Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 13: Devoradora

Pelos estreitos e antigos túneis empoeirados, quatro figuras prosseguiam atentas para se anteciparem a menor movimentação suspeita. Eram Esfer, Calisto, Harter e Olfiel. Eles continuavam a seguir o curso das passagens, convictos de que o alvoroço causado anteriormente havia alarmado os habitantes do complexo. Estavam prontos para um inevitável combate.

Ao avançar na direção de pontos cada vez mais remotos, o grupo se deparou com um grande portão de metal, agora aberto, o qual permitia o acesso para uma espécie de base composta por um conjunto de tendas dos mais variados tamanhos e amplas construções de pedra que povoavam o terreno rochoso. Ao se aproximarem, também avistaram vários prisioneiros que os encaravam de suas celas apreensivos, todos em um estado lastimável. Alguns se arriscaram e suplicaram por ajuda.

De repente, quatro guerreiros saíram das sombras. Todos ostentavam máscaras cinzas, adornadas com faces obscuras, que destoavam umas das outras, cortadas por listras negras e irregulares. Sacaram as armas, prontos para batalhar.

— Em formação!  — afirmou Calisto para os companheiros. Com um gesto, ela impediu que seu familiar se materializasse e o ordenou que se escondesse até segunda ordem.

— Esses desgraçados são da ordem dos Sem Face. Isso não vai ser fácil — alegou Olfiel, que logo teve que desviar de um ataque de espinhos envenenados, lançado das sombras.

Esfer olhou ao redor, sabia que um quinto oponente ocultava seu paradeiro no breu, tornando-o o mais perigoso, já que estavam ocupados com os adversários à frente.

Um dos Demônios mascarados girou no ar e lançou uma esfera coberta de espinhos ligada a uma corrente de ferro que partiu ao encontro de Esfer. Sem reação, o novato apenas viu o momento que foi salvo por Harter, que conteve o ataque.

Um segundo adversário também avançou na tentativa de desferir um ataque em pinça, mas o mercenário foi obrigado a saltar para trás, evitando desse modo uma grande espiral vermelha de Calisto, criada a partir de uma pequena gota de sangue, que se chocou contra o chão antes de voltar a levitar.

— Miseráveis… — resmungou o Demônio que escapou por pouco.

Uma pequena labareda nasceu sobre a palma de um dos Demônios mascarados, logo cresceu exponencialmente e se tornou uma grande esfera escaldante que desceu, em um assobio, na direção dos Caça-contratos. Em resposta, Harter manipulou três fios de sangue que surgiram de seu pulso e giraram no ar antes de darem forma a um pequeno círculo que se expandir até ganhar as dimensões de um verdadeiro paredão de cristais avermelhados, que resistiu a grande explosão flamejante que soou pelo local.

Diferente de Calisto, dona de poderes que estavam muito acima da maioria dos Demônios-predadores, ele só podia manipular o próprio sangue e não era capaz de dar vidas a criações que fosse capaz de controlar à distância.

Dois mercenários avançaram pelo lado direito do ponto que ainda estava tomado pelo fogo. Calisto e Harter os enfrentaram.

Os dois outros inimigos contornaram pelo lado oposto.

— Vamos!

Olfiel preparou sua investida contra um deles, porém, o oponente mudou seu objetivo e preferiu ajudar o colega em um ataque em conjunto contra Esfer.

— Se mexa!

Em tamanha desvantagem, Esfer teria encontrado seu fim, se novas espirais não tivessem dispersado os agressores. Movido por extinto, Esfer surpreendeu a dupla com a projeção de uma lâmina dourada que rompeu, como um projétil, pelo salão subterrâneo.

Um grito agudo percorreu a galeria.

— Meu braço! Meu braço! Maldito… verme — berrava um deles que caiu no chão com uma longa ferida, contorcendo-se em dores, porém, tomado pela ira, já tentava levantar.

O guerreiro, ao lado do Demônio ferido, voltou a girar a corrente ligada a bola de ferro coberta de espinhos, correu na direção de Esfer e lançou a esfera. O novato rolou para a direita, ouvindo um som metálico contra o chão.

Ciente que a arma do oponente era pesada, optou por um ataque frontal. Infeliz erro, o mercenário da ordem dos Sem Face girou a outra extremidade da corrente no ar e desferiu um novo ataque, o qual foi defendido por Esfer com um movimento de sua espada, por puro reflexo. A força do golpe o fez cair para trás.

O Demônio sacou uma espada curta que mantinha em sua cintura, mas foi impedido de avançar por uma das espirais vermelhas controladas por Calisto que pairavam no ar. Um pouco mais distante, o mascarado ferido também conseguiu escapar do ataque, com dificuldade.

— Morram, seus ratos — disse Calisto para os guerreiros que corriam de suas criações.

— Precisamos encontrar uma solução! — Esfer, ofegante, olhava para ela que retirava um longo espinho do ombro e o arremessava, com ódio, para longe, enquanto já dispersava o sangue à volta da ferida.

A cada segundo que passava o quadro dos Caça-contratos se agravava. Em resposta às adversidades que caíam sobre o grupo, Calisto sabia que teria que mostrar o motivo de muitos a intitularem de a Devoradora.

Um dos atacantes avançou sem pestanejar. Ela encarou-o de frente. Ao cruzarem as espadas, a Demônia sofreu uma profunda ferida em seu braço direito antes de surpreender e liquidar o inimigo com a projeção de uma longa lâmina de sangue, semitransparente, que lembrava a beleza de um cristal avermelhado, o qual ao perfurar as entranhas do oponente, cresceu vertiginosamente, se ramificou e rompeu na direção dos demais mascarados.

Com a brecha, ela olhou para Harter, o qual logo compreendeu suas intenções e se lançou no rumo da origem da última rajada de espinhos. Com a medida, um dos mascarados ameaçou persegui-lo, mas acabou impedido por um paredão de cristais avermelhados criado pela Manipuladora de Sangue. A partir desse ponto, Calisto depositava suas esperanças no companheiro de longa data, que derrotaria o inimigo oculto e retornaria antes que ela perecesse em batalha.

Harter não perdeu tempo e avançou em disparada, contudo, seu inimigo era escorregadio e traiçoeiro, os ataques a longa distância o faziam recuar, quando conseguiu trocar os primeiros golpes de espada, percebeu que lidava com um habilidoso espadachim.

— Não tenho tempo para perder com você!

Cada segundo era precioso, tendo isso em vista, arriscou sua técnica secreta, sepultura de sangue. A espada que portava começou a brilhar instantaneamente. Ao descê-la contra o chão, se ergueram dezenas de cristais pontiagudos que partiram como uma avalanche sobre o alvo, prendendo-o entre as pedras que o esmagavam e perfuravam.

O guerreiro mascarado, vendo seu fim se aproximar, ativou um artefato negro e circular que começou a brilhar.

— Pelo primeiro rei! — gritou. Logo depois, uma ensurdecedora explosão tomou o local.

Harter, prevendo o que se desenhava, projetou um denso paredão vermelho que o protegeu do pior, mas, com o abalo das estruturas, o chão começou a ruir e o engoliu em um desmoronamento que o levou para um andar mais profundo.

Ainda avaliava suas escoriações e ouvia um zunido infernal na cabeça, quando surgiram novos inimigos no horizonte. Senhores de posses e olheiros compunham o grupo, pareciam estar reunidos para tratar de um sigiloso negócio, agora interrompido.

— Peguem ele! — disse um dos Demônios.

O invasor resistiu bravamente, já que os adversários não estavam habituados a batalhar, porém, mais ao fundo, apareceu um novo guerreiro que ostentava uma longa espada prateada e uma marca vermelha em seu manto, composta pela silhueta de um grande candelabro à frente de um portão de ferro. O emblema demonstrava que o Demônio de pele clara fazia parte dos Paladinos Imperiais, o esquadrão da morte que atendia apenas aos desejos dos Sete Guardiões.

— Não vou desistir sem lutar — falou Harter.

A grande disparidade entre os dois foi comprovada após uma breve troca de golpes. Quando as espadas novamente se choraram, a lâmina do Paladino encontrou o peito de Harter. Em uma última investida, tentou liquidá-lo com um grande ataque a queima roupa, mas suas inúmeras criações logo voltaram a ser meras gotas de sangue devido à influência do aço godafer, que anulava seus poderes. Já de joelhos, sentia a espada o perfurar e estraçalhar como uma enorme gilete, enquanto perdia suas forças conforme mantinha os olhos fixos no olhar sombrio do oponente. Assim que o guerreiro a recolheu, Harter soltou uma tosse abafada e um fio de sangue surgiu no canto de sua boca, antes de cair no chão e o brilho em seus olhos lentamente se apagar.

— Estamos sendo atacados! — exclamou um dos presentes. — Aster! Faça alguma coisa.

— Acalmem-se, vamos sair pela rota de fuga, levem o que puderem — disse um guerreiro robusto que tentava amenizar a situação. Seu nome era Aster. Tinha a pele morena, os olhos pálidos, uma barba negra e uma cicatriz que marcava com um corte diagonal sua bochecha direita. Diferente dos demais, demonstrava uma aparente tranquilidade, resultado de sua vasta experiência com empreitadas semelhantes.

— Você não fará nada? — perguntou um segundo.

— Aqueles mascarados assustadores estão lutando em nosso lugar… — O vigia soltou um longo suspiro antes de prosseguir. — De qualquer maneira, aquele monstro ali pode exterminar todos os nossos problemas, com uma mão nas costas. Agora vamos! — Os senhores saíram por uma saída alternativa e sumiram em meio à escuridão.

 

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O frágil teto tremia e uma nuvem de detritos pairava no local com a intensa batalha que chegava a seu ápice. Calisto encarava com uma fúria impetuosa e criações cada vez mais ameaçadoras os adversários que ainda se mantinham de pé, enquanto ouvia ao fundo o ressoar da espada de um dos oponentes contra as manoplas de ferro da companheira.

A essa altura, já havia desistido de um possível retorno do aliado e sua ferida latejava intensamente. Sabia que Esfer e Olfiel também estavam em uma situação complicada. O plano falhou, precisava encontrar uma saída.

Dois oponentes avançaram contra ela, com os olhos vermelhos como sangue.

— Para trás! — Esfer conseguiu impedir a investida de um dos agressores com seus poderes, somente não o atingiu porque o alvo desviou, manipulando seu cajado de madeira, o qual continuou a crescer até dar forma a longas raízes que atacaram os forasteiros mais próximos, obrigados a recuar.

A situação exigia medidas drásticas. Calisto, contrariando o bom senso, pegou um pequeno papel quadricular que continha uma gravura negra e medonha e o pressionou contra seu pulso direito. Assim, ativou uma habilidade proibida, que só Demônios de alta classe podiam dominar, chamada de modo arcano, a qual encurtava a vida do usuário e levava as capacidades físicas do usuário ao limite em troca de um grande poder.

Os músculos de Calisto se dilataram e tornaram-se mais definidos, à medida que seus membros se alongavam e sua envergadura crescia, acompanhando os tenebrosos estalos de sua espinha. Quando um par de chifres negros surgiu em sua testa e uma linha negra horizontal ganhou forma ao redor de seus olhos vermelhos, já parecia uma besta demoníaca que carregava traços humanoides.

Emanava uma aura ameaçadora que envolvia o recinto e aterrorizava todos que ali estavam. Seu familiar enfim reapareceu, agora como uma silhueta vermelha e disforme, acompanhando os movimentos vorazes de Calisto.

Cientes do perigo que surgia, os combatentes mascarados redobraram a cautela e investiram múltiplos ataques, mas nada puderam fazer diante da força de Calisto que transformou tudo ao redor em uma tempestade de espirais vermelhas. Com suas capacidades impulsionadas, ela facilmente se aproximou como uma besta animalesca e desferiu uma sequência de golpes raivosos que não permitiram a menor chance de reação aos inimigos engolidos por suas lâminas sedentas ou lançados para longe com o poder de seus cristais que ao colidirem contra os mascarados causavam verdadeiras explosões.

A Demônia parecia a personificação da própria maldade, envolvendo o cenário em uma onda de destruição, que, ao final, deixou lâminas e cristais por grande parte do terreno que sediava o embate.

Com o término dos conflitos e a dissipação da maior parte das criações de Calisto, Olfiel pegou o manto e cobriu a companheira que, ao retornar a sua forma original, já demonstrava as primeiras reações colaterais de tamanha medida.

Esfer passou a libertar as vítimas. Durante essa atividade constatou que, apesar das péssimas condições de confinamento, os prisioneiros não apresentavam grandes lesões.

Calisto ainda debilitada com os eventos que se sucederam, buscava, com Olfiel, maiores informações ao investigarem um amontoado de papéis. Ambas necessitavam saber o que acontecia no subterrâneo e os reais motivos para a presença dos Sem Face. Tal aparição alimentou seus temores e induzia que os estranhos raptos estavam vinculados a uma questão muito maior.

Ao libertar os prisioneiros, Esfer deparou-se com uma curiosa imagem. Em uma das celas estava uma garota de longos cabelos castanhos, Impura como a maioria, sua beleza se destacava entre os presentes e seus olhos eram dourados, como aqueles afligidos pela febre do demônio. Estava magra, porém não aparentava sofrer qualquer sintoma da praga.

“Provavelmente foi por isso que esses Demônios sequestraram ela”, pensou Esfer, enquanto certificava-se de ocultar o fato das companheiras.

O novato duvidava dos princípios de suas veteranas. Alertou a jovem para ser discreta, conforme mascarava sua presença entre os demais prisioneiros, que agora eram soltos. Foi inevitável para Esfer não se recordar de seu antigo lar e também imaginar que talvez seus velhos amigos estivessem sofrendo apuros semelhantes em algum de Vespaguem.

 

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Num ponto distante, o grupo formado por Barock, Teslan e Cão, prosseguia sua tortuosa jornada pelos corredores subterrâneos. Marcas no chão e nas paredes do túnel revelaram que o espaço não estava abandonado, porém, apesar das prováveis transações ilegais que ocorriam alí, ficava no ar o real motivo para tamanhos cuidados.

Avançaram cada vez mais pelas sombras e chegaram em uma ampla galeria construída para sediar grandes reuniões. Nesse espaço, um inimigo solitário, dono de uma barba negra, esperava a chegada do trio, com uma espada prateada e um manto vermelho. Sob seus pés exibia a cabeça de Harter que pereceu diante de sua força. Os três Caça-contratos, assim que o viram, souberam que estavam diante de um Paladino Imperial.



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