Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 16: Caminho Tortuoso

Mildifer era um nobre influente e poderoso. Os longos anos regendo seus domínios em uma atmosfera repleta de intrigas e conspirações foi um ofício que o ensinou a cortar, sempre que possível, seus problemas pela raiz. Para encarar esses dilemas recorria a diversos meios, nem sempre considerados corretos, sendo a opressão uma dessas artimanhas.

O Demônio possuía à sua disposição um grupo de guerreiros de elevada classe que se encarregava dos trabalhos mais sujos. Entre esses estava Harter, um Caça-contrato, mas, assim como Calisto, passava a maior parte do tempo investigando os desaparecimentos ao longo da cidade, como na noite anterior, onde pereceu nos conflitos ocorridos no interior da galeria subterrânea. Mildifer era alguém que os Caça-contratos não queriam como inimigo.

Pouco depois da chegada do ilustre visitante, Zifria veio à enfermaria, sem fazer cerimônias.

— Mildifer, da grande linhagem dos Dorhen, está aqui.

O grupo ficou surpreso, apenas Calisto sabia sobre as colaborações desse Demônio e seu envolvimento no recente ataque. Ela originalmente obedecia às ordens de Mildifer, mas, devido a um pedido formal do mestre, passou a auxiliar Latrev nas atividades referentes à anônima associação.

— Você tem certeza? — perguntou Barock, franzindo a testa. Recordava-se de como as surpresas que teve em Vespaguem não costumavam ser agradáveis.

— Tenho, ele passou pelo salão, revoltado. Agora está conversando com o mestre Latrev. — Zifria olhava para Calisto que mantinha-se inabalável.

Calisto, importunada com a fixação da Caça-contrato, se inclinou para a frente e sentou sobre o leito.

— Está tudo bem, ele deseja saber mais sobre nossa incursão. Tem seus motivos para não deixar nenhum detalhe relevante escapar.

— O que a faz pensar isso? — Teslan, irritado, se mexia na cama, para encontrar a posição mais cômoda para suas costas doloridas.

— Os dois são velhos amigos. Confiam um no outro e mantêm uma sociedade. Quando surgem problemas é natural que uma das partes fique irritada, independentemente de sua proximidade. — Ela só esboçava um cenário, ocultando questões importantes e delicadas.

Teslan, com os olhos vermelhos, deu um tapa no leito e apontou a mão na direção da Demônia.

— Você e o mestre escondem segredos há um bom tempo, este não foi o nosso acordo. Sabe muito bem porque aceitamos manter toda essa fachada junto com vocês. — O Demônio abriu um dos braços como se pedisse a ela que avaliasse o estado dos colegas. — Porém, parece que agora as coisas estão saindo do controle.

Com os rumos da discussão, Cão se recordou vagamente dos devaneios que ouviu de Olfiel, durante o Exame de Seleção, no dia em que ingressou na ordem.

— Quanto menos vocês saberem, será melhor… apenas não contém nada além do necessário. — Calisto levou uma das mãos ao rosto e pensou nos possíveis problemas que logo apareceriam.

A agitação inicial havia passado. As palavras da assassina deixaram os Caça-contratos receosos, como se estivessem esperando o julgamento de um crime. Sabiam que todos os integrantes envolvidos na última expedição logo seriam convocados pelo mestre Latrev.

 

☼☼☼☼

 

Com o passar das horas, à noite provavelmente já reinava na superfície, quando os últimos preparativos estavam sendo realizados. A movimentação na sala de Latrev era intensa, logo aquele ponto seria o local da reunião entre os principais líderes da associação, chamados de Kadiras. Desejavam saber os resultados do relatório da incursão, toda informação era válida para identificar a misteriosa organização que realizava sequestros em seus domínios, alimentando a caçada aos Demônios-predadores.

A passagem que seguia rumo às instalações de Latrev estava mais vazia do que de costume, em virtude das orientações transmitidas aos membros da unidade. Galezir parecia ser a única exceção.

Medidas tomadas para receber figuras importantes no cenário local que tratariam de um assunto delicado e odiariam aumentar suas preocupações com atenções indesejadas.

Com a aproximação do horário da reunião, os integrantes que participaram da expedição partiram em direção à construção na qual o mestre da unidade residia, a mais luxuosa, dona de imponentes paredes cinzentas que ganhavam as alturas e realçavam os contornos delicados das janelas negras. Os seis Caça-contratos cruzaram uma escadaria que dava acesso à entrada, corredores com pouca mobília adornados com alguns tapetes e lamparinas, além de quadros e vasos antigos que criavam uma atmosfera de grandeza. Ao avançarem mais um pouco alcançaram uma porta de madeira com rebuscados acabamentos em dourado que estampava o desenho de um círculo com treze chamas.

Ao adentrarem o espaço, avistaram uma extensa mesa rodeada por vinte assentos, mais ao fundo, foi possível avistar Latrev e Mildifer.

Os dois eram conhecidos de longa data. Ambos foram grandes guerreiros no passado, pareciam se entender bem, apesar das personalidades distintas. Latrev sempre adotou uma postura reservada ao reger as atividades da unidade, intervinha somente quando achava necessário, preferia a tranquilidade de viver sem preocupações, dando liberdade para que os membros agissem como bem entendessem, desde que certos limites não fossem ultrapassados. Mildifer emanava uma aura de imponência, gostava de estar no comando das ações, sendo uma figura controladora que sabia recompensar muito bem aqueles que o serviam.

Os membros que compunham os Kadiras aos poucos começaram a chegar e ocupar os lugares vagos. De modo geral, as vestimentas dos presentes eram belas e elegantes, mostravam serem Demônios detentores de várias posses, além de influentes conhecidos nas proximidades. Um rosto familiar chamou a atenção de Cão. Um senhor esguio e de olhar frívolo. Este Demônio, chamado Baltar, foi o principal organizador dos eventos realizados no topo da torre, para a seleção das novas espadas do Fosso.

Latrev, sentado na cabeceira da mesa, deu início a reunião.

— Acredito que já podemos iniciar as discussões… como sabem conforme a mensagem que lhes enviei, a expedição deparou-se com adversidades que comprometeram o sucesso da missão. — Suas palavras atraíram a atenção de todos.

No assento à direita, Mildifer auxiliava o amigo.

— Tivemos algumas surpresas… creio que tempos turbulentos se aproximam. — Ele já estava a par da situação e atuava como um mediador entre o orador e os audaciosos ouvintes.

— Seja mais claro, nosso tempo é precioso. — Baltar gesticulou pedindo pressa. Estava incomodado com as precauções tomadas para a realização do encontro.

O anfitrião continuou.

— A expedição nos Ninhos de Impuros, localizados sobre um complexo subterrâneo, revelou que podemos estar diante de uma questão muito maior. — Os sócios entreolharam-se uns para os outros. — A motivação dos raptos continua um mistério, assim como os mentores por trás disso, porém a guarda de defesa foi facilmente identificada.

Ao ver o amigo hesitante, Mildifer não fez rodeios.

— Um Paladino Imperial liderou as forças de defesa, membros da ordem dos Sem Face também foram um empecilho.

O espanto ficou estampado no rosto da maioria dos convidados, boquiabertos.

— Vocês só podem estar de brincadeira — ironizou um dos presentes, balançando a cabeça.

— Os Paladinos são a elite dos guerreiros imperiais, abaixo somente dos Sete Guardiões. Não podemos lidar como uma ameaça desse porte — disse um segundo convidado, que franziu a testa e apontou para Latrev, principal responsável pelo ataque, mostrando sua insatisfação.

Mildifer se levantou e bateu as mãos contra a mesa.

— Latrev cumpriu as minhas ordens. Fui eu que optei em agir rápido e ele só se dispôs a ser o responsável pela súbita incursão. Tomou as precauções cabíveis, não tem culpa se todos nós não sabíamos onde estávamos nos metendo.

Uma figura começou a rir na sala, parecia divertir-se com o conveniente jogo de acusações. O convidado, chamado Petrir, primogênito de um dos maiores comerciantes da região, rapidamente virou o centro das atenções.

Ele encheu a taça de vinho.

— Parece que alguém importante anda causando problemas — afirmou com uma postura inabalável, quase como se tratasse o caso levianamente e apenas brincasse com os presentes.

Curioso com a reação, Baltar perguntou:

— O que está insinuando?

Petrir soltou um longo suspiro.

— Não devemos fugir dos fatos, um membro influente da guarda imperial, do castelo de Vespaguem, está envolvido. Talvez alguém capaz de acabar em um estalar de dedos com nossa anônima associação.

Com os cotovelos sobre a mesa e apoiando o queixo no dorso de ambas as mãos, Latrev escolhia com cuidado cada palavra.

— Adquirimos pouco conhecimento sobre a finalidade dos sequestros. Foram relatados pelos prisioneiros que aqueles levados de suas celas eram alvos de estranhos exames. Aparentemente, esses testes não possuíam nenhum retorno lucrativo. O ideal seria uma nova busca, porém a vasta galeria subterrânea veio abaixo. Poderíamos usar nossa influência para auxiliar no longo processo de busca alegando desconhecer as causas do acidente, mas a última coisa que queremos é expor nossa identidade.

— Parece que estamos num impasse… as investigações continuarão, contudo, teremos mais cautela para evitar que sejamos alvo de novas surpresas — alegou Mildifer.

Embora descontentes, os convidados concordaram. A atmosfera de tensão acompanhou os participantes no restante das tratativas. As dúvidas no ar os assombravam, um problema incômodo havia se tornado uma questão de grandes proporções.

O encontro chegou ao fim com uma grande bomba nas mãos dos Kadiras. As figuras que deixavam o local pareciam fugir dali, como se aquele espaço fosse a materialização de seus problemas.

Assim como os demais, o grupo de Cão retornava para a enfermaria, quando Latrev interveio.

— Parece que agora todo mundo quer minha cabeça. — Ele olhava para o último sócio que saía.

— Devemos descansar, vamos pensar nesse assunto com calma outra hora. — Teslan deu um tapa amigável em seu ombro e prosseguiu.

O grupo seguia caminho e deixava o mestre para trás.

— Calisto, pode me acompanhar um minuto? — falou o líder da unidade.

Ela em resposta apenas veio em sua direção. Os dois começam a caminhar.

— O que deseja de mim?

— Queria sua opinião sobre a aparição dos Sem Face, esses mercenários são do Distrito de Armeria, certa vez ouvi que você poderia ser de lá. — Ele a olhou dos pés à cabeça.

— Ouvindo coisas assim terá uma vida bem curta. — Os olhos de Calisto adotaram uma tonalidade vermelha e ameaçadora.

— Já entendi, não estou aqui para brigar. — Latrev forçou um sorriso para acalmá-la, sem sucesso. — Sei que não sou seu chefe de verdade, mas tenho certeza que Mildifer não quer que a gente se mate.

Calisto se virou e já dava os primeiros passos para retornar a enfermaria, quando o Demônio respirou fundo e perguntou:

— Tenho mais uma pergunta… Por que sua obsessão pelo Meio-sangue?

Ela parou imediatamente. Latrev podia ser pouco participativo nas decisões na unidade, mas era um hábil observador. Calisto sabia disso.

— Não consigo ver sentido algum nesse absurdo, morra! Seu velhote senil — afirmou, ao sair.

— Estranho, devo ter me enganado — disse, sem esconder uma aparente decepção. Latrev partiu rumo a seus aposentos. Sabia que nos próximos dias os habituais minutos de paz e sossego seriam raros.

 



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