblante de poucos amigos. Insatisfeito com os rumos que a conversa tomava.

— Muito bem… — Ele suspirou fundo antes de continuar. — Como líder da associação vou apresentar… — Uma grande explosão soou pela sede dos Kadiras e estremeceu os copos postos sobre a mesa, estampando na face de muitos uma certa apreensão.

No instante seguinte, um vigia entrou na sala abrindo abruptamente a porta.

— Estamos sendo atacados!

— Nos diga qual é a situação, seu idiota — reclamou Calisto, que puxava para si a responsabilidade de assumir o problema.

— São os Sem Face. E muitos, um esquadrão inteiro, talvez dois.

— Se mexam! Andem! Deneris e Cunaiver, acompanhem os convidados até a passagem subterrânea. Os que podem lutar me sigam. Vamos escorraçar esses nojentos.



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