Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 24: Regimento Imperial

Esfer, ofegante e acuado, corria pelas Terras Ermas com as pernas pesadas e a garganta seca, continuou correndo o mais rápido que podia, mas tentar se esconder na noite era inútil. Uma larga e densa estaca, que parecia ser feita de ossos negros, explodiu à sua direita.

Mais uma vez tudo o que podia fazer era tentar fugir, como uma presa fácil nas mãos de um predador. Porém, a noite eterna o surpreendeu. Cão surgiu do denso nevoeiro e assim que encontrou Esfer, o derrubou, mantendo-o quieto, enquanto manipulava suas maldições, dando forma a uma sombra negra e viscosa, para cobrir ambos, na tentativa de despistar a criatura.

O Sombrio parou e zanzou de um lado para outro, inquieto, sem entender o que se sucedia. Diferente da maioria das criaturas, coberta por uma misma negra, sua pele pálida e a feição dos músculos que desenhavam seus longos braços esguios podiam ser vistos sob a fraca luz que transpassava a névoa, assim como as garras azuladas e os longos e afiados espinhos que cobriam as costas e os braços da criatura.

 

 

Foram longos instantes até a besta perder o interesse na caçada e se afastar, para longe.

— Estamos salvos por hora — disse Cão, ao sair, com os olhos atentos nos arredores.

— Essa coisa não deveria caçar no escuro? Como ela simplesmente foi despistada por suas maldições? Aliás, como está usando seus poderes com tanta facilidade?

— Eu sei lá. Apenas tive a sensação de que isso daria certo. As coisas nunca dão certo para o nosso lado. É legal quando algo bom acontece.

— Pensei que a essa altura você já estivesse morto. Como que nos encontrou aqui? — Ele sentia que o colega escondia algo, contudo, no momento, essa era sua última preocupação.

“Nos encontrou?”, pensou. Esfer era a única alma que via ali.

— Como sabe, sou bom em rastrear e fazer buscas, também contei com um pouco de sorte.

— Sempre pensei que fossemos duas figuras sem sorte.

A dupla se encarou friamente.

Cão desviou o olhar e encarou a paisagem da mesma forma, deu dez passos e parou em silêncio, parecia se concentrar.

— Alguém está perto. — O Meio-sangue avançou mais alguns passos e Esfer o seguiu a contragosto. Pouco depois, novos gritos ecoaram pela paisagem árida. Apesar do nervosismo, foram capazes de reconhecê-los. — É Olfiel, os outros também não devem estar longe.

— No que está pensando em fazer?

— Fique aqui e se esconda, eu volto logo.

— Isso não soou como algo muito confortante.

— Serei rápido, tente ficar bem — falou, enquanto dava os primeiros passos.

— Seu desgraçado, acha mesmo que vou ficar sozinho aqui? Só pode estar enganado. — Esfer balançou a cabeça de um lado para outro em negação e chutou para longe uma das pedras soltas no chão empoeirado. — Porcaria… tudo bem, eu vou com você. — Ele levou uma das mãos sobre o cabo da espada, na tentativa de recobrar a confiança.

Cão respirou fundo.

— Fique atento, é muito fácil se perder por aqui.

Os dois começaram a correr. No caminho, Esfer passou a estranhar tamanha segurança do companheiro.

— Espero que saiba o que está fazendo, porque não temos a mínima chance de enfrentar esses bichos.

— Isso é algo que eu pretendo evitar.

Um novo grito foi ouvido. A dupla reconheceu a voz de Sark.

— Veja, estamos perto deles. — À frente, avistaram os esboços de duas figuras em disparada.

Espreitando pelas sombras, Cão pôde identificá-las, eram Sark e Olfiel, em fuga.

— O que os dois novatos estão fazendo aqui? Saiam logo antes que… — Uma espécie de explosão, próxima aos Demônios, os levou ao chão. Os detritos que se ergueram do solo voltaram a tornar uma tarefa mais ingrata ver e respirar.

— O que foi que aconteceu? — Zonza e com uma mão na cabeça, Olfiel se preparava para levantar, porém, ao olhar para o chão, enxergou pequenos respingos de sangue.

Olfiel avançou alguns passos, ultrapassou a camada de poeira e viu a imagem à frente com o peito apertado. Diante de seus olhos estava Sark, seu velho colega, de joelhos, pego por um dos estilhaços de um projétil negro, solidificado a partir de sombras.

Ele, com uma das mãos sobre a larga ferida em suas costelas, tentou se levantar, sem sucesso.

— Mais que porcaria…

“Maldição! Eu não a detectei, esse ataque veio de um ponto tão distante assim?”, pensou Cão, enquanto apertava os punhos.

— Seu miserável… não vá desistir depois que avançamos tanto — falou Olfiel.

— Continuem… Vão logo! — ordenou Sark, para a Demônia que hesitava em partir.

— Olfiel, já chega! Sark não pode continuar! Levante rápido, antes que o mesmo aconteça com você — alertou Esfer.

— Ainda não acabou, eles estão nos alcançando. — O Meio-sangue acabava de detectar três criaturas.

— Que inferno! Quando é que vamos despistá-las? Simplesmente não desistem.

— Olfiel, para o outro lado — alegou Cão.

— Pare de dar ordens, por acaso você sabe o caminho correto?

— De pressa! — Algumas dezenas de segundos depois, um Sombrio surgiu da outra direção. — Não consigo dizer muito bem, mas acredito que a ajuda esteja neste rumo.

— Espero que esteja certo, porque, se as coisas continuarem assim, será nosso fim.

Com muito esforço, Sark ficou de pé e desferiu suas esferas de fogo sobre a criatura que seguia no encalço dos Caça-contratos, dando forma a dois clarões que iluminaram o ambiente.

— Sark — lamentou Esfer, ao olhar para trás. Cão apenas o empurrou para frente.

— Deixe-o, ele já fez sua escolha, faça o esforço dele valer a pena.

— Falta muito para chegarmos? — perguntou Olfiel.

— Estamos perto, sigam firme. — Um arrepio percorreu sua espinha. — Em frente! — Cão desta vez não seria surpreendido, agarrou os dois companheiros e os tirou do alcance de um novo projétil negro, o qual caiu no exato ponto em que estavam há segundos.

— Continuem, estamos perto. Andem! Vamos!

Olfiel empurrou suas costas para frente de uma forma nada amistosa.

— E o que exatamente você chama de perto?

O novato pulou sobre ela cobrindo com uma das mãos sua boca.

— Calada! — Ele agarrou Esfer condensando mais uma vez suas maldições em uma sombra e o trouxe para perto dos dois. Depois os envolveu, em um casulo, com seus poderes, o mais rápido que pôde. — Fiquem em silêncio.

Uma das criaturas se aproximou, porém desta vez as sombras de Cão não pareciam ser o suficiente para despistá-la. Ela demonstrava que de alguma forma sentia a presença dos Caça-contratos, apesar de não encontrar o ponto exato onde estavam.

“Por que você não desiste?”, pensou.

Cão evitava até respirar para não atrair atenções indesejadas.

— É o nosso fim, vamos ser encontrados — alegou Esfer.

— Se lembra da conversa que tivemos há pouco? Parece que hoje realmente estamos com sorte.

Um uivo de dor partiu da besta, logo dois cortes azuis se destacaram na escuridão, foram o suficiente para trazer o Sombrio abaixo. O brilho azulado que emanava da espada permitiu que os Caça-contratos vissem a face do guerreiro que a portava.

— Galezir? Como ele nos encontrou? Pensei que estivesse morto — disse Esfer para os colegas ao seu lado.

Uma nova rajada de golpes foi desferida pelo Caça-contrato recém-chegado. A pele da criatura encandecia cada vez que a espada tocava seu corpo. Era como se aquela arma, encontrada, dias antes, nas ruínas, possuísse propriedades especiais contra tais bestas. Ferida, a besta fugiu acuada, como se temesse a lâmina de Galezir.

— Corra! Seu feioso! Peça ajuda aos seus amiguinhos. Faça eles aparecerem.

Cão soltou um grito. Olfiel mordia sua mão e o apertava contra o solo, como resultado, a sombra que os ocultavam se desfez.

— Seu vermezinho nojento, não pense que tolerarei isso, terá o que merece quando voltarmos — afirmou a Demônia, balançando sua manopla de ferro no ar.

Galezir veio ao encontro do trio.

— Sabia que devia achar algum companheiro no meio de toda essa confusão.

— Guarde essa coisa, Galezir. Vai acabar se matando ou cegará todo mundo aqui. Como nos achou afinal? — perguntou Olfiel.

— Eu apenas regressei em direção à Grande Muralha. Não é como se eu pudesse ver no escuro.

Olfiel encarou Cão. Ele em resposta só desviou o olhar e passou a tentar estancar o pequeno sangramento em seu punho. Antes que suas dores cessassem, uma movimentação na direção oposta chamou sua atenção.

— Parece que a cavalaria finalmente chegou.

Os inúmeros passos acelerados e a poeira que levantava do solo anunciavam a chegada de reforços. Rompendo a névoa, surgiam no horizonte centenas de Demônios que trajavam armaduras prateadas, com espadas presas na cintura, montados sobre sinarions, bestas quadrúpedes, robustas e encouraçadas que ostentavam um longo chifre acima do focinho.

Eram os Paladinos Imperiais, liderados por Vedrak, dos Sete Guardiões. Convocados para liquidar a ameaça que rondava os arredores de Vespaguem.

— Já passou da hora deles darem as caras. Os artefatos foram lançados há um bom tempo — comentou Galezir.

Olfiel passou o antebraço sobre os cabelos, aliviada.

— Me pareceu uma eternidade.

— Desviem. — Esfer pulou e empurrou Cão para o lado. Todos tiveram que ter cuidado para não serem pisoteados pela passagem dos guerreiros. — Saiam do caminho, querem se matar depois de tudo?

— Olhem esses safados, demoraram tanto para chegarem e agora nos ignoram — alegou Galezir.

— Modere as palavras, ainda não estamos seguros. Vamos logo — disse Olfiel.

O avanço do regimento foi o estopim para o início de um confronto. O brandir de espadas, urros de raivas e pequenos clarões deram forma ao embate que começou a se propagar pela imensidão erma.

— Vejam! Os malditos começaram a lutar — falou Galezir para os colegas, enquanto deixavam a guarda imperial para trás.

Um berro animalesco rompeu pelas Terras Ermas. Um dos Paladinos, com seu atributo de luz, partiu sem dificuldades o braço de uns dos Sombrios, porém, como se atendessem as orientações da criatura encouraçada de olhos azuis que acabava de surgir no céu, novas bestas se reuniam e avançavam de forma ordenada.

— Humanos desgraçados! — berrou um guerreiro encarando o terror que sobrevoava o céu.

— Está na hora, lancem a onda de carga! — Segundos depois, uma esfera de luz, branca como a lua, foi disparada de dentro de um pequeno forte escoltado pelos Paladinos. A luminosidade que ganhava altura ofuscava alguns olhos desatentos e tornava de novo visível a paisagem desolada.

Cão ficou muito incomodado com a intensa claridade que tomou o céu.

— Eles ficarão bem, finalmente esses engomadinhos tiraram a bunda da cadeira e terão alguma utilidade — reclamou Galezir.

— Espero que eles deem cabo de todas essas bestas — falou Esfer.

— Eles darão, os Paladinos são verdadeiras máquinas de matar — argumentou Olfiel.

— Espero que seja verdade. — Ao fundo, foram interrompidos por uma sequência de explosões flamejantes que ecoaram pela bruma.

— Caramba! Tinham tantas feras por aí? — perguntou Galezir, vendo a destruição acompanhar o avanço da guarda imperial.

— Olhem, tem alguém avançando sozinho. — Esfer apontou na direção do confronto, que ficava cada vez mais distante. — Estou enganado… ou aquela é…

A figura, que prosseguia sozinha pelo frenético campo de batalha, tinha longos cabelos dourados, a pele alva como ossos e olhos vermelhos que encantavam na mesma medida que aterrorizavam quem passava em seu caminho. Uma imagem inconfundível, que gravava sua presença na memória daqueles que a viam. Estavam diante de Turcarian, a senhora de Vespaguem, segurando em uma das mãos um longo cetro dourado, com a base pontuda e a outra extremidade esférica, como uma espécie de lamparina. Era Calavis, o artefato conhecido como uma das treze centelhas que alimentavam as cidades-fortaleza.

Súbitos tremores passaram a assolar a paisagem e crescerem exponencialmente até uma colisão mais à frente destruir um rochedo e lançar alguns soldados imperiais pelos ares. Um Sombrio colossal, muito maior do que qualquer outro, rasgava tudo à sua volta com sua mera passagem, em uma onda de caos, avançando de maneira obstinada na direção da soberana, como se fosse atraído. Mal sabia o que lhe esperava.

A imperatriz viu a oportunidade como a chance perfeita para dar uma pequena demonstração das verdadeiras extensões de sua força. Sem pestanejar, se posicionou diante da criatura e cobriu seu punho direito com chamas, entre elas, uma minúscula faísca dourada pôde ser vista por observadores mais aguçados. Com apenas um golpe, que soou como um grande trovão pelas Terras Ermas, reduziu sua oponente a migalhas incandescentes que se perdiam ao vento, enquanto transformava o chão a seus pés em pedras enegrecidas. Uma brisa escaldante se formou e uma moderada onda de impacto se propagou em todas as direções.



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