Volume 1
Capítulo 27: Desafetos
Cão dormia com um ar preguiçoso em sua rede, isolada dos demais membros. Sabia que Vespaguem era uma cidade traiçoeira, o interior da sede dos Caça-contratos não uma exceção, sendo assim, sempre que a noite caía e a maior parte das luzes do Fosso eram apagadas, o Meio-sangue tecia suas maldições, que se assemelhavam a uma teia sombria, nas redondezas de seu leito, como uma medida de prevenção contra qualquer ameaça externa. Toda a desgraça que recorrentemente caía sobre ele tinha o ensinado que era melhor ter uma pequena pitada de desconfiança sobre tudo.
Desse modo, despertou em alerta, no meio da noite, embora tivesse contido sua reação para não chamar qualquer atenção. Acabava de detectar uma presença que vinha em sua direção.
No breu, Cão não conseguia enxergá-la, mas podia senti-la. Estava ciente de que ela se movia de forma irregular. Ficou intrigado, com cuidado estendeu um dos braços e devagar agarrou um punhal que mantinha ao lado de seu leito, pronto para ser o primeiro a atacar, se necessário.
Em certo ponto o intruso acelerou de maneira absurda e silenciosa, por um instante Cão teve dificuldade em localizá-lo com suas maldições, tempo suficiente para que essa traiçoeira figura desferisse uma investida que somente não foi certeira devido aos reflexos apurados do Caça-contrato, o qual rolou para o chão à medida que sua lâmina cortava o ar. A velocidade do agressor foi tão rápida que não conseguiu identificar seu tamanho e dimensões.
— Mas o que é isso? Quem é que está aqui? — falou Cão, desnorteado e com os olhos arregalados.
Suas perguntas foram ignoradas. O Meio-sangue duvidava que aquilo fosse um Impuro ou um Demônio, porém aquilo era o que menos importava no momento, pois neutralizar o indivíduo hostil era a prioridade.
O intruso de novo atacou, sem hesitar. Cão respondeu com a criação de uma haste negra e pontiaguda que partiu na direção do invasor que conseguiu evitá-la com um zigue-zague no ar antes de investir outra vez.
A ofensiva do Caça-contrato abriu caminho para um segundo ataque, com seu punhal, que apenas o atingiu de raspão, graças a uma nova demonstração de velocidade do visitante indesejável, porém foi o suficiente para atordoá-lo. Era possível vê-lo se debater ao fundo, quando o novato percebeu algo caindo em sua direção, eram penas.
Ele agarrou uma das penas e a esmagou com raiva.
— O que está acontecendo? — perguntou para si mesmo.
Ao avançar, com passos hesitantes e cautelosos, pôde ver uma espécie de pombo negro com cerca de cinco quilos, que ostentava um bico afiado e garras capazes de estraçalhar com facilidade qualquer pessoa comum.
Indignado, Cão esfregou uma das mãos sobre o rosto. Quando olhou para o chão viu um pequeno pergaminho, parecia uma mensagem. Logo que ele começou a ler, a criatura aproveitou para fugir forçando passagem pela janela entreaberta.
Querido inseto, espero que ainda se lembre que agora você é um servo da associação. Esta noite, quero você, o quanto antes, na sede da ordem. Vespaguem está à beira do caos, graças a confusão que paira sobre a cidade. Os Kadiras irão se reunir para discutir sobre isso e esquematizar os nossos próximos passos.
O mensageiro que enviei é um dos pombos espiões que pertencem a central da associação, são perfeitos para manter a discrição, então tome cuidado com ele, ouvi que esses “fofinhos” comem carne de Impuros. Fique esperto, já que você é um Meio-sangue, talvez ele tente te estraçalhar. Sugiro que tenha um sono leve, não que isso me importe. Ah! Ah! Ah!
Ainda amassava a mensagem com um olhar rancoroso quando percebeu uma movimentação no outro lado do casebre, sabia que toda a confusão finalmente havia alarmado algum de seus colegas. Sem dar grande importância, se apressou enquanto procurava não chamar mais a atenção. Em seguida, arremessou longe a mensagem, pegou sua espada e saiu pela porta principal com uma maçã que havia adquirido no dia anterior.
— Cão, é você? Aonde você está indo tão tarde? — perguntou Esfer, que, ao ouvi-lo, o seguiu até a entrada. Àquela hora, as luzes acesas sempre eram raras e a visibilidade limitada.
Cão parou de costas para Esfer, ficou alguns segundos quieto, pensou em partir, mas, por fim, resolveu responder:
— Desde quando lhe devo qualquer satisfação? Não lembro de ser seu amiguinho, pelo contrário, acredito que as coisas têm só piorado. Já me cansei disso tudo.
— Do que está falando? Me diga onde quer chegar.
Ele virou-se para Esfer, com um olhar frio e profundo.
— Pense um pouco sobre o que vimos até aqui. Realmente acredita que não há nada fora do normal?
— Pare de rodeios e me conte.
— Não cabe a mim dizer mais nada. Tente entender sozinho, se quiser.
— O que um desgraçado como você pode ver que eu não possa compreender?
O Meio-sangue suspirou fundo.
— Nunca escondi que era diferente. Sempre tive dificuldade em entender os sentimentos dos outros, mas sinto que isso já não importa mais… Pretendo viver sem distrações até o dia em que eu possa enfim resolver as minhas pendências com o passado. E, se tiver sorte, encontrar uma coisa que eu possa chamar de real.
— Isso é algo que você seria incapaz mesmo se tentasse.
— Algo que nós dois seríamos incapazes. — Cão sorriu de forma irônica. — Isso é que mais me enoja — afirmou, antes de sumir em meio às sombras.
No caminho, conforme perambulava pelas traiçoeiras e sinuosas ruas do Fosso, Cão amaldiçoou o dia em que foi obrigado a fazer um pacto de sangue com Calisto e se tornou um servo da associação. O foco no seu mau agouro era tremendo que quando reparou, já estava perto da sede dos Kadiras.
Realizava o percurso que fez acompanhado por Calisto alguns dias antes. Os corredores estreitos e becos traiçoeiros formados por modestas construções continuavam a emanar uma aura nada amistosa, fato que não mudou ao chegar ao rústico e pequeno portão de ferro que mascarava as verdadeiras extensões de seu interior.
Diante da entrada, ele bateu no portão.
— Sou um colega de Calisto, o novato que ingressou na ordem há alguns dias. Vim a pedido dela.
Uma pequena portinhola se abriu e a face, nada amistosa, de um Demônio surgiu. Sua pele era um pouco cinzenta e se mostrava um vigia alerta e precavido.
— Lembro de você aqui e de seu ingresso em nosso grupo, mas não posso autorizar sua entrada aqui, especialmente hoje, agora saia daqui ou serei obrigado a dar cabo de você.
— Então eu posso zarpar daqui sem ser repreendido por ninguém?
— Não pense que escapará de suas obrigações tão fácil assim. — Dos fundos, Korvel apareceu.
— Foi apenas uma pergunta, costumo fazer muitas, mas acabo encontrando poucas respostas.
— Voltando ao assunto, Calisto me contou que você viria. Ela empurrou o aval de sua permissão para mim, contudo pensei que fosse esperto e fugiria para longe.
— Isso sem dúvidas é algo que ela faria.
— Deixe-o entrar — disse Korvel para o guarda.
— Como desejar — respondeu o vigia que desobstruiu a passagem para o recém-chegado.
Cão adentrou o espaço, Korvel o acompanhou. Os corredores inicialmente estreitos começavam a ficar mais largos e ganhavam um ar de imponência.
— Você deveria ficar mais calmo, está seguro aqui dentro — argumentou Korvel.
— Cautela nunca é demais, ainda mais após cruzar o caminho de Calisto.
— Como conheceu ela?
— É até desagradável lembrar. — Cão olhou para o Demônio. — Isso não importa, só quero terminar logo o que tenho que fazer aqui. — Em seguida, acelerou o passo de sua caminhada, deixando-o para trás.
Assim que o Meio-sangue alcançou as instalações da associação, pôde ver um vasto e bem organizado conglomerado de construções, feitas de pedras e tijolos em sua maioria, as quais davam vida ao espaço com os mais variados formatos e dimensões. Todas antigas, mas que se encontravam em bom estado apesar da ação do tempo. Pelo ambiente era possível ver algumas figuras, a maior parte composta por guardas desuniformizados, armados com espadas. Depois de observá-los, constatou que Calisto não estava naquela parte da sede.
Cão sentia-se de novo deslocado neste local. Pensativo sobre sua situação, avançou com cuidado pelas construções até ver alguns casebres feitos de madeira, um deles lhe parecia particularmente familiar, eram as instalações de Cirki. Ele decidiu ir até lá.
Sua escolha não foi um mero acaso, desejava aproveitar essa oportunidade para rever a funcionária que, apesar dos sustos do último encontro, havia atraído sua atenção.
Ele entrou na choupana da Feiticeira. Ao cruzar a densa cortina que detinha o avanço da claridade, logo enxergou os olhos dourados da atendente e sua pele alva e delicada, que destacava as curvas sedutoras de seus longos cabelos negros, banhados sobre a luz de uma pequena lamparina.
— Vejo que as coisas não mudaram muito desde que estive aqui — disse o visitante, conforme alongava os braços para trás.
— Você? O que pretende aqui? Não me parece que veio fazer uma nova consulta. Lembro que no nosso encontro você praticamente veio arrastado para cá.
— Nós dois estamos no mesmo barco, reféns das ordens de terceiros. — Ele analisou o lugar, como presumiu a funcionária era a única alma naquele lugar. — Mas não foi sobre isso que eu vim falar.
Layrrel pegou uns frascos e começou a retirá-los do balcão como se quisesse mostrar serviço e que não estava largada às moscas por sua mestra naquele lugar.
— Do que você estaria atrás?
— Nem eu sei exatamente, acredite. — Ele pegou um dos poucos livros que estavam à mostra. — Apenas aproveitei a ocasião para fazer uma visita, imagino que isso seja algo raro por aqui. Estou errado?
— Estaria mentindo se alegasse o contrário. — Ela soltou o último dos frascos do balcão sobre uma pequena estante e suspirou fundo, sabia que podia ser franca com o Caça-contrato, ambos estavam em pé de igualdade. — Você é o novato do outro dia, pelo que me lembro o chamam de Cão.
— É… vejo que você lembra de mim. — O visitante mais uma vez passou a vista sobre as paredes simplórias, os frascos intocados e as portas e janelas que encontravam-se lacradas ou encobertas. — Deve ser difícil viver nesse ambiente fechado, costuma sair um pouco? Tenho certeza que a maioria ficaria feliz em ver esses seus olhos dourados. — O Meio-sangue sentou em um modesto banquinho.
— Sabe que precisamos conhecer nosso lugar, você deveria ser o primeiro a estar ciente disso. — A atendente apoiou o cotovelo sobre o balcão e o queixo sobre a palma da mão. — Já perdi a noção do tempo desde que cheguei aqui. Os dias parecem meses, este lugar odioso é um lugar repleto de perigos, ainda mais para garotas. — Seu olhar se tornou mais triste, enquanto se afastou até a outra extremidade do balcão.
Ele passou a evitar encará-la e focou sua atenção no livro que havia pego. Apesar de ser capaz de decifrá-lo, não estava interessado em lê-lo, só folheava as páginas devagar.
— Peço desculpas se fui inconveniente, não era minha intenção.
— Sei me virar muito bem, dispenso seus zelos.
— Isso é novidade, sempre ouço várias coisas sobre mim, mas nunca me acharam uma pessoa gentil, alguns viventes até me recebem armados.
— Esse é mais um motivo para ficar longe de estranhos… ou intrusos. — Layrrel fuzilou o Caça-contrato com um olhar de desprezo.
Cão estendeu a palma das mãos para frente, pedindo calma.
— Fique tranquila, admito que falam muito sobre mim, mas nenhuma delas é verdade… a maioria pelo menos.
— Hum… porque não chega mais perto? Você está muito longe, ficará mais fácil para conversar. — A atendente, de propósito, mexia as mãos de maneira descuidada no balcão. Ela parecia pegar algo suspeito e queria que o Caça-contrato percebesse.
Nesse momento, ao folhear a próxima página, Cão se deparou com uma medonha ilustração que retratava uma figura humanoide selvagem se metamorfosear em uma espécie de morcego colossal e sanguinário. Por puro reflexo fechou o livro e passou a acompanhar de longe a intrigante movimentação da serva de Cirki.
— Não sei porque, mas, de repente, fiquei com a sensação de que estou mais seguro no meio dos Demônios.
— Trate de ter isso em mente sempre que vir até aqui.
“Então eu posso retornar”, pensou Cão.
— Com palavras tão ásperas, eu posso deixar de passar aqui na próxima vez que voltar para a sede da associação.
— Saia logo daqui. — Ela apontou para a saída.
O Caça-contrato não conseguiu esconder um sorriso presunçoso no canto da boca.
— Tenha uma boa noite. — Ele deu as costas e saiu.
— Igualmente — disse Layrrel que sumia para os fundos da loja.
Ao deixar o casebre, o Caça-contrato regressou à sala de entrada que antecedia o acesso ao corredor principal. Quando alcançou o espaço, constatou que o ambiente encontrava-se mais povoado, porém Calisto não estava ali. Os ânimos estavam visivelmente aflorados, um reflexo dos turbulentos acontecimentos que assolavam a cidade nos últimos dias.
O Meio-sangue, insatisfeito com a situação e desagradado com as presenças estranhas, já pensava em reencontrá-la com armas em mãos e analisava suas chances com uma investida surpresa, contudo resolveu avançar um pouco mais a procura de um lugar mais reservado para pôr as ideias em ordem.
Fez uma breve caminhada até encontrar uma sala ampla com paredes planas e cinzas, que lembrava um refeitório, repleta de mesas e assentos, área na qual os guardas costumavam passar o tempo livre, quando não exerciam suas funções. Nesse dia em específico, devido aos preparativos para a conturbada reunião dos Kadiras, a maioria dos vigias pareciam trabalhar o dobro, em virtude disso, havia poucas figuras ocupando o espaço. Cão aproveitou para aguardar em um dos bancos de madeira.
O ponto era perfeito para acompanhar a movimentação dentro da associação. Pretendia que sua espera ocorresse sem imprevistos, mas não foi o que aconteceu, uma das figuras que transitavam pelos corredores veio em sua direção.
Era uma Demônia de pele morena, com longos cabelos negros e presos que formavam um coque. Com uma presença intensa, demonstrava ser uma guerreira de sangue quente, que não engolia desaforos, aflorando os primeiros indícios de sua personalidade fervorosa.
— É novo por aqui? Ouvi por aí que você é amiguinho daquela serpente que bebe sangue.
— Calculo que esteja falando de Calisto. Não somos exatamente amigos, na verdade estamos bem longe disso.
— Hum… então qual seria sua relação com ela?
— Algo que seja menos que amigos.
— Que chato você é, pensei que seria um pouco mais divertido. Tem alguma história cabeluda sobre ela para me contar?
— Prefiro evitar intrigas, tenho a impressão que a minha vida correrá menores perigos se eu manter a discrição.
— Aff… vejo que estou perdendo meu tempo com o capacho dela, que coisa deprimente. — A guerreira se virou e apoiou o rosto sobre a palma de uma das mãos para observar a elevada circulação dos corredores com uma certa despreocupação.
— Caso precise fazer alguma coisa, já pode ir. Minhas recentes companhias não têm sido agradáveis, a maioria sempre me recebe com lanças e punhais. — Cão olhou com o canto dos olhos para ela. — Por acaso não estaria armada?
— Talvez…
“Layrrel há poucos minutos respondeu de maneira semelhante”, pensou ele.
— Espere um segundo, eu sabia que já te havia visto antes, lembro que você estava acompanhando Baltar, quando estive aqui.
— Calado. Já está me aborrecendo. Qual é seu nome afinal? — A vigia se levantou, preparando-se para sair.
Cão, que não gostava de como era chamado, automaticamente a respondeu de forma áspera:
— Não é da sua conta. — Ele estendeu o braço como se quisesse agarrar no ar as palavras que acabava de proferir, mas ao mesmo tempo não queria perder a posse, ainda mais diante de uma figura tão dominadora.
A voz da Demônia adotou um tom ameaçador e passou a emanar uma aura assassina, enquanto ela tentava sem sucesso forçar um sorriso em seus lábios.
— Posso ver que os dois são parecidos. — Com uma velocidade sobre-humana, sacou um punhal que foi detido ao chocar-se contra uma lâmina negra projetada pelo novato, já próximo da garganta. Ele chegou a cair no chão, mas, com sua sombra, se agarrou em uma das pilastras e rolou para trás, conseguindo recobrar a postura. — Achei que estivesse com a guarda baixa, não pensei que fosse escapar disso. — A assassina começou a caminhar rumo ao Caça-contrato enquanto estudava seus movimentos.
Uma voz alegre surgiu ao fundo. O guarda alto e de pele negra se divertia com a situação.
— Deneris, delicadeza nunca foi uma de suas virtudes, porém, se continuar, vai matar o garoto.
— Essa é minha intenção. Caso me atrapalhe, também vai sobrar para você, Cunaiver.
Um senhor, atraído pela agitação, adentrou o recinto e parou ao lado de Cunaiver. Usava uma túnica marrom de finos tecidos com detalhes em dourado e possuía uma barba grisalha que parecia ser aparada com frequência. Esse era Baltar.
— O que diabos está acontecendo aqui? Alguém pode me dizer?
— Também não sei ao certo, mas pelo que sei esse que está em apuros é um conhecido de Calisto, eterna rival de Deneris. Imagino que seja outra confusão ligada a seu desafeto.
— Vou matá-lo aqui e agora! — exclamou Deneris para Cão.
Baltar levou as mãos para o alto.
— Não faça isso aqui, sua doida, hoje é um dia importante. Estou repleto de questões importantes para tratar, não é hora para arranjar um novo problema.
— Pois saiba que ninguém vai me impedir.
— Veremos se isso é verdade. — Uma nova figura se aproximava com passos firmes e pesados, estampando em sua face assassina um sorriso vazio e olhos vermelhos como o sangue, os quais deixavam apreensivos todos que reconheciam a ira impetuosa que, naquele momento, acompanhava a chegada de Calisto, a Devoradora.