Volume 1
Capítulo 23: Vendaval
Um grande pilar de luz, azulado, se ergueu no horizonte, em direção ao céu, trazendo sobre a névoa o prenúncio de uma antiga calamidade.
No instante em que o viu, Teslan reconheceu aquela visão contada nas antigas histórias e nas velhas escrituras gravadas nos muros da Grande Barreira, mas se recusava a acreditar no que estava diante de seus olhos.
— Malditos Humanos! — vociferou Esfer.
O Impuro cerrava os dentes e encarava com um olhar raivoso aquela visão fétida que parecia materializar todo o ódio que sentia pelos vagantes eternos que abandonaram seus ancestrais.
— Eu não entendo, isso não deveria acontecer. Por que logo agora? — Teslan se perguntou.
— Se acalme — disse Barock, ao pôr uma de suas mãos pesadas sobre a cabeça de Esfer, de um modo não muito camarada. — Se fizer tanto barulho, talvez seus amiguinhos vejam você.
Em um ponto longínquo, avistaram um sinalizador ganhar as alturas. Em seguida, novos dispositivos começaram a ser lançados de pontos distintos, causando inúmeras tochas vermelhas no horizonte, que contrastavam com o breu quase absoluto da paisagem pedregosa. Um presságio do que em breve aconteceria.
— Andem rápido, a partir de agora não ganharemos nada sendo discretos — afirmou Teslan retomando a dianteira.
— Se eu fosse vocês, eu me apressaria — disse Barock que alcançava Teslan. — Os demais passaram a segui-los.
A marcha dos Caça-contratos logo passou a ser acompanhada, ao fundo, por gritos, provavelmente de um explorador, que ecoavam pela imensidão árida. Uivos de desespero e dor que passaram a assolar seus corações, enquanto debandavam pela névoa eterna.
— Fique junto, Impuro. Ninguém sairá à sua procura, caso se perca — afirmou Galezir, ao olhar para trás e reparar a respiração ofegante e os passos pesados de Esfer.
— Calados, não é hora para brigar — afirmou Sark.
— Em guarda, algo está se aproximando.
— Barock, sempre fico abismado com suas habilidades de detecção. Vê mais alguma coisa? — perguntou Teslan, sem enxergar nada que chamasse atenção.
— É difícil me localizar, parece que a presença dos Sombrios também está interferindo nos meus poderes.
— Significa que estão cada vez mais perto. Acelerem o passo, rápido!
— Temos companhia — alertou Barock, com uma voz anasalada.
— Qual a distância?
— Perto.
Novos gritos foram ouvidos, vinham da direção em que avançavam. A expedição do décimo primeiro esquadrão de Coletores lutava contra um Sombrio, menor e mais esguio que o anterior.
— Vejam, os Coletores estão lutando.
— Eles claramente estão levando a pior, para dizer o mínimo, também buscam abrigo dentro da Grande Barreira.
— Não temos muita opção, só nos resta ajudar. Me acompanhem! — alegou Teslan, liderando a ofensiva, seguido pelos demais membros do grupo.
O líder dos Caça-contratos, apesar de ainda estar distante, efetuou um poderoso e preciso disparo que fez a besta de pele pálida e cinzenta cambalear.
— Vejam! Os Caça-contratos voltaram — disse um dos Coletores, que acenava para os aliados.
— Sigam firme! Ela ainda não desistiu — falou um segundo Coletor.
Os dois grupos se reuniram mais uma vez, enquanto Teslan e Belter buscaram abrigo entre as pedras para repensarem suas possibilidades.
— Vocês têm alguma sugestão para derrubarem essa coisa? — perguntou Teslan.
— Digamos que sim… teremos somente uma chance. — Belter, no comando dos Coletores, mostrou uma bolsa cheia de artefatos.
— As coisas só melhoram… — Ele passou a mão sobre o rosto, como se quisesse simplesmente sumir. — Esfer, venha aqui, tenho um serviço especial para você.
— Tenho a sensação de que não gostarei de ouvir seu pedido.
Teslan pegou de seu manto um pequeno pedaço de madeira quadricular adornado por um conjunto de escritos negros, que se entrelaçavam de maneira irregular.
— Está vendo esse marcador, essa será sua salvação. Ele é um grande e reforçado, levei um certo tempo canalizando energia para criá-lo, mesmo com a presença dos Sombrios não se desintegrará facilmente. Agora olhe para essa bolsa, preciso que prenda isso nessa criatura espinhenta, só assim poderemos abrir um rombo naquela carapaça negra.
— Não sei se deveria perguntar, mas o que acontecerá?
— Mandaremos esse bicho pelos ares — afirmou com um olhar presunçoso.
— Espere um minuto! — ordenou Belter. — Veja esse caos, pretende mesmo depositar as nossas esperanças nesse Impuro? Passe já essas pedras para cá.
— Fique calmo… eu tenho um plano — afirmou Teslan.
— Acho bom ser verdade. — Ele se aproximou dos dois, com um olhar ameaçador. — Ficarei de olho em vocês. Agora comecem a se mexer.
— Eu imagino que sim. Esfer, me acompanhe, não temos tempo a perder.
Os dois deixaram a proteção dos rochedos, em direção ao confronto.
— Espero que você tenha mesmo um plano, não quero morrer aqui.
Bem… — Ele apontou para o amuleto. — Acredito que já lhe disse o que precisa saber.
— Que ótimo… Se eu escapar dessa, acho que não morro mais.
Um violento estrondo ressoou ao lado da dupla, causado por uma grande rocha que caiu próxima de um dos Coletores, lançada pelo Sombrio que lutava contra os demais.
— Continue correndo, vou lhe dar cobertura.
Os ataques da comitiva liderados pelas explosões de Teslan se alternavam com os golpes da criatura que demonstrou inteligência ao proceder com cautela contra o grupo. Apesar de possuírem uma larga vantagem numérica, os Demônios não conseguiam detê-la. O Sombrio era grande e ágil, além de ser capaz de proferir ataques de média e curta distância com seus espinhos negros, sua habilidade de absorver energia vital, somado com seus versáteis ataques de sombras e movimentos irregulares, o tornava um inimigo escorregadio e perigoso, que levavam os esforços da unidade ao limite.
Estridentes ataques ressoavam pelo campo de batalha e clarões iluminavam o ambiente em curtos intervalos, enquanto Esfer se esgueirava entre as pedras.
Uma nova e concentrada esfera de energia foi desferida por Teslan, porém, no último instante, o Sombrio conseguiu desviar, retorcendo-se, com um movimento inatural.
— Maldição! Precisamos dar logo um fim nisso. Barock, Barock! Venha comigo, está na hora de derrubar essa coisa.
— Como pretende fazer isso? — perguntou, ao se aproximar.
Teslan o encarou forçando um sorriso.
— Vamos agitar as coisas.
— Isso está me lembrando nossa primeira missão. — Ele levou uma das mãos sobre o alçapão escondido de sua mochila, quase como se o acariciasse.
— Prenda sua atenção no presente, não podemos ser descuidados aqui.
Um longo grito perturbou os ouvidos do grupo. Um Coletor era lançado, para longe, pela fera.
— Tente não ficar para trás, Belter. — Os dois avançaram em direção a criatura.
— Maldito… — Ele olhou para seus companheiros. — Ei! Se mexam! Mostrem do que os Coletores são capazes.
Com seus poderes, o dominador de maldições criou três novos orbes, prateados. Esses últimos emitiam um pequeno brilho que se destacava na névoa e produziam um contido zunido.
Moderados estampidos marcaram o momento no qual as esferas partiram rumo a criatura. O Sombrio respondeu retraindo novamente o corpo com uma velocidade absurda. Desse modo, as teria evitado, contudo, Teslan, prevendo que algo similar pudesse acontecer, elaborou essas esferas com propriedades especiais, as quais permitiram que alterasse suas trajetórias de acordo com suas vontades.
Ecoaram pelo terreno uma, duas, três explosões. Elas atingiram as patas e o tronco do Sombrio, levando-o ao chão.
— Não percam a oportunidade!
Belter aproveitou a distração para golpear o dorso da criatura, logo depois, um de seus companheiros a atingiu outra vez, na região da cintura. O Sombrio urrava de dor e tinha dificuldade de se manter em pé.
— Não cedam, temos que colocar um fim nisso.
A fera, acuada, deu início a uma sequência de golpes a esmo na tentativa de afastar seus agressores, sem sucesso.
Uma série de ataques realizada por quatro Coletores encaminhou a vitória, fato que se tornou mais concreto quando Barock ativou o compartimento escondido de sua mochila, que liberou, em um estrondo atabalhoado, uma rajada de projéteis pontiagudos, metálicos e incandescentes sobre a criatura.
Em virtude das ofensivas de seus companheiros, Esfer finalmente conseguiu encontrar uma brecha para se aproximar da besta e analisar de que maneira posicionaria o amontoado de artefatos. Apesar de tudo, o Sombrio logo se levantou, mantinha-se sem desistir. Uma medida mais drástica era necessária.
O Impuro, em um movimento arriscado, projetou uma lança e prendeu nela os explosivos. Assim que a arremessou na criatura, Esfer ativou o marcador que recebeu de Teslan poucos minutos antes. No instante seguinte, surgiu ao lado do seu senhor.
— Está feito! Agora é com você — disse ele, ofegante.
— Todos se afastem! Não vou repetir. Se afastem! — gritou Teslan.
Belter viu que sua unidade estava dispersa com o calor da batalha.
— Ouviram o Caça-contrato, saiam logo, vamos! Saiam… — Uma explosão ensurdecedora eclodiu, propagando uma onda de destruição e cobrindo a maior parte da área com chamas, as quais rapidamente se apagavam sobre as pedras. Foi inevitável, inclusive para os membros mais distantes, não levarem as mãos aos ouvidos e sentirem uma baforada infernal, do calor residual da bomba feita de artefatos.
A luz das chamas não trouxe necessariamente uma melhora na visibilidade, devido a propagação de uma pesada nuvem de poeira e detritos.
— Caramba! Foi bem mais forte do que eu imaginei — falou Teslan, que levava uma das mãos aos ouvidos.
— Podia ter matado todos nós. — Barock ficou de pé e esfregou uma das mãos sobre o rosto, ainda meio desorientado.
— Achar todo mundo no meio desse caos vai ser um saco e… — Ele sacou às pressas a espada e o repique desordeiro do encontro de duas lâminas ecoou pela bruma.
Belter caiu sobre Teslan, com a espada encostada na garganta do Caça-contrato.
— Maldito! Nem se importou em sacrificar meus colegas. Me dê um bom motivo para não matá-lo aqui e agora.
— Se tentar, talvez acabe morrendo antes de conseguir. — Ambos ouviram o estalo da arma que era engatilhada por Barock.
— Não pensem que vão me parar apenas com ameaças! — bravejou Belter.
Barock, ao pressentir a chegada de uma nova figura, sacou uma segunda arma e mirou na direção oposta.
— Chefe, fique tranquilo, o senhor não está sozinho. — Um segundo Coletor acabava de aparecer.
O clima se tornava ainda mais tenso conforme a criatura ao fundo soltava seus últimos suspiros agonizantes.
— Se acalmem! Se acalmem! — Esfer se aproximou e gesticulou na tentativa de apaziguar os ânimos. — Devemos trabalhar para sair daqui, não lutar entre nós.
— Cale-se! Impuro. Esse desgraçado vai te descartar da mesma forma que explodiu meus companheiros.
— Você está em uma posição nada confortável, não é uma atitude sensata realizar tais julgamentos de forma tão leviana — alertou Teslan.
— Nem vocês. — O segundo Coletor brandiu a espada no ar, com movimentos provocativos e ameaçadores.
Barock arregalou os olhos e começou a suar frio.
— Parece… — As palavras engasgavam na sua garganta. — Parece que temos companhia.
— Seja mais claro. Relate nossa situação. — Teslan agora também pressentia o perigo.
Os gritos do Sombrio finalmente haviam atraído novas criaturas que logo passaram a rondar o grupo que discutia até poucos segundos.
— São três, talvez quatro, é difícil afirmar com toda essa destruição. Primeiro, os Sombrios passam a interferir em meus poderes e depois… — Barock não teve tempo de terminar. Teslan esticou um dos braços e tentou teletransportar o colega, mas, com a presença dos Sombrios, seus marcadores não responderam. Com um golpe de uma das bestas, amortecido pela mochila de ferro em suas costas, Barock foi nocauteado e mandado para trás.
Ao ver Belter aturdido com a chegada dos novos Sombrios, empurrou-o para trás.
— Como se atrevem — disse, se levantando. — Recebam isto. — Teslan disparou seis esferas na direção de duas das feras.
Múltiplos estrondos e gritos marcaram o momento no qual foram feridas, contudo, as investidas do manipulador não surtiram o efeito desejado.
Um Sombrio, furioso, estufou o peito e lançou uma nuvem negra que engoliu todos que ali estavam. Era tão densa que tornava difícil respirar. A grande maioria logo se viu desorientada, sem nenhum aliado ou ponto de referência à vista.
— Teslan! Barock! Alguém!? — não houve resposta. Sem conseguir se localizar, Esfer correu do centro da confusão até tropeçar entre as pedras. Ainda se levantava com o joelho dolorido quando escutou os gritos apavorados de um dos Coletores feridos e avistou uma silhueta que dançava entre as chamas que ainda se mantinham vivas.
Fugiu assustado com os berros agonizantes do moribundo em seus ouvidos, sozinho entre as criaturas da noite.