Volume 1
Capítulo 15: Tormentos
A quietude sublime da noite realçava o vento forte e frio que assobiava pelos prédios e cortava as ruas pavimentadas com pedras irregulares, realçando um clima sombrio que pairava pela cidade.
Com as ruas quase desertas e mal iluminadas, uma luz facilmente se destacou ao fundo, logo outras surgiram e seguiram a primeira. Conforme se aproximavam, foi possível ouvir uma barulhenta marcha e alguns gritos de ódio que antecederam sua passagem. Eram tochas, que iluminavam o caminho para o progresso de uma pequena multidão em fúria.
Entre eles, havia alguém que contrariava o desejo de sangue que movia a comitiva. Era Esfer, que por mais que tentasse não conseguia acalmar os populares, mais uma vez indignados com o caos que caía sobre a cidade.
Cerca de duzentos Impuros com tochas, lanças e paus em mãos, se aproximavam a passos rápidos do portão principal do casarão da família Leier, a voz que os representava dentro do distrito de Taleri.
A residência, que lembrava um velho forte, estava situada em um pequeno terreno cercado por altos muros, que do lado de fora permitiam somente a visão do terceiro andar. Suas extensas e densas paredes de pedra eram como uma imponente armadura que os mantinha protegidos da grande algazarra que caía sobre a maior parte dos moradores da cidade nos últimos tempos.
Um dos revoltosos jogou Esfer no chão. Ele se levantou sem demora e voltou a pedir calma, mas ninguém lhe dava ouvidos. Insistindo, voltou a caminhar e trombar pelo meio da multidão, em direção ao casarão.
Antes de atravessar a multidão, alguém o derrubou e se debruçou sobre ele. Outros também o agarraram e passaram a sacudi-lo e sufocá-lo. Pedia, berrava por ajuda, ouvindo as maldosas risadas dos revoltosos que o encaravam com olhos sedentos. Com uma intensa pressão em sua garganta, se debatia e contorcia no chão. Gastava suas últimas forças enquanto suas palavras engasgavam e perdia o ar, sufocado.
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Ao despertar de um terrível sonho, logo buscou por seus pertences tateando o leito ainda meio sonolento. Ciente de tudo que ocorreu na noite anterior, no interior da galeria subterrânea, percebeu como suava frio. Se recordou que estava na enfermaria, no interior da sede dos Caça-contratos. Um amplo espaço, muito mais aconchegante que o dormitório dos Impuros, dividido por uma longa passagem central, onde ambos os lados eram preenchidos por leitos. Entre eles estavam seus colegas de ordem.
Se levantou sem demora e caminhou alguns metros enquanto ainda colocava as ideias em ordem. Assim, antes que perdesse o equilíbrio, se apoiou meio torto sobre uma das camas vazias.
— Por acaso teve outro daqueles sonhos? — disse Cão, que repousava na cama ao lado.
— Você também deveria, tanta desgraça vem nos assolando — respondeu, ainda de costas.
O Meio-sangue desviou o olhar e respondeu:
— Sabe muito bem que não tenho isso… desconheço o que sejam, já comentei que nunca tive algo assim.
— Todo mundo sonha, por mais que diga custo em acreditar. — Esfer largou o leito e avançou em frente. Ao perceber que Cão o seguia, finalmente se virou. O companheiro caminhava com bem mais dificuldade e possuía diversas escoriações que exigiam cuidados. Como todos os componentes do grupo, carregava diversos machucados pelo corpo, resultado dos conflitos travados poucas horas antes. — Você está acabado… como se sente?
— Vou ficar bem, não se preocupe, ainda vou viver mais do que você.
— É… eu estou vivo. — Enquanto saía, os olhos de Esfer percorreram a enfermaria, avaliando o estado dos colegas. Apenas ele e Olfiel não exigiam maiores cuidados. — Parece que os perigos só aumentam.
Do lado de fora, ambos pararam diante de um amplo pátio, perto da cabana de Dibian, onde, nos últimos dias, Cão passou a aprender mais a respeito de maldições. Uma das orientações de Fira, durante a visita ao Covil das Feiticeiras.
Esfer improvisou um bloco de pedra como banco e deslizou as mãos pelo rosto e pelos cabelos como se quisesse mandar para longe suas aflições. Depois, admirou com um olhar distante o emaranhado de construções irregulares e luzes desarmônicas que escalavam desordeiramente o Fosso em direção à superfície.
— Isso te traz lembranças? — disse Cão, sem grandes pretensões, apenas intrigado com a agonia do colega.
— Do que está falando?
— Daquela torre — alegou Cão, apontando para fora. — Você sempre está encarando ela.
Um amargo sorriso surgiu no canto de seus lábios. Nem o próprio havia percebido antes, porém, de fato, sempre que se distraia um pouco, se pegava encarando a construção.
— Talvez… mas isso não é da sua conta — respondeu Esfer.
— Você tem um lugar para onde possa voltar?
— Por que isso agora? Nunca foi de jogar conversa fora.
— Eu perdi meu passado. Te olhando agora, tenho a impressão que algo parecido aconteceu com você.
— Ouvir isso não vai te ajudar em nada.
— Provavelmente… Mas essa não é a questão.
Esfer soltou um longo suspiro.
— Se está tão interessado em saber, me diga primeiro, quem é você?
— Acha que estou escondendo algo?
— Demônios mentem.
Cão desviou o rosto parecendo dolorosamente se divertir com o comentário.
— Sou apenas alguém que teve medo de seguir em frente…medo de se arriscar… agora eu vejo isso. Talvez já seja tarde demais, mas, se ainda continuo aqui, ainda posso tentar consertar alguma coisa, não é? Enfim, é nisso que quero acreditar. — Ele percebeu a fixação nos olhos do colega. — O que foi? Há algo de errado em tentar entender os outros para procurar compreender melhor a si próprio? — perguntou, mostrando os dentes de ferro que possuía.
Esfer cobriu o rosto com a palma de uma das mãos, parecendo satisfeito.
— Já deve ter percebido que sou bem mais forte que um Impuro comum, não é? — Baixou a cabeça. — Posso não parecer, mas sou um nobre, ou, pelo menos, algo próximo a isso.
— É mesmo? — perguntou Cão, sem conseguir esconder um sorriso debochado.
— Deve ser bem difícil acreditar agora, mas, não o culpo. Não depois de tudo que aconteceu.
— Então me diga, como as coisas ficaram assim? — perguntou Cão, com um tom ardiloso.
Esfer levantou mais uma vez o olhar, admirando a torre que subia em direção à superfície.
— Quando tudo começou…
2
Seus passos firmes e contínuos ressoavam pelo interior da torre e as longas espirais que davam forma às escadarias dos últimos andares pareciam dar vida a um círculo vicioso. Era uma subida penosa, mas já estava habituado.
Como membro da casa Leier, umas das poucas com alguma influência entre os Impuros, representavam a voz dentro do distrito. Acompanhar de tempos em tempos as atividades dos Alquimistas era uma de suas obrigações, mas isso estava longe de ser uma tarefa enfadonha.
Ao alcançar o último andar, em meio a um conglomerado de frascos, papéis, especiarias e poções, que preenchiam as estantes, os balcões e as velhas paredes de pedra, o verdadeiro motivo de suas frequentes visitas se revelou. Uma jovem de longos cabelos negros que trabalhava como serva na torre dos Alquimistas.
— Você de novo? — disse Layrrel, com um jeitinho presunçoso. — Os Leier tem tanto tempo sobrando assim?
— Talvez nem tanto assim… — Ele desviou o olhar, avaliando a aparente desordem que tomava o salão. — Vim ver seu mestre, ele está?
— Ele acabou de sair e isso nunca foi motivo para você vir aqui.
— Culpe a febre do demônio, sabe muito bem como as coisas estão lá fora.
— Se quer tanto assim ver resultados, me ajude com isso — disse Layrrel ao entregar um dos vários frascos que preenchiam algumas estantes, antes de voltar ao trabalho. — Sabe como esses velhos fazem uma bagunça por aqui. — Ela olhou para trás. — Ande! Não faça essa cara de bobo e me ajude.
Esfer não teve como recusar. Sua doce companhia era como uma fragrância que o enfeitiçava, levando-o a sempre encontrar uma desculpa para retornar. Diante de seus olhos castanhos e profundos voltava a ser apenas um garoto ingênuo que se atrapalhava com as palavras.
O passar das semanas apenas nutriu os sentimentos dos dois, contudo, a calamidade também cresceu na cidade, a febre do demônio estava assolando todos. O distrito de Taleri se tornou o maior epicentro da febre do demônio de toda Vespaguem.
Nunca se esqueceria de quando avistou no horizonte o tremular desordeiro das centenas de luzes que rompiam à noite e deram forma a uma multidão de Impuros carregando tochas, lanças e paus, que se aproximava dos portões do casarão com olhos famintos.
— Reler, apareça! — disse um dos revoltosos.
— Seu dever como o representante do distrito era nos proteger! Onde estavam os Alquimistas? — perguntou um segundo.
— Abram o portão! — ordenou um terceiro.
— O que significa tudo isso? O que aconteceu? Sabem que também queremos pôr um fim nesse caos — alegou Esfer, do outro lado, enquanto os servos zanzavam apressados de um lado para o outro atendendo ordens.
— Meu filho está com a febre do demônio!
— Outra pessoa desapareceu. E onde vocês estavam? Deveriam acabar com esse problema. Estamos cansados disso!
— Se acalmem, vamos encontrar uma solução — argumentou Esfer, pedindo calma com as mãos.
— Já é tarde demais para isso. Avancem!
— Forcem o portão!
Alguns servos reforçavam a entrada para atrasar a travessia dos revoltosos, enquanto Esfer tentava acalmar todos dentro do casarão. Contudo, as intensas batidas contra o portão acaloravam os ânimos.
Assim que o portão caiu, centenas de Impuros invadiram e atacaram, sem pouparem esforços para saciarem um desejo vingativo que ecoava pela multidão. Saquearam, destruíram e mataram, como se punissem os culpados por todo o mal que pairava sobre o império.
Quando acordou, amarrado e com uma dolorosa ferida na cabeça, não tardaria muito para os primeiros raios de sol surgirem no horizonte.
— Uma nova era nascerá, garoto — disse um Demônio alto e moreno que ajeitava suas luvas metálicas, com um semblante distante. Vestia um manto marrom que possuía listras negras nas mangas e região das costelas, um adereço característico dos simpatizantes de Fantasma. Seu olhar marcado por profundas olheiras estava fixo no horizonte, mais precisamente para a densa fumaça que escapava por algumas das janelas de pedra da torre dos Alquimistas.
Esfer ainda colocava as ideias em ordem e virou o rosto por impulso para entender melhor a origem dos frenéticos estalos que ecoavam pela rua. Estremeceu ao avistar as chamas vorazes que dançavam e devoravam as estruturas do casarão. Do lado de fora, também viu os cadáveres ensanguentados de sua família, alinhados no chão, como um troféu. Seu irmão mais novo e ingênuo, que sempre sonhou em saber o que havia além da Grande Barreira, havia sumido. Sabia também que Layrrel poderia estar em apuros. Desatinado, gemia e gritava com uma voz esganiçada.
Ele voltou a ouvir o Demônio:
— Hoje demos um novo passo. Não se deixem mais enganar pelos porcos do império. Sigam em frente! Se guiam nas palavras de Fantasma. Ele será a chama que os guiará.
— Queimem os filhos da centelha — gritou um Impuro, em apoio.
— Libertem o distrito desses parasitas — brandou mais uma voz no meio do tumulto.
— Seus desgraçados! — berrou Esfer, com um olhar choroso e a voz mais anasalada, encarando os revoltosos com o peito apertado. Se contorceu e tentou se soltar, mas percebeu uma marca circular em sua nuca, cortada por vários traços negros e irregulares, que lembravam uma espécie de combinação. Ela anulava seus poderes.
— Expulsem o traidor. Ele não pertence mais a esse lugar.
— Traidor?! Seus malditos, minha família sempre os protegeu. Vocês que são a verdadeira praga do império! — Dois Demônios, que também apoiavam o Último Maker, agarraram seus braços e começaram a arrastá-lo para longe, enquanto se debatia. — Que as criaturas da noite os carregue para o além, seus vermes!
Continuou a berrar e lutar o quanto pôde, porém foi inútil. Não foram apenas os Demônios, mas também os Impuros, seu povo, que tomaram tudo que tinha de mais precioso. Sabia que não podia retornar, aquele lugar já não era mais seu.
3
— Uma linda história… — disse Cão, amenizando os ânimos.
— Fui levado como prisioneiro para trabalhar em um Ninho, mas fugi pouco tempo depois. — Esfer alongou um dos braços, com um aparente desconforto. — Procurei os dois em todo lugar, porém só perdi meu tempo. Vim para o Fosso porque ouvi que talvez poderia encontrar alguma pista… e hoje estou aqui.
— Não sei se isso é muito reconfortante, mas também não morro de amores por esse lugar.
— Fiquei tentando esquecer… A batalha de ontem apenas me lembrou de algumas coisas. — Ele se virou para Cão. — Ainda não desisti de encontrá-los.
— Você podia ao menos ter me contado o nome deles.
— E isso importa?
Cão apoiou o queixo na palma de uma das mãos, com um ar moroso.
— Deve ser reconfortante ter, pelo menos, um ponto para recomeçar.
— Não me compare a você.
— O que quer dizer com isso?
— Sabe muito bem que somos diferentes.
— Você diz isso, mas, na verdade, também quero retomar o que perdi. — Ele apoiou as costas no chão com um olhar distante. — Encontrar algo que seja real…
Esfer soltou um sorriso irônico.
— Isso é algo que alguém como você nunca entenderá. — Esfer levantou-se passando as mãos no cabelo e se voltou para as distintas construções que compunham a unidade, as encarando como se representassem todo o seu sofrimento. — Malditos Demônios… — murmurou, fechando os punhos.
Ao ouvir a resposta, muito semelhante à que recebeu de Vromir, pouco antes de conhecer Calisto, se inclinou para frente, incomodado.
— Quanto rancor… Você os mataria, se pudesse? Mataria Barock e Teslan? Eles nunca foram cruéis conosco, pelo contrário, sempre nos instruíram.
— Cheguei a achar que pensasse diferente, fui um tolo — falou, balançando a cabeça de um lado para outro. — Afinal, você é um Demônio-predador. Quantos Impuros já matou? Já perdeu as contas?
— Qual é seu problema? — disse Cão, antes de socar o chão. Suspirou profundamente. — Está curioso? Quer me aborrecer? No que isso importa agora? — Cão cobriu os olhos com uma das mãos e depois a deslizou sobre sua face. — Não entendo onde quer chegar.
Divagou sobre o manto de mortes que aflorou em sua pele e a relação com seus poderes, refletiu também sobre o preço mencionado por Fira que as maldições exigiam do usuário.
Os questionamentos de Esquerdo ressoavam em sua mente. Ele também se recordava do caso de Fira e Liprian, quando esteve no Covil das Feiticeiras. Apesar de suas diferenças, os Impuros não eram oprimidos por sua origem, mas sim pelo fato de serem fracos. Cão sabia que os Demônios apenas agiam de acordo com sua natureza, algo difícil para Esfer entender.
— Não conseguiria mesmo se tentasse — disse Esfer.
— Entendo sua desconfiança, não o culpo. Às vezes também questiono minhas escolhas e o porquê penso assim. Tudo que fiz, os passos que segui, nada disso importa mais. Tenho a sensação de que sou alguém sem conserto, de ser alguém… podre. — Cão tentou disfarçar sua agonia virando as costas para o companheiro. — As feridas do passado podem deixar cicatrizes que talvez nunca se curem. Sei disso melhor do que ninguém. Mas tento seguir em frente. É tudo que me resta.
— Não sei pelo que você passou, mas o passado é algo que não pode mudar, por mais que deseje você não pode voltar. — Cabisbaixo, refletiu sobre como sua vida poderia ter seguido um rumo diferente, enquanto se recordava de Layrrel.
Cão começou a regressar à enfermaria.
— Todos tem um lado bom e um lado mau, não somos uma exceção.
Esfer elevou o tom de voz devido à distância entre os dois.
— Todos possuímos um passado, talvez você também tenha um lugar para retornar. Mesmo se você tenha fechado seus olhos para ele.
— É… talvez.
Enquanto retornava, uma inquietude começava a ser observada no salão de recreação. Um ilustre visitante causava a súbita movimentação. Era Mildifer, o principal fundador da associação que investigava os estranhos desaparecimentos nas redondezas e sua possível ligação com a febre do demônio. Os Caça-contratos mal sabiam, porém, em breve, no interior da unidade, ocorreria uma reunião organizada às pressas entre os membros da cúpula.