Volume 1
Capítulo 11: Invisibilidade
Passos apressados ressoavam por um imponente corredor bem iluminado. O contraste da claridade com o anoitecer tornava ainda mais belas as rebuscadas decorações e elevavam o ar de grandeza que impregnava o palácio. Eram Tabata e Vedrak que caminhavam rumo aos aposentos de Turcarian, senhora de Vespaguem, que aguardava impaciente a chegada da sábia a qual requisitou mais cedo.
Recentemente a imperatriz estava incomodada com os frequentes questionamentos de Solenaris, senhor de Falazis, outra das treze cidades do chamado Mundo Inferior, a respeito da ameaça dos Sombrios e dos surtos da febre do demônio. A conversa com a visitante era uma peça crucial para decidir suas próximas decisões.
Para executar os próximos passos que tinha em mente, Turcarian necessitava do apoio da família Maker. A soberana de Vespaguem, agraciada com uma das treze grandes armas, era conhecida por comandar de maneira onisciente dentro de seus territórios, devido aos poderes oriundos da centelha da criação. Somente a nobreza se mostrava capaz de esconder seus segredos, da influência da imperatriz.
Os Maker em questão carregam o sangue do último Demônio que obteve a centelha da criação, pouco antes da fundação das treze cidades-fortaleza. Por muito tempo se pensou que tal família havia sido extinta após a divisão do imenso poder que estava em suas mãos.
O interesse de Turcarian estava relacionado com a habilidade de manipular as sombras que a família possuía, velhas histórias diziam que alguns inclusive tinham a capacidade de manipular o próprio destino. Atualmente o último Maker conhecido construiu um império nos subúrbios de Vespaguem, era sobre essa pessoa que a soberana buscava saber.
— Estou honrada em atender os desejos de minha rainha. — Tabata saudou a imperatriz inclinando a cabeça em forma de subordinação.
A anciã, dona do Covil das Feiticeiras, apesar de ser uma grande detentora de conhecimento, adotava, através de raros saberes, a forma de uma jovem mulher de pele clara, dona de longos cabelos escuros e lisos, que davam um charme misterioso a suas curvas esguias.
Turcarian, sobre o trono dentado, um símbolo absoluto do poder em Vespaguem, formado por ossos e presas de alguns dos mais terríveis monstros já avistados no coração da noite eterna, olhava fixamente para a sábia.
— Chamei você aqui porque necessito de seus conhecimentos.
Tabata controlava o tom da voz para não evidenciar sua apreensão.
— No que lhe posso ser útil?
— Quero descobrir mais sobre o último Maker, chamado apenas por Fantasma pelos poucos que o conhecem. Nem meus espiões conseguem descobrir muito a seu respeito, até é difícil acreditar em sua existência.
— Atualmente sim, mas no começo não possuía tanta influência, ele é um Demônio das sombras, como contam as antigas histórias de seus ancestrais. Tem uma pele vermelha e cerca de dois metros e meio de altura. Demonstra ser um habilidoso guerreiro. Quando começou a ter pensamentos mais ambiciosos, veio ao meu estabelecimento visando conhecer melhor as artes negras e como encantar objetos. Nada que chamasse a atenção. O defino como um ser escorregadio e difícil de compreender.
— Sabe qual é seu paradeiro?
— Desculpe, há muito tempo, ele deixou de me procurar.
— Entendo… recentemente ouvi que você havia entrado em contato com ele e talvez até soubesse onde encontrá-lo. Pretendia saber mais a seu respeito. Espero que não esteja ocultando nada de mim — insinuou a imperatriz que olhava para as próprias unhas.
Tabata levantou a cabeça para avaliar a postura da soberana.
— Jamais a trairia.
— De nada servem suas habilidades, se tiver eu como inimiga, ainda mais você, uma Meio-sangue.
— Isso é algo que quero evitar.
A fisionomia da imperatriz transpareceu uma aparente decepção.
— Que seja, pode sair.
— Eu vou acompanhá-la. — Vedrak se curvou mais uma vez.
Com um gesto, a soberana permitiu sua saída.
— Mais tarde quero notícias sobre os relatórios de Faenis.
— Como desejar. — O Guardião deixou o local olhando para a pensativa soberana. Sabia que logo grandes acontecimentos abalariam Vespaguem.
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O cair da noite e o nascer do sol são dois fatos inevitáveis e corriqueiros que norteiam o início de um novo dia. Nesse eterno e rotineiro ciclo, outra manhã começava normalmente na sede dos Caça-contratos.
Esfer ainda ajeitava os últimos preparativos antes de sair quando uma inquietude tomou uma das alas do esquadrão, causada pela presença de um curioso visitante.
Alguns membros começavam a se aglomerar atrás da porta onde Teslan e o recém-chegado conversavam. Olfiel, Zifria e Cão, este último por motivos aterradores, espiavam, porém, sem conseguir ouvir absolutamente nada.
— Esse… é… o namorado do Teslan? — indagou Zifria, incrédula.
— Ouvi algum tempo atrás de Calisto, mas não o conhecia — respondeu Olfiel, à procura do melhor ponto para observar.
— O que estão fazendo? — Esfer media o tom das palavras, assim como os demais.
Em meio a tudo isso, Cão estava desolado, não conseguia falar nada. As palavras que ouviu no dia anterior o atormentavam mil vezes mais do que qualquer maldição de Fira. Não sabia no que acreditar, receoso caso Teslan tivesse segundas intenções com a recente aproximação.
— Não fazia ideia. — Zifria tomou a dianteira, se agachou e passou a observar pelo trinco da porta.
Olfiel virou o rosto e fez um semblante de desentendida.
— Nossa… assim vai seduzir os novatos.
— Calada, sua musculosa.
— Olhe como fala comigo, sua víbora.
— O que está acontecendo aqui? — disse Calisto ao chegar, sem moderar as palavras.
Ela pouco sabia o que ocorria na unidade, em virtude das atividades particulares indicadas pelo mestre Latrev, que nos últimos dias a levava a constantes preocupações.
— O tal Leden está aqui — comentou Olfiel.
Zifria, que espiava pelo trinco, afastou-se da porta e aproximou o dedo indicador da boca, pedindo silêncio.
— Alguém do nível dele não deveria ser tão descuidado.
A porta subitamente abriu e fechou. Um Demônio alto, claro, com vestes cinzentas e um colar castanho que exibia o dente de uma besta, saiu, mas manteve as costas escoradas na porta e uma das mãos sobre a maçaneta. Teslan, que ainda estava no sofá, mal sabia que era impedido de acessar novos ares.
— Perderam alguma coisa? — perguntou Leden.
Esfer cobriu o rosto com uma das mãos antes de espiar Olfiel. “Acharam mesmo que ninguém perceberia essa bagunça?”.
— Talvez… — Zifria forçou um sorriso, constrangida por xeretar.
— Calisto, não esperava que você, uma famosa assassina, gostasse de intrigas.
— Leden, sabe muito bem que não estava espiando. — Ela era orgulhosa demais para explicar uma situação tão vergonhosa, mesmo que não estivesse envolvida. — O que veio fazer aqui afinal? Por acaso os Oradores finalmente te expulsaram?
— Vim apenas conversar — alegou, com um sorriso no canto da boca e o tom repleto de malícia.
Surpreendidos com a resposta, Calisto percebeu que ela e Cão, ainda desorientado, eram os únicos mais adiantados. Os outros haviam recuado cinco ou seis passos.
Nesse momento, os dois se entreolharam.
“Ele veio para aquilo, não é?”, pensou Cão.
“Ele sem dúvidas veio para aquilo”, pensou ela.
Calisto encolheu o nariz e se inclinou para trás.
— Desprezível…
— Vejo que tem andado ocupada. — Leden observou todos os presentes.
— E você continua irritante como sempre.
A maçaneta começou a ranger. Era Teslan na porta, impedido de sair pelo parceiro. Desconhecia a agitação do outro lado.
— Nossa conversa acaba aqui. — Leden entrou novamente no cômodo antes que a assassina perdesse a paciência.
Calisto que não tinha nenhum interesse no assunto desde o princípio, saiu, furiosa. Os demais também retomaram os postos.
Não demorou para Olfiel ir ao encontro de Cão, para partirem rumo ao outro lado da Grande Barreira. Se surpreendeu com a disposição do novato, mal sabia a veterana, que Cão queria ficar o mais longe de Teslan devido às palavras ouvidas no dia anterior, que desde aquela manhã martelavam sua cabeça.
O clima da unidade aos poucos retornava à normalidade. Esfer, agora sem empecilhos, se reuniu com Barock e Galezir. Uma nova missão os aguardava.
O trio partiu da sede do esquadrão e percorreu um percurso sinuoso e traiçoeiro entre as apertadas ruas do Fosso dos Enjeitados, para desempenhar seus serviços para Artag, seu contratante temporário.
Levaram pouco tempo para alcançar o destino, o mercado negro. Estavam em um agitado subúrbio com ruas estreitas constituído basicamente de um amontoado de lojas com produtos de origem duvidosa, destinados às mais variadas naturezas.
Após deixarem para trás um mural que exibia o anúncio de alguns Demônios procurados no império e suas respectivas recompensas, não demorou para avistarem o mercador, algo habitual para Barock e Galezir, nos últimos dias.
Artag era um Demônio moreno, franzino e de meia-idade. Seus movimentos calculados indicavam sua familiaridade com os negócios, os quais prosperavam muito bem no momento. Ao perceber a chegada dos Caça-contratos, os recebeu com um sorriso no rosto.
— Vamos, entre, tenho ótimas notícias — disse o mercador para Barock, enquanto entrava no escritório.
O Caça-contrato estranhou a conduta do mercador, que costumava mostrar uma postura mais enigmática.
— Claro, do que se trata?
— Parece que os ventos da boa fortuna estão a meu favor.
— O que você está aprontando agora? Espero não passar por apuros como da última vez.
— Imprevistos sempre acontecem. — O mercador gesticulou com as mãos como se fizesse pouco-caso da situação. — Isso já ficou para trás e os negócios não param. Estou prestes a realizar um grande empreendimento.
— Fico feliz por você — falou o Caça-contrato, sem esconder sua indiferença.
— Anime-se, caso eu conseguir ser bem-sucedido, o recompensarei pelo outro dia.
— Assim espero.
— Tenho certeza que você terá uma grande surpresa.
— Estou curioso, pretendo saber mais sobre isso em breve.
— Até que isso ocorra, vá ao trabalho, os planos mudaram e não precisarei de sua escolta hoje. Pegue seus colegas e juntem-se ao restante da guarda. — Um pequeno sorriso surgiu nos lábios do mercador. — Uma carga valiosa acabou de chegar.
O servo prontamente atendeu às ordens. Não era a primeira vez que os veteranos reforçavam a segurança do comércio, patrulhando entre os vendedores e atendentes, que com frequência eram substituídos. Artag possuía vastas lojas, algumas eram amplas construções que exigiam grande mão de obra, trabalho este desempenhado por Impuros, como forma de baratear os custos.
Um cartaz que anunciava que algumas vagas estavam abertas chamou a atenção de Esfer. Perto dele, Galezir, despreocupado, se apoiou em uma das colunas de sustentação com um ar preguiçoso.
— O que está fazendo aí? Desgraçado — perguntou Esfer.
— Vigiando… e coisas assim — respondeu Galezir, desviando o olhar.
— Devia tomar mais cuidado. Se você fizer alguma besteira, não quero problemas para o meu lado.
— Fale isso para aquele desmiolado.
Esfer olhou ao redor, mas não encontrou Barock. O procurou com olhos atentos em meio à intensa movimentação do comércio. Após se esgueirar pelos corredores que pareciam menores com o intenso fluxo de clientes, avistou o veterano dentro de uma área isolada, em frente de um balcão de madeira, onde várias armas estavam postas.
O grandalhão portava uma espécie de espingarda rudimentar que, apesar de lustrada, mostrava as marcas de dias conturbados. Esfer mostrou o emblema dos Caça-contratos e adentrou o espaço que deu forma a um verdadeiro arsenal escondido entre as lojas e tendas. Na sequência, um estrondo atabalhoado soou pelo armazém e uma lata rodopiou no ar quando um disparo do Demônio sorridente assustou os presentes.
— Eu vou levar — disse Barock para o atendente.
— Endoidou de vez? Seu desmiolado — falou Esfer, ao se aproximar.
— Não seja chato. Que mal há em aproveitar o tempo para fazer algumas aquisições. Tenho certeza que Artag não se importa que eu gaste meu dinheiro por aqui.
— Guarde essa coisa antes que exploda a cabeça de alguém.
— Por quê? Isso te assustou? — O Demônio balançou a arma na frente de Esfer em um gesto provocativo. — Até há pouco tempo também nunca havia visto algo assim, certamente a fama dessas belezinhas cresce a cada dia. Não é atoa que os negócios de Artag estão tão bem.
— Isso não importa. — Esfer o empurrou. — Apenas não cause confusão. — pediu, antes de se afastar com passos brutos e rápidos.
Com o passar das horas e o término de seu turno, o trio partiu para a base dos Caça-contratos. Durante o retorno, Esfer teve a impressão de que o caminho parecia ainda mais longo. Assombrado pela sensação de que tudo relacionado a sua antiga vida era agora engolido por uma sombra negra e densa.
Após passar rapidamente pelos portões de entrada, encontrou seu colega. Cão estava na sala de recreação, o grupo que acompanhava neste dia os Coletores, fora da barreira, acabava de regressar.
— Voltaram cedo — disse Barock se aproximando da mesa de Olfiel, enquanto via Galezir deixar a sede mais uma vez, na companhia de Esquerdo. — Como foram?
— As coisas andam mal para os Coletores — comentou Teslan. — Parece que os achados estão cada vez mais escassos.
— Sim, já não há muita coisa para explorar por aqui. — Olfiel apoiou as costas na cadeira, com um ar despreocupado.
Cão e Esfer atravessavam o salão quando uma nova agitação foi formada na porta de entrada, era Calisto. Estava com o olhar de uma assassina e avaliava todos os presentes.
— Barock e Olfiel, parados aí! — ordenou Calisto.
Ela agarrou Teslan pelo braço e o puxou na direção da mesa dos dois.
Olfiel levantou da cadeira.
— O que está acontecendo?
— Alguém pare essa louca! — pediu Teslan, que apenas conseguiu se soltar já perto da mesa, com os demais.
— Necessito de ajuda, obtive do mestre da unidade aval total para escalar uma equipe, porém o tempo urge.
Teslan deu um passo para trás.
— A mais poderosa do esquadrão necessita de ajuda?
— Só pode ser problema dos grandes. — Barock acariciou com uma das mãos sua mochila de ferro.
— Exijo a cooperação dos três… e de vocês aí também — complementou Calisto referindo-se a Esfer e Cão que ainda saíam.
As ordens foram passadas pelo mestre Latrev e estavam diante de sua temporária comandante, recusar não era uma opção. Desse modo, foi formada a equipe que auxiliaria Calisto em sua longa missão que perdurava desde o início de suas atividades no esquadrão. O assunto em questão era confidencial, inclusive para os demais Caça-contratos. Teslan, Barock e Olfiel eram exceções. Porém, a necessidade de urgentes medidas, arrastou Esfer e Cão, propriedades de Teslan e Calisto, para uma repentina incursão que acreditavam envolver grandes riscos.
Rapidamente organizaram os equipamentos, preparando-se para qualquer tipo de adversidade. Alcançar a superfície através dos elevadores de carga que abasteciam o Fosso foi somente a primeira parte do percurso. Guiados por Calisto, o caminho percorrido até o destino do grupo passou por ruas apertadas, vielas escuras e becos traiçoeiros. O trajeto os levou às proximidades um local imenso que era ocultado pela pobreza das ruas, estavam diante de uma rota que mais acima daria na entrada de uma favela formada por um conglomerado de cortiços, lar de uma colônia de Impuros, os quais se estendiam por túneis subterrâneos, muito além do que os olhos podiam alcançar. Ambiente perfeito para realizar emboscadas e repelir forasteiros.
Ao dobrarem em um novo beco, chegaram em uma ampla e modesta construção. Um ponto estratégico. Lá o informante de Calisto os aguardava. Assim como a colega, era um Demônio-predador. Ele ostentava um porte físico digno de um habilidoso guerreiro e exibia uma postura imponente, marcada por profundas olheiras que se destacavam em sua face morena.
Os dois trocaram algumas palavras em particular enquanto os demais se entreolhavam, inquietos.
— Parece que as coisas ficarão feias — alertou Barock.
Olfiel se voltou para a imensidão de antigas e apertadas construções.
— Eu tenho certeza, isso não vai prestar.
— Para Calisto, que sempre age sozinha, nos reunir… só mostra que nos envolvemos em uma grande enrascada — concordou Teslan.
Nesse momento, Esfer soube que estava prestes a encarar uma ameaça maior do que qualquer outra vista antes em Vespaguem.