Volume 1
Capítulo 12: Incursão
O crepúsculo era visível no céu de Vespaguem, quando as medidas finais para a operação estavam sendo tomadas. No interior de uma singela construção de pedra, com pouca mobília à vista, Calisto conversava com Harter. A traiçoeira empreitada foi organizada por uma associação de influentes formada poucos meses antes, a qual Calisto prestava seus serviços. Os organizadores investigavam o desaparecimento de Impuros e Demônios que cada vez tornavam-se mais frequentes, exigindo saber o que ocorria em seus territórios, tal aliança foi possível. Latrev, comandante da ordem dos Caça-contratos, fazia parte desses apoiadores.
Espiões foram mandados para vários pontos de Vespaguem que geravam suspeitas, na tentativa de descobrir quem seriam os responsáveis pelos sumiços pela cidade, os quais alimentavam erroneamente a frenética caçada aos Demônios-predadores.
— Está quase na hora.
— Logo vamos prosseguir, preparem-se! — Calisto fechou a mochila de couro com suas provisões.
Harter começou a realizar uma rápida explicação:
— Novatos, prestem atenção — falou para Cão e Esfer. — Assim como Calisto, sou um Caça-contrato… um Demônio-predador. — Harter se virou e passou a falar com todo o grupo. — A investida de hoje foi organizada de forma súbita porque um de nossos espiões relatou que surgiram boatos de sequestros nesta região, nos últimos dias. Latrev assumiu a responsabilidade pela incursão. Talvez tenhamos que lutar.
— Estamos por nossa conta, tentem não morrer, escória — disse ela antes de ir até a entrada, averiguar a segurança do setor.
— Eu conheço a região, os guiarei lá dentro, mas tomem cuidado. É muito fácil se perder nesse grande labirinto.
Com os esclarecimentos feitos, partiram rumo ao complexo. Em uma íngreme subida pelas favelas, marcada por caminhos estreitos e sinuosos, que tornaram o avanço dos Caça-contratos ainda mais custoso, alcançaram a parte alta do distrito já sob a luz da lua.
Nos arredores dos Ninhos perceberam os olhares desconfiados que os rondavam. Vasculharam a área e se apressaram em deixar as ruas, até se infiltrarem em um dos Ninhos. Na parte interna, avistaram os precários alojamentos que se entrelaçavam uns nos outros, onde se aglomeravam os Impuros, que os encaravam com desprezo, tornando a situação mais desconfortante.
Uma pequena inquietude ganhou forma com o avanço dos forasteiros, porém foi facilmente controlada por Harter.
“Talvez a pista seja verdadeira”, pensou Cão, tentando ouvir se ainda existia alguma movimentação nas ruas.
Uma agitação e um princípio de correria foram vistos mais adiante.
— Três Impuros estão fugindo, entraram em um túnel mais à frente — disse Barock ao perceber a movimentação com suas apuradas habilidades de detecção.
Em seu encalço, os Caça-contratos os detinham de um a um, sem grandes problemas, mas, antes de ser pego, o último deles conseguiu soar um sinal estridente através de uma corneta branca feita de chifres. Após alguns instantes de apreensão, as paredes empoeiradas começaram a ceder e se movimentar, afunilando-se e sufocando os forasteiros que foram engolidos por uma montanha de sedimentos, enquanto o chão desabava a seus pés.
Distantes dali, um grupo refugiado nas sombras repelia os invasores. No centro estava um Maculado que parecia possuir a habilidade de manipular o terreno, esse Demônio comandava a pequena força de resistência. Por meio dessa artimanha separou os forasteiros, atrasando seu avanço. Foi o que pensou, contudo sentiu uma presença ameaçadora atrás de suas costas, era Barock, que liquidou o oponente no instante seguinte, com um golpe de espada que encontrou brutalmente suas costelas, rasgando-o até o peito.
— Como ele chegou tão rápido aqui? — perguntou um dos defensores.
Os demais efetuaram uma investida em conjunto o fazendo recuar.
Teslan surgiu na direção oposta, ergueu seu braço direito e dezenas de pequenos papéis com gravuras negras cercaram e se grudaram na pele dos oponentes que instantaneamente passaram a ser afligidos por uma praga causada pelas maldições do Caça-contrato, que os incapacitou conforme eram tomados por bolhas horripilantes que nasciam de forma abrupta por todo o corpo.
— Deveriam ter mais cuidado ao escolherem suas presas. Pensem sobre isso no além.
Ao sacar de seu manto alguns cristais semitransparentes que possuíam uma forma similar a facas de arremesso, ganharam uma tonalidade negra. Ao soltá-los, partiram como projéteis e, ao se chocarem contra os quatro Demônios reunidos, libertaram as chamas negras que os acertaram com a força de uma explosão.
Como era o único nobre no local, Teslan imaginou que não teria problemas em controlar a situação, porém, os passos lentos e calmos que passaram a ecoar de um dos túneis anunciaram a chegada de um novo inimigo, levando-o a redobrar o cuidado.
Sua fisionomia era esguia e atlética, portava duas espadas longas, cobria o rosto com uma máscara cinza, cortada por dois traços negros abaixo dos olhos, que lembravam lágrimas sombrias, e trajava roupas pretas e justas.
— Parece que vocês fizeram uma bagunça — afirmou o recém-chegado, olhando com desprezo para os Demônios mortos. — Terei que responder a altura.
Barock apenas olhou para o companheiro e largou sua grande mochila de ferro no chão.
Sem pensar duas vezes, Teslan pegou algumas esferas negras entre seus dedos e as arremessou, as quais se ampliaram e romperam na direção do mascarado. Se espantou com a facilidade que o viu evitá-las à medida que se aproximava.
Barock interferiu e ambos trocaram violentos golpes de espada. Em apoio, o dominador de maldições o afastou com uma nova investida.
— Encontramos alguém problemático — falou Barock que analisava os movimentos do mercenário.
Na ofensiva seguinte, o Caça-contrato, ao desviar de um golpe vertical, foi surpreendido e desequilibrado por um chute do oponente.
— Acabou, intruso nojento — disse o espadachim mascarado.
Barock conseguiu conter a primeira espada com sua lâmina e antes que fosse atingido pela segunda, um orbe negro lançado por Teslan o fez desviar. Assim, teve tempo de amortecer a nova investida com a espingarda que sacou de suas costas e afastá-lo com um novo chute, antes de disparar. O mercenário rolou para o lado com movimentos plásticos e sentiu uma baforada escaldante acompanhada por um forte cheiro de pólvora quando o projétil passou zunindo ao lado de seu rosto.
— Atire de novo nesse safado! — ordenou Teslan.
— Cala essa boca, tenho que carregá-la primeiro.
Barock fez o gesto do louco. Teslan compreendeu as intenções do amigo e ativou seus marcadores. Os dois mudaram suas posições através de um teletransporte instantâneo.
— Não pense que será fácil nos derrotar — disse Teslan que, agora de um ponto mais próximo de seu alvo, jogou uma única esfera de coloração prateada, mais veloz que as anteriores.
O inimigo arremessou uma de suas espadas na direção do orbe que explodiu no meio do caminho, causando um estampido ensurdecedor, que se prolongou como um zunido irritante nos ouvidos de todos.
— Seus ratos! Vou gostar de matar os dois. — O mercenário, já de pé, os procurava em meio à poeira com olhos famintos.
Suas pernas falsearam e se desequilibrou, sem entender, levou umas das mãos as costas. Sua palma ficou coberta de sangue, sua visão começou a ficar turva e sua consciência a se esvair quando caiu de joelhos. Acabava de ser perfurado por uma espada, arremessada de muito longe, como uma lança.
Cão saiu das sombras e revelou sua presença, após desferir o ataque certeiro.
Barock e Teslan se conheciam há poucos meses, mas já estavam familiarizados a agirem em parceria. Quando tudo começou a ruir, os três se mantiveram juntos, para escaparem da espessa avalanche de pedras. Teslan, usuário de maldições, possuía a capacidade de teletransportar-se com o auxílio de marcadores criados a partir de seus poderes. Com as habilidades de rastreamento de Barock, localizaram os inimigos e contra-atacaram, cada um desempenhando uma função em específico para viabilizar a vitória.
— Morra! — urrou Barock, ao liquidar o guerreiro com um novo disparo da arma de fogo. Cão se aproximou para reaver a espada. — Conseguiu derrubá-lo mesmo, seu miserável.
O novato recuperou a lâmina.
— Eu tive um bom mestre — afirmou, ao dar as costas para o colega, enquanto se recordou, por um momento, da silhueta de um robusto e imponente guerreiro imperial.
— Você não estava brincando quando disse que podia derrubar qualquer um apenas com um arremesso.
— Eu disse que conseguiria, se tivesse sorte — respondeu Cão, passando uma das mãos sobre uma pequena ferida na testa, causada por uma das pedras durante o desmoronamento.
— Quem dera fosse sorte, estamos em uma enrascada que não tem mais volta. Essa máscara cinza mostra que ele é um Sem Face, o mais poderoso esquadrão de mercenários. Dizem que os mais habilidosos são indicados para o esquadrão da morte de Faenis, uma dos Sete Guardiões e Demônia de confiança de Turcarian, nossa soberana.
— Ferrou… — falou Cão.
— Que manchas escuras são essas no seu braço? — perguntou Barock enquanto vasculhava sua enorme mochila.
O novato imediatamente as escondeu debaixo da capa.
— Não é nada, vamos sair daqui.
— Os túneis desabaram… — Teslan, sentado em um banco de pedra, passou as mãos sobre o rosto, desnorteado. — O que nos resta é descer ainda mais. — Se levantou e abanou a poeira do chapéu, na tentativa de retomar a confiança.
— Bem, vamos mostrar do que somos feitos. — Barock ergueu um dos braços e mexeu o punho no ar na tentativa de animar o grupo.
— É… ferrou… — concordou Teslan.
Cão encarou a arma nas mãos de Barock.
— Que diabos é essa coisa afinal?
— Isso é uma arma de fogo, consegui no mercado negro. É assim, eu seguro aqui e aponto — explicou o Demônio que se virou, com um movimento rápido e brusco, na direção do Meio-sangue. Depois, baixou a arma e chacoalhou o ombro do novato enquanto ria, na tentativa de apaziguar os ânimos.
— Aquele que é conhecido como Fantasma vem facilitando essas aquisições, a notícia já se espalhou por toda Vespaguem — contou Teslan.
Enquanto Cão ainda refletia sobre essa figura misteriosa, uma aterradora sensação de morte o afligiu, acompanhada por um longo arrepio que percorreu sua espinha e gelou seus ossos. Sentiu uma agulhada nos olhos que o fez inclinar para a frente e teve a impressão de ser sufocado por uma sombra feminina, esguia e horripilante.
— Foi você que matou todos eles — sussurrou em seu ouvido uma voz medonha e agonizante, que desapareceu repentinamente no ar.
“O que aconteceu? De quem era essa voz? Minha cabeça está latejando…”, pensou Cão, enquanto passava as mãos na cabeça.
Barock e Teslan que o acompanhavam lado a lado não haviam percebido qualquer mudança, apesar das afiadas habilidades de detecção. Cão ainda tentava entender o que acabava de ouvir, porém outros problemas necessitavam de maior urgência. Pensou nos oponentes que surgiriam adiante, além do real estado de seus companheiros que estavam isolados, provavelmente em um ponto ainda mais profundo no subsolo desse complexo de antigos túneis.