Volume 1
Capítulo 22: Terras Ermas
No segundo dia, a área que alcançaram emanava uma aura ainda mais hostil que a habitual. O ambiente turvo e as estruturas das antigas e desbotadas construções, que se assemelhavam umas às outras, dificultavam o trabalho dos visitantes que, de tempos em tempos, estabeleciam um ponto de referência, com o avanço das atividades. Indivíduos despreparados facilmente se perderiam desvendando os caminhos da velha cidade, em ruínas.
Nesse cenário arrasado, os dois novatos tomaram a dianteira, enquanto os demais acompanhavam seu avanço.
— Vai ficar calado até quando? — perguntou Cão, com dificuldade de acompanhar o companheiro.
— Pensei que não puxaria assunto, depois da nossa última conversa.
Apesar de Esfer ter se refugiado na névoa, Cão percebeu um ar presunçoso em suas palavras.
— E não quero, porém precisamos cumprir nossa função. — O silêncio perdurou por alguns segundos. — Hum… Aonde você foi?
Esfer surgiu atrás do Meio-sangue.
— Devia ter mais cuidado, sabe que muitas coisas perigosas podem se esconder nas sombras.
O som de uma lâmina cortando o ar ressoou pela paisagem árida quando Cão sacou um punhal que carregava consigo.
— Estou tendo cuidado, você que precisa se colocar no seu devido lugar e parar de se aventurar sozinho.
— Por acaso está preocupado… — Esfer, surpreendido, caiu com as costas no chão e os olhos arregalados, ao ser empurrado pelo colega.
— Quieto, faça silêncio. — Algo veloz se aproximava.
Ao ver pela primeira vez os olhos vermelhos de Cão e suas afiadas habilidades de detecção, Esfer percebeu que o companheiro sempre soube por onde ele perambulava.
— O que você acha que é? Acredita que pode ser…
— Fique calado. — Ele tentava disfarçar como suas mãos estavam trêmulas. — Prepare o sinal.
— Nunca usei isso, sabe como essa porcaria funciona?
— Me passe isso. — Cão o tomou de suas mãos. — Não deve ser difícil, pelo que me recordo o dispositivo fica por aqui. — Apalpou apressadamente o mecanismo até que o dispositivo começou a entrar em estado de combustão, produzindo um brilho vermelho.
— Corra. Depressa! — Cão lançou o sinal e o via ganhar altitude enquanto partia o mais rápido que podia.
O artefato, quando explodiu no céu, originou uma grande mancha vermelha, a qual se assemelhava a uma imensa flor gigante que pairava sobre o cenário cinzento. A luz resultante era capaz de ofuscar qualquer explorador desatento que olhasse direto para ela, essa claridade ironicamente parecia entender a situação que sucederia. Neste instante, várias silhuetas negras e retorcidas foram banhadas pelo sinal luminoso. Uma horda de Sombrios perambulava na névoa eterna.
— Onde é que Teslan e os outros estão? — perguntou Esfer.
— Continue correndo, com certeza estão por perto.
— Provavelmente fugindo e nos deixando para trás.
— Está ouvindo esse barulho? Parecem passos…. — Enquanto desciam às pressas a encosta rochosa e irregular de um dos prédios caídos, um projétil negro caiu, como um raio, entre a dupla, causando um grande deslizamento ladeira a baixo.
— Cão! Cão! Merda! — Os gritos foram em vão, não houve nenhuma resposta do colega.
O Impuro, todo dolorido, passou a correr de forma desenfreada conforme pressentia uma criatura esguia e retorcida vir da mesma direção da origem do projétil que há poucos segundos quase o acertou. O terreno irregular e a visibilidade que oscilava conforme a queima do sinal luminoso tornavam seus passos barulhentos e atrapalhados. Seguia seus extintos, fugir era sua única opção.
“Então isso é um Sombrio? As bestas além da Grande Barreira. Eu não quero que tudo acabe aqui!”.
Esses eram os pensamentos que tragavam Esfer durante sua correria, sabendo que seria esta sua única chance de escapar, porém o rebuliço que causava sobre as pedras soltas atraiu a atenção da criatura. Ela, assim que absorveu o objeto pontiagudo, o perseguiu.
Um novo projétil da besta rasgou o ar e explodiu ainda mais perto de Esfer, que, ao ver uma estreita fissura, pulou dentro dos escombros de uma pequena construção por uma apertada passagem entre as rochas, em busca de refúgio. O Sombrio seguiu seu rastro rasgando caminho conforme pequenos destroços caíam sobre o Caça-contrato.
Uma fenda entre ele e a criatura se formou. A luz vermelha no céu melhorou a visibilidade da área, permitindo que visse uma imagem aterrorizante. Em sua frente estava uma fera semi-demoníaca de pele cinzenta coberta por uma camada composta por sombras que ocultava grande parte de seu corpo, dona de seis braços alongados e de garras que abriam caminho, esgueirando-se e dilacerando a entrada da passagem.
Um turbilhão de sentimentos acelerava as batidas de seu coração. Esfer, aflito e acuado, finalmente viu a oportunidade para utilizar seus poderes, acreditando que poderiam ser efetivos contra a besta sombria.
Com o poder herdado de sua família, conhecido como mestre de armas, ele se concentrou e conseguiu dar forma a uma chama dourada, a qual, conforme canalizava seu poder com o máximo de esforço, passou a ser envolta por uma espécie de lamparina. Sem demora e com uma grande dose de nervosismo, Esfer a arremessou sobre a besta.
Quando a lamparina caiu e se partiu sobre a criatura, um clarão se propagou pelas proximidades e um berro medonho e raivoso ressoou pelo local.
Assim que parou de se debater, a criatura passou a investir com mais ímpeto, enquanto algumas chamas ainda cobriam seu dorso. Esfer, com o ataque, desfez parte da camada de sombras que as envolvia, permitindo que enxergasse o esboço de uma figura pálida e reptiliana.
Ele projetou uma imensa lança dourada.
— Volte para o lugar de onde veio! — disse o Caça-contrato ao arremessá-la contra o Sombrio.
A tentativa foi inútil. A fera absorveu a lâmina e a partiu com suas presas.
Encurralado, tudo que Esfer podia fazer era atrasar seu fim, porém algo aconteceu. Um assovio na névoa antecedeu uma cirúrgica explosão prateada que levou a criatura ao chão. O Impuro aproveitou a oportunidade e correu na direção em que acreditava ter vindo o disparo, convicto de que o ataque era obra de um dos orbes de Teslan.
— Eu estou aqui! Onde vocês estão? Me esperem! — Esfer continuou a correr, com a garganta seca e as costelas doloridas.
Cruzava aos pés do esqueleto de uma elevada construção, quando foi derrubado por uma figura que subitamente surgiu do breu.
Era Galezir que o imobilizava.
— Fale mais baixo. Me dê uma boa razão para não o matar, seu verme asqueroso. — Com ambas as mãos, torcia com força o braço direito de Esfer.
— Você está me machucando, me solta, precisamos sair daqui.
— Solte logo o Impuro, os dois estão me dando nos nervos. — Barock revelou sua presença, usando sua grande mochila de ferro o alto e robusto Demônio, que sempre era brincalhão, estampava no rosto um olhar sério e um semblante apreensivo.
— Esse idiota veio berrando, praticamente anunciando a própria sentença de morte, imagina se um Sombrio fosse atraído por ele.
— Solte esse infeliz de uma vez. — Ele levou uma das mãos ao rosto, como se estivesse com dores de cabeça.
— Tente ficar vivo. — Galezir enfim soltou Esfer.
Uma movimentação, não muito distante dali, chamou a atenção de Barock, apoiado sobre os escombros. O Sombrio voltava a ficar de pé.
— Parece que aquela coisa é bem difícil de matar. Vejam como ela ainda é capaz de se levantar.
— Pensei que me deixariam para trás — desabafou Esfer em um tom mais alto que um sussurro.
— E teríamos, se pudéssemos sair daqui. O pelotão também foi atacado por um Sombrio. Ficamos para afugentá-lo, enquanto os outros fugiam, mas no fim fomos nós que quase não conseguimos escapar.
— Se pudéssemos? Como assim? E os marcadores de Teslan?
— Bem… — Teslan acaba de revelar sua presença. — Digamos que surgiram contratempos.
— Não estou conseguindo entender, seja mais claro, não podemos ficar perdendo tempo aqui.
— Sofremos um duro golpe do destino, parece que hoje a sorte não está do nosso lado. Os Sombrios têm a habilidade de absorver a essência do poder dos Demônios, você também será exaurido caso seja pego. O poder dessas criaturas é tão agressivo que sua mera presença pode desfazer pequenos encantamentos. Meus marcadores não respondem, certamente foram consumidos.
Esfer se lembrou de como sua lança foi absorvida.
— Está dizendo que elas estão por toda parte?
Um sinal estridente ecoou pela imensidão. Nas imediações próximas, um novo artefato, disparado por outros exploradores, rompia em direção ao céu.
— Chega de enrolar, vamos logo sair daqui, deem a volta na encosta, rápido, não percam tempo — ordenou Teslan ao deixar os escombros.
O regresso assustado dos Caça-contratos era marcado por passos apressados, os quais se destacavam na imensidão árida. Precisavam se reagrupar rápido, sabiam que ficavam desprotegidos em campo aberto, a baixa visibilidade apenas alimentava a insegurança do grupo e a apreensão estampava o rosto da maioria, conforme deixavam para trás as ruínas da antiga cidade. Sabiam que a morte estava à espreita.
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Era difícil se situar na paisagem árida e pedregosa, o poder dos Sombrios afetava os poderes de todos. Cão, em um regresso solitário, perambulava pela bruma ciente que havia se tornado uma presa fácil, desejava reencontrar os aliados o quanto antes. Uma tarefa ingrata, ainda mais com o caos que pairava sobre as Terras Ermas.
De repente, algo pareceu atrair sua atenção, quase como se atendesse um chamado. Se virou para trás e, após alguns passos hesitantes pela névoa, percebeu as montanhas ao fundo se tornarem mais nítidas.
Uma sombra cortou o céu, elevando seu olhar às alturas. Ela logo rodopiou sobre as montanhas e pousou, como uma pássaro, sobre um rochedo pontiagudo que, ao observar com mais atenção, lembrava uma espécie de altar.
Sem sequer perceber a presença do Meio-sangue, a criatura, em movimentos animalescos, pareceu se moldar sobre as pedras frias e úmidas, como se tentasse se fixar sobre o monumento até tornasse-se parte da estrutura. Presa sobre o rochedo, a criatura se agachou, abriu as asas em um grande abraço e o topo de seu crânio pontudo se dividiu em duas partes, antes de originar um grande pilar de luz, azulado, que partiu em direção ao céu, rasgando a bruma e revelando, com um brilho oscilante, as cercanias ocultas pela névoa.
No instante em que a viu, o coração de Cão gelou. Paralisado, manteve as pupilas dilatadas e prendeu instintivamente a respiração. A couraça pálida e impenetrável, o brilho azulado em seus olhos, sua forma irregular, sem rosto, e o grande pilar luminoso no céu não deixavam dúvidas, estava diante dos monstros que destruíram o antigo mundo e alimentavam o eterno medo dos Demônios. Estava diante de um Humano.