Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 17: Príncipe das Sombras

As primeiras luzes que ganhavam forma na sede do esquadrão prenunciavam o início de mais um dia de trabalho. Ciente de seus deveres, Esfer alongou os braços e começou os preparativos para realizar uma atividade programada, logo partiria para prestar seus serviços.

Antes de sair, resolveu ir até onde os colegas ainda se recuperavam. No trajeto entre o alojamento e a enfermaria, percebeu que com o término do toque de recolher, proferido por Latrev, em virtude da sigilosa reunião, a rotina voltava à normalidade. Sua passagem foi breve, pois ainda necessitavam de repouso.

Nesse dia, a maioria dos Caça-contratos teria uma folga, ocasionada pela instabilidade que cercava a irmandade, porém sua situação era diferente, atenderia o chamado de Artag, seu contratante temporário.

Assim, caminhava por um dos corredores que conduziam até a entrada da sede quando se deparou com uma menina Demônio, de feições infantis, agachada no chão, dona de longos cabelos prateados que serpenteavam sobre um vestido cinza, curto e bem simples, o qual realçava o par de chifres amarelados acima de sua testa.

— Como veio parar aqui? Por acaso você entrou escondida? — perguntou enquanto se aproximava devagar para não assustá-la.

Ela, com um olhar amigável, apenas piscou rápido duas vezes seus olhos doces e profundos e saltou para baixo.

Esfer sabia que a queda para o pátio devia ser só uns três ou quatro metros, porém, ao se aproximar, se espantou ao não avistá-la em lugar algum.

— O que está procurando torto desse jeito?

Esfer se virou. Era Galezir.

— Não é nada, apenas pensei ter visto um dos pombos mensageiros, mas é só coisa da minha cabeça — falou, indo ao seu encontro. Não contou nada, imaginando que a pequena entraria em uma enrascada se fosse pega por bisbilhotar.

Como Barock ainda se recuperava, Sark foi o escalado para acompanhar Esfer e Galezir na empreitada. Desse modo, o trio deixou para trás a sede do esquadrão e prosseguiu rumo ao escritório do comerciante.

Durante o percurso, o novato percebeu mais uma vez a intensa movimentação nas passagens que seguiam para o coração do Fosso. Conforme chegava mais perto do mercado negro, as ruas afunilavam-se e as aglomerações surgiam. O habitual clima caótico ganhava espaço à medida que avançava.

Após andar com dificuldade devido ao clima sufocante gerado pela multidão, alcançou as instalações de Artag. Seu empregador já o aguardava, cercado por uma guarda mais fortificada que a de costume, visivelmente ansioso.

Assim que o viu, Galezir foi a seu encontro.

— Olá, Artag, qual o motivo de tanto alvoroço? Vejo que grande parte da guarda está aqui.

O mercador soltou um sorriso.

— Lembra de quando eu mencionei que estava à espera de um grande negócio? As tratativas evoluíram e agora estou indo concretizá-lo. Vamos! — disse, enquanto finalizava os últimos preparativos para sair. — Não faça essa cara, recebi mais cedo uma carta sobre seu colega. Apresse-se! Acredito que você terá muitas surpresas hoje.

— Como quiser, nós vamos nos juntar ao restante da guarda — falou, apontando para os companheiros.

Pouco tempo depois, partiram para fechar o grande e sigiloso negócio. À medida que entravam mais profundo no mercado negro, foi inevitável observar um aumento considerável da fiscalização imperial. Tal acompanhamento nas atividades ocorria de tempos em tempos, porém, nos últimos dias sua atuação virou uma tarefa rotineira, fato que incomodava todos que agiam na ilegalidade. O grupo de Artag não era uma exceção.

Esfer, nesse momento, percebeu alguns cartazes espalhados pelas ruas. A grande maioria anunciava pequenas recompensas que alimentavam a caçada aos Demônios-predadores por todo o império, mas o que realmente chamou sua atenção foram três anúncios colocados em destaque, com o nome e as descrições dos três Demônios mais procurados do império. Ienis, a bruxa vermelha. Orken, o Deus da vitória e Enbel, a tempestade.

O avanço do mercador e sua escolta deixou para trás o trabalhoso papel dos supervisores. Os servos de Artag se esgueiraram em meio ao intenso fluxo de indivíduos que buscavam aquisições mais baratas e itens proibidos. Com a aproximação do destino final, os soldados dispersos para mascarar sua existência, passaram a cercar seu amo. Ele acabava de indicar um dos prédios que arranhavam a superfície, era o local da tão esperada transação.

No interior da construção, havia habilidosos defensores que controlavam a entrada e a saída dos visitantes. O grupo composto por Demônios das mais variadas classes indicava que seu comandante devia ser alguém importante e escorregadio, que preferia estabelecer laços de lealdade em vez de vínculos com as ordens guerreiras.

Apesar da maioria dos presentes não ocultar a identidade, uma parcela em específico dos combatentes chamava a atenção.

Artag diminuiu à distância de seus guerreiros e disse quase sussurrando:

— Estão vendo aquele grupo mais afastado?

Galezir avistou cinco soldados liderados por um Demônio imponente, na casa dos quarenta anos.

— Estamos, notou algo de suspeito neles?

— O nome daquele Demônio de vestes castanhas é Candrif, o vice-capitão do primeiro esquadrão de Batedores. Me espanta ele ser tão descuidado, deve sentir-se muito seguro aqui. Não fazia ideia que secretamente servia meu novo sócio.

— O senhor realmente tem muitos olhos na cidade. — Sark evitava encará-los.

— Gostaria de concordar, mas ele é uma figura conhecida e influente, possui profundas relações com a ordem dos Oradores, há pouco tempo também ouvi que surgiu um guerreiro muito promissor entre os Batedores, o chamam de Lobo Guerreiro. Ele é leal a Candrif, provavelmente é o Demônio à sua direita, mas pensei que… a aparência dele fosse um pouco diferente.

Melvor, o melhor dos assassinos que atendiam às ordens de Artag, se aproximou de seu amo e falou em seu ouvido:

— O carregamento acaba de chegar.

Um novo sorriso apareceu nos lábios do mercador.

— Ótima notícia, agora só resta aguardar nosso anfitrião.

Com o comunicado dos defensores de Artag, não demorou para a guarda de defesa conceder a permissão para seguirem adiante, rumo aos andares mais elevados da construção. O mercador pôde ser acompanhado por apenas três de seus servos. Melvor, Galezir e Esfer foram os escolhidos.

Um elevador rudimentar os levou até o penúltimo andar, onde foram barrados, uma mera precaução. Fariam através das escadarias o restante do caminho.

— Se recordam do que lhes contei no dia em que comentei do grande negócio que eu estava perto de acertar? — disse Artag para os companheiros, enquanto subiam.

— Lembro que você parecia bastante animado — respondeu Galezir.

— Me refiro às surpresas que essa transação acarretaria.

O Caça-contrato olhou torto para Artag.

— E o que isso significa?

— Vocês estão prestes a conhecer uma lenda.

— Seu novo sócio realmente aparenta ser um sujeito poderoso. — Esfer, intrigado, analisou de novo a forte segurança do local.

— Silêncio! — ordenou Lobo, na liderança do grupo que conduzia os visitantes. Um Demônio moreno e robusto, dono de uma barba negra curta, que ostentava duas espadas presas no coldre amarrado em sua cintura. — Ninguém veio aqui a passeio, agora olhem para frente.

— Relevem — pediu o mercador, aos colegas, balançando as mãos para cima e para baixo. — De qualquer maneira, já estamos chegando.

O término da escadaria os levou para a moradia localizada no topo do prédio. As paredes e a mobília em grande parte eram modestas, contrastavam com alguns móveis e adornos novos e limpos, um indício que o local seria apenas usado por pouco tempo.

Em uma poltrona, estava um enorme Demônio de costas, apesar de ainda não ser possível ver seu rosto, puderam enxergar suas mãos vermelhas. Ao seu lado, um lacaio humildemente aparentava servi-lo adotando uma postura submissa, usava vestes cinzas e uma máscara branca que retratava, através de feições negras, um rosto feliz e sombrio.

Lobo deu três passos na direção do anfitrião.

— Meu senhor, seus convidados estão aqui, como ordenado.

— Tudo ocorreu como o planejado… — disse Artag. — Os itens já foram posicionados para sua inspeção, basta conferir com seus próprios olhos. — Poucos dias antes, os dois haviam estabelecido uma sociedade, mas o mercador levava uma das mãos ao peito e se curvava como forma de respeito.

O grande Demônio trajava vestes negras e manuseava, de modo impaciente, algo similar a uma moeda entre os dedos. Ele girou o assento devagar e os encarou com feições hostis, seus olhos estavam vermelhos e sua sombra começava a mover-se tenebrosamente, provocando uma atmosfera ameaçadora. Ela contornava e envolvia os quatro visitantes como uma grande predadora sedenta por sangue.

— Não é possível, os boatos são verdadeiros? Ele é real?! — perguntou Melvor, sem saber o que fazer.

Artag se manteve firme, sem recuar. Seus cabelos grisalhos esvoaçavam com a forte ventania que tomou a sala e seus olhos brilhavam encantados com a cena.

— Meus amigos, estamos diante do último Maker.

Os servos do mercador esboçaram uma reação, mas o alerta de um dos guardas os deixou ainda mais acuados. Quando já estavam cientes de que eram uma presa fácil, a nuvem negra foi gradativamente absorvida pela sombra do Demônio que continuava a estudar os recém-chegados.

— Devo admitir que foi uma bela demonstração de poder. — Enquanto o comerciante recuperava a calma, percebeu que suas mãos ainda estavam trêmulas.

— Pensava que ele não passava de uma lenda urbana — disse Galezir, olhando para os colegas como se esperasse uma resposta.

— O último Maker, então este é aquele que chamam de Fantasma? — falou Melvor.

Esfer cerrou os dentes e apertou os punhos. Uma tempestade de questionamento pairava em sua mente. Sabia que havia sido um dos seguidores desse Demônio o responsável pelo assassinato de sua família, mas sequer tinha certeza se Fantasma tinha de fato ordenado o ataque. A cidade já estava em meio ao caos. A forte segurança também era outro problema.

Lobo novamente os repreendeu:

— Calados, estamos aqui para defender o perímetro, mantenham a compostura.

Após o susto inicial, Fantasma e Artag tratavam os detalhes finais da negociação. O clima de desconfiança era rompido à medida que a conversa avançava.

Eles já se preparavam para avaliarem os itens, quando o comerciante decidiu matar sua curiosidade a respeito de algo que o incomodava.

— Por acaso isso seria uma daquelas moedas medonhas?

— Sim, isto é um tagma, mais precisamente a representação do louco.

— Vejo que é familiarizado com as artes negras, certa vez ouvi que os tagmas eram usados durante a primeira guerra por oráculos para preverem o futuro. Nunca havia visto um de perto.

Fantasma fechou a mão ocultando a peça.

— Chega de enrolar, vamos logo fechar o acordo.

— Como desejar. — Artag virou-se para seus defensores. — Mexam-se, vamos efetuar a transação.

Todos deixaram o local, guiados pela guarda que obedecia às ordens do último Maker. Seguiram rumo ao ponto em que foi alocada a carga trazida por um parceiro sigiloso de Artag. O destino era o vasto casebre situado no mesmo terreno. A construção feita de pedra tinha uma coloração amarronzada, não possuía janelas, a única entrada limitava-se a um portão fortemente protegido por um grupo de vigilantes.

Ao adentrarem o espaço, notaram o aumento da temperatura causado pelo acúmulo de indivíduos e a falta de passagens de ar, estas últimas obstruídas para reduzir os riscos de possíveis fugas. Com a chegada do grupo, Candrif, que liderava os guardas que aguardavam, aparentou entender o olhar de Fantasma, levantou-se de seu assento, avançou alguns passos e retirou duas lonas que cobriam as peças que seriam inspecionadas.

— Essas… são as mercadorias? — As palavras pareciam engasgar na garganta de Esfer, enquanto apertava ainda mais os punhos. Não conseguia esconder sua indignação.

A retirada das lonas revelou duas gaiolas feitas de barras de ferro. No interior haviam Impuros, vendados, amarrados e amordaçados. Eram miseráveis tratados como valiosas mercadorias pelos dois Demônios.

Galezir pressentiu a hostilidade do novato.

— Não faça nenhuma idiotice, você compreende a situação, sabe que irá apenas nos complicar. — Ele estava ao lado de Esfer, com uma de suas mãos sobre seu ombro direito.

O novato espiou mais uma vez a imponente segurança no local, respirou fundo e se conteve. Não pelo medo, mas porque sabia que se tivesse a oportunidade de conversar com Fantasma, poderia descobrir alguma pista sobre o paradeiro de Layrrel e de seu irmão. Sabia que não podia colocar tudo a perder.

O Caça-contrato sentia-se podre com a mera possibilidade de consentir com uma coisa tão horrenda.

O comerciante olhou para o servo.

— Algo está o incomodando? Esfer. Espero que não tenha nenhum problema com isso.

Sem responder, o novato o encarou com desprezo. Depois, se virou e deixou o galpão, sem dar satisfações.

Galezir, vendo sua agitação, saiu em seu encalço.

“O que os torna tão valiosos?”, pensou. Curioso com a revelação, ao saber que o grande negócio, que até o último Maker tinha participação, envolvia somente um punhado de Impuros.

Essa pergunta o assombrou por um instante, porém não teve tempo de realizar maiores questionamentos, precisava ser rápido, duvidava que Esfer seria capaz de manter a calma. Estava com medo que ele causasse problemas para todos.

Os dois sócios passaram a encarar a carga. Nesta oportunidade, Artag lembrou da grande presença dos supervisores imperiais no mercado negro e dos riscos que eles representavam para seus negócios.

— Recentemente os fiscais imperiais têm intensificado o monitoramento no mercado negro, sabe o que poderia ter motivado isso?

Fantasma pareceu se divertir com a pergunta.

— Ouvi algo a respeito, aparentemente surgiu o boato que um membro do castelo de Vespaguem está procurando por um sujeito, na região. — O comerciante o avaliou com cuidado à medida que a conversa adotava uma aura mais tensa. — A presença dos supervisores é apenas um pretexto.

Seus conhecimentos não eram oriundos de um simples boato. Fantasma, também conhecido como o último Maker, controlava olhos até mesmo no interior do castelo de Vespaguem. Sabia que estava sendo procurado por ordens de Turcarian, mas não parecia preocupado, pelo contrário, pensava em usar esse conhecimento a seu favor.

Artag tinha uma vasta rede de contatos, estranhou desconhecer o rumor.

— Preciso ter mais ouvidos nas ruas ou o meu descuido custará bons negócios.

— Talvez eu deva repensar minhas alianças.

— Calma, eu já entendi. — Ele levantou os braços a meia altura pedindo calma. — Apesar da minha influência e das parcerias que fiz com os Patrulheiros, foi difícil obter esses espécimes. Pode me dizer o motivo que o leva a pagar tanto dinheiro por esses porcos?

Fantasma pôs ambas as mãos sobre uma das gaiolas de ferro.

— Nem eu posso afirmar precisamente, na verdade, também não sou capaz de calcular seu real valor.

— Como assim? Por mais que eu tente, não consigo entendê-lo.

— Digamos que eles são uma isca… Bem, isso é um assunto para outro dia.

— Assim a minha curiosidade aumenta, o que me resta é aguardar, providenciarei a segunda remessa assim que possível. Tratarei a questão com urgência.

Pouco tempo depois, a transação foi encerrada.

 

☼☼☼☼

 

Com passos apressados, Galezir deixava o galpão que era fortemente protegido.

— Pare! Me espere… Eu já disse para parar! Desgraçado.

— Fique longe — brandou Esfer, com a aproximação do companheiro.

— O que estava pensando? Sabe que não pode mudar nada. — O Demônio alcançou Esfer e o segurou pelo braço direito.

— Não pedi sua opinião, me deixe em paz. — O Caça-contrato se desvencilhou do veterano.

Galezir pensou em derrubá-lo, depois passou as mãos pelo rosto, extravasando um pouco sua raiva, e olhou para o alto.

O silêncio reinou por alguns segundos, conforme se recorda de tristes lembranças de seu passado, quando ainda sonhava em trilhar um futuro promissor.

— Eu também sei o que é se sentir incapaz, em Vespaguem a única coisa que importa é nossa força, nossos poderes nos torna especiais ou estorvos… no final somos parecidos — alegou, olhando para o Fosso.

Esfer golpeou o muro de acesso que acabava de se apoiar.

— Você nunca entenderia.

— Sou um Demônio. — Ele se voltou para o galpão. — Não vou falar que o entendo, nem quero, só me garanta que não fará nenhuma loucura — falou, ao sair.

— Eu já teria feito, se algo estivesse ao meu alcance. Sempre vejo o que tenho de mais precioso partir, sei que sou fraco para resolver as coisas sozinho… — disse Esfer, para si mesmo, à medida que tentava esconder um olhar choroso. Sabia que precisava seguir em frente.



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