Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume II – Arco IV

Capítulo 47: O Messias, ato I

Gritos ecoaram do corredor à frente.

Em alerta, escondi-me atrás de alguns escombros, preparando meu mangual para um possível confronto. Com cautela, observei a situação através de uma pequena abertura.

Eram outros competidores. Dois jovens: um ruivo mais baixo e uma mulher de cabelos negros e cacheados. Aparentemente, haviam sido pegos pela parede giratória do trigésimo terceiro andar e retornaram ao ponto de partida.

— Ugh... Estávamos quase lá. Você está bem, Circe?
— Na medida do possível. — Ela se levantou, recobrando a compostura.
— Vamos tentar de novo. Dessa vez, vamos conseguir.

O menino vestia o brasão de Salacia e a outra, o de Apollodorus. Dois heróis de cidades diferentes, trabalhando juntos. Que curioso. Era um perfil e tanto. Para confiarem um no outro assim, deviam ser ingênuos.

— Esperem! — os chamei, e eles se alarmaram.
— Quem é você?!

De imediato, desarmei-me e andei para fora da sombra.

— Não tenho intenção de atacá-los. Sou Kosmo de Vertumnus. Vocês também estão perdidos?
— O que isso tem a ver com você, vertumnita?
— Fica tranquila, Circe. — O pequeno tomou a frente. — Kosmo, certo? Eu sou Theseus de Salacia, e esta é Circe de Apollodorus. Também não buscamos conflito. Só queremos encontrar uma saída, e acredito que será mais fácil se não estivermos sozinhos. Que tal vir conosco?
— Theseus!!
— Hehehe! Circe, deixa isso comigo!

Aqueles dois eram pessoas boas de coração. A princípio, não faziam questão de alcançar Messias, apenas de garantir a própria sobrevivência e preservar um posicionamento pacífico. Tomei proveito disso.

Fingi inocência e cumplicidade para torná-los mais fáceis de usar a meu favor. Pessoas como eles seriam facilmente quebradas na Corte dos Heróis. Menos problemáticas do que um Heracles ou um Paris, pelo menos.

Além do mais, com a ajuda deles, eu acharia meu irmão com mais facilidade.

Contudo, os dias passaram, e a possibilidade de ele ainda estar vivo me pareceu menos real. Pensei em desistir e seguir com Theseus e Circe. No fim, eu só precisaria alcançar Messias e repetir o processo até dar certo.

— Está preocupado? — Theseus me perguntou, enquanto comíamos da ração partilhada. Por sorte, o estoque ainda estava na metade.
— Sim.
— Com ele?

Assenti.

— O nome dele é Hector, não é? Ahhh, eu sei como é. Eu também tinha um irmão mais velho. No seu lugar, também estaria desesperado, procurando por ele para ter certeza de que estava bem.
— Você já precisou machucá-lo?
— Sim.
— Entendo.

Tentando fazer contato visual comigo, Theseus tomou minha mão e deu uma risadinha.

— Não desista, Kosmo. Estamos com você.
— Obrigado.
— Sabe, a Circe pode ser um pouco desconfiada, mas está começando a te aceitar melhor. Quando isso acabar, todos nós vamos sair desse labirinto juntos!
— E depois? — perguntei, quase sem pensar.

Ele piscou, confuso.

— Depois?
— Quando sairmos do labirinto... O que você vai fazer?
— Eu não sei. — Ele deu de ombros. — Nunca pensei tão longe assim. Achei que morreria antes. E você?
— Também não sei.
— Bom... — Ele inclinou a cabeça, deitando-a no meu ombro. — Se quiser minha companhia, acho que podemos descobrir juntos.
— Será que é tão simples?
— Talvez seja. Se houver dificuldades, a gente se adapta. Olha o quão longe chegamos. Além disso, Arcadia é tão grande... deve haver um lugar onde possamos viver. Tenho certeza. Se depender de mim, eu já fiz minha escolha.
— Que escolha?

Dessa vez, ele me olhou diretamente nos olhos.

— Vocês.

Eu não entendia como ele podia sorrir ou ter esperanças. Talvez porque, há muito tempo, eu tenha perdido essas coisas.

A luz de Theseus fazia minha alma congelada derreter. Foi a primeira vez que alguém me tratou com tanto afeto e gentileza, sem esperar nada em troca. Ninguém nunca afagara minha cabeça do jeito que ele fazia.

O mundo que ele via era diferente do meu. Eu queria aceitar uma nova esperança de coração aberto, como ele, mas para mim parecia até uma brincadeira de mau gosto. Eu era um criminoso e não merecia essa luz.

Para eles, eu não era um utensílio, nem uma coisa quebrada precisando de conserto, então eu me perguntava: o que, de fato, eu era?

Certo dia, o questionamento escapuliu da minha boca sem que eu me desse conta. Circe, sentada ao meu lado em frente à fogueira, respondeu:

— Um humano. Você é um ser humano como qualquer outro.

Ela se mostrava mais amigável e constantemente me fazia perguntas. Theseus havia acabado de comer e dormia ao meu lado, coberto com a minha capa.

— É a resposta mais óbvia — eu complementei.
— Sim. É óbvio, não é? E, ainda assim, para gente como nós, às vezes é difícil lembrar disso.
— Também é assim pra você?
— Quem sabe. Vou deixar essa para você pensar. Eu não gosto de falar sobre mim.
— Que misteriosa.
— Você não viu nada.
— Ohh.
— Mas, algum dia... eu gostaria de estudar a asa da qual você me contou. Se ela é tão horrível assim, quero examiná-la com meus próprios olhos.
— Garanto que não há nada de bom em ver uma asa deformada.
— Desculpe-me por desmentir os preceitos clericais que enfiaram na sua cabeça, mas tenho propriedade para dizer que diferenciações como essa são perfeitamente normais.
— Diferenciações?
— Uma diferenciação é uma possibilidade na variabilidade de características. É verdade que, durante a Era do Ouro, nossos corpos foram remanejados estruturalmente para serem belos e perfeitos. Mas o que é “belo”? E o que é “perfeito”? Não são apenas conceitos criados com base nos valores de alguém? Se uma pessoa com deficiência é considerada “imperfeita”, então a primeira fórmula de Hermes Trismegistus também é imperfeita.
— Você não tem medo de ser presa?
— Se eu não tivesse, não estaria aqui.

Nós rimos.

Logo depois, ela pegou um longo pergaminho assinado com seu nome, sentou-se ao meu lado e o desenrolou, explicando:

— Veja bem. Desde o evento da cisão, os seres humanos continuaram a se reproduzir e foram sujeitos a centenas de milhares de estímulos. Será que todas as características herdadas pela alquimia permaneceriam completamente inalteradas, mesmo após séculos?
— Como você disse da outra vez, o produto de uma fórmula alquímica é contínuo. Não é imutável.
— Exato! Hã, bem... isso é uma mera especulação, mas você entendeu onde quero chegar. Tem mais coisa, deixa eu ver aqui...
— Está me mostrando tudo isso, só para me consolar?
— Está funcionando?
— Vou deixar essa para você pensar.
— Que misterioso.
— Você não viu nada.

Estava tudo bem em me voltar contra o meu destino, se fosse por esses dois?

Por me aceitarem como eu era, sem tirar nem pôr, eu pude me sentir vivo, livre da sensação constante de tentar respirar debaixo d’água. Era como inspirar o ar puro de uma colina, mesmo naquela torre escura, fechada e úmida.

Ao lado deles, meu dever como o gêmeo sacrificado já não parecia tão essencial. Eles eram diferentes do povo que me molestou, aqueles que nunca me deram uma chance de ter uma vida normal entre eles.

Por isso, eu nunca soube o que era ter alguém que me chamasse pelo nome com tanta brandura e despretensão. Foi então que percebi o quão sozinho fui a minha vida inteira. Isso me entristeceu... e me encheu de alívio.

Eu não sabia o que significava estar em um “relacionamento” ou ser um “enamorado”, e não me parecia algo viável nas nossas condições atuais, mas... ainda assim, aceitei o pedido deles com um sorriso. Eu queria experimentar.

As últimas palavras do meu irmão agora faziam mais sentido.

"Você... é tudo o que eu tenho. Você é tudo o que eu sempre tive."

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EMBLEMA XXXIV
Ele é concebido nos banhos e nasce no ar, mas quando fica vermelho, caminha sobre as águas.

"A Criança é concebida no banho,
nasce no ar brilhante e, quando está vermelha,
vê as águas sob seus pés.
No alto da montanha está radiante quem deveria
ser a única preocupação dos sábios.
É pedra e não é, e quem a tiver será feliz,
se Deus lhe conceder essa nobre dádiva dos céus."

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A Santíssima Corte dos Heróis

Hector de Vertumnus, o Comprometido
Patroclus de Angerona
Castor de Carmenta
Ganymede de Carmenta
Kosmo de Vertumnus
Circe de Apollodorus
Theseus de Salacia

No monumento do Anfiteatro, o nome de Hector foi gravado em primeiro lugar.

Eu não tinha palavras. Mesmo sem mim, ele foi eleito o vitorioso, chegando antes mesmo de Patroclus de Angerona. Nós três tivemos sorte de chegar enquanto ainda havia vagas. Restava apenas a oitava.

Seria eu o problema? Será que eu era o que atrasava meu irmão? ... Pare com essa bobagem, Kosmo. Diante das circunstâncias, metade das minhas preocupações se dissipavam. A relação entre ele e o Filho de Trismegistus me seria útil.

Mas a mudança no elenco, com exceção de Hector e Patroclus de Angerona, me deixava inquieto. Houve um erro na contagem de participantes devido à revelação tardia de Castor de Carmenta como um duplo.

Para corrigir essa irregularidade, foi necessário que o segundo colocado lutasse contra o comprometido diante da chegada do Filho de Trismegistus. Dessa forma, Patroclus, um dos concorrentes mais fortes, foi derrotado.

Castor e Pollux de Carmenta foram remanejados para o segundo e terceiro lugar, respectivamente. Achilles de Angerona preencheu a oitava e última vaga.

Terumichi Kinjō também havia mudado desde a última vez. Estava mais acovardado e depressivo, talvez devido a seu comprometido ter uma personalidade menos simpática.

Como eu, Theseus e Circe havíamos conversado com antecedência, decidimos não competir. Nesse antro de lobos, era melhor expormo-nos o mínimo possível, ou daríamos ao inimigo uma arma contra nós.

Ao lado do Filho de Trismegistus, a performance de Hector brilhava ao máximo. Como esperado, dar a ele um “passarinho” renovou suas energias e o incendiou. Nem mesmo Achilles de Angerona foi páreo para ele.

Num futuro próximo, ele perderia esse passarinho. Afinal, o preço a ser pago à Correnteza Eterna já havia sido prenunciado. Era por isso que ele queria mantê-lo próximo de si, na esperança de salvar sua vida através do único desejo.

No entanto, nas profundezas do abismo, os pássaros têm fome e sede. Tarde demais, ele descobriria que esse desejo seria em vão. Um sacrifício não pode ser reivindicado. O tempo de vida daquele menino foi apenas estendido.

Eu vi com meus próprios olhos. Do outro lado do céu, em Agartha, Terumichi havia morrido. E também não havia como trazê-lo de volta à vida. No fim dessa história, Hector seria separado dele para sempre.

Eu tinha certeza de que ele entendia isso, mas continuava persistindo, sem nunca desistir.

A vitória contra Ganymede foi o ponto de virada para que sua mudança se consolidasse. Então, chegou a vez de Castor de Carmenta, cujo jeito pomposo nunca me enganou. Era uma questão de tempo até que nos causasse problemas.

No quarto e último duelo, ele pretendia assassinar Hector, em vez de arrancar-lhe a máscara. Antes que obtivesse sucesso, o Filho de Trismegistus interferiu na luta, e o uso de seu poder latente causou a morte dos dióscuros.

Com a vitória indigna do comprometido, deu-se início à Reavaliação de Dignidade. O primeiro que chegasse ao fim do labirinto tomaria o posto de vencedor.

Eu permaneci onde estava. Se deixássemos Hector avançar, as coisas correriam conforme o planejado. Foi o que combinamos. Theseus e Circe eram inofensivos, e eu confiava que ficariam ao meu lado, até que...

... Circe se levantou e entrou no labirinto.

— Está encerrada a Reavaliação de Dignidade! — declarou o Imperador das Rosas pelos alto-falantes. — Hector de Vertumnus está oficialmente reprovado. Circe de Apollodorus é a atual vencedora da Corte dos Heróis. Em nome da Correnteza Eterna, consagremos o novo comprometido!

Ela se voltou contra nós, revestida de prepotência. Disse que queria mudar aquele mundo desde suas fundações e garantir que eu e Hector não desejássemos nada além da salvação do mundo.

Do cume do altar, seus longos cabelos eram propelidos pelo vento. Tanto eu quanto os outros três nos acuamos.

— Desde o início, eu e Theseus fomos apenas suas ferramentas — apontou ela. — A trégua era para que não fôssemos mais um empecilho na obtenção do Messias de seu irmão.
— Está errado! Kosmo nunca faria isso!! — exclamou Theseus. — Kosmo, diga a ela que isso é mentira!!
— Vá em frente, Kosmo — ela ordenou, em tom de chacote. — ... Haha. Você não pode, não é? Porque o desejo de vocês... não é a salvação do nosso mundo.
— Circe, você queria me testar? — perguntei.
— Eu sou a bruxa herdeira do trono de Apollodorus. Prometi ao meu povo que lutaria pela sobrevivência da espécie humana. Como heróis, só nos cabe um desejo: salvá-la. Qualquer outra coisa está fora de cogitação. Enquanto esconder a verdade de nós e não nos disser o que pretende, eu não me darei o luxo de colocar o nosso futuro em risco.

Como eu diria a verdade? Como?

— Sendo assim — Terumichi interrompeu —, deixem que Circe seja meu comprometido. Se todos temos um desejo em comum, está tudo bem assim. Nós não podemos lutar. Dissemos que sairíamos desse lugar juntos, não foi? ... Não foi?!

Eu achei que estivesse no controle e, em um piscar de olhos, tudo foi arruinado.

Permitir que Hector se prendesse emocionalmente a alguém se revelou uma faca de dois gumes. Ele não aceitava perder seu posto e se convenceu de que lutaria para que seu desejo impossível não caísse por terra.

Tentamos contê-lo fisicamente, mas ele reivindicou seus direitos perante o Anfiteatro, e fomos proibidos de tocá-lo ou interferir na integridade de suas ações. Descumprir as ordens resultaria em nossa desclassificação.

Então, ele lutou e venceu. Inabalável, iluminado pela estrela da vitória.

Eu não chorei.

Já que causei esse dano, eu não tinha o menor direito de chorar. Desde o momento em que abri meu coração para essas pessoas, já devia saber que essa felicidade era mundana e não duraria para sempre.

— Aberração! — Gritos e batidas vinham do outro lado da porta.
— Fora, aberração! Fora, fora!
— É uma cria de espíritos malignos!
— Fora! Para longe da Terra Santa!
— Como pretende mostrar restituição por isso?

Nessas horas, tudo o que eu podia fazer era me encolher e tampar os ouvidos até passar.

Eu não queria ver. Não queria ouvir. Em um dado momento, esqueci a morte dela e... quando me lembrava, entrava em choque.

Minhas memórias ficavam cada vez mais confusas. Eu não sabia até onde minha sanidade aguentaria. Mas faltava tão pouco. Eu não podia desistir. Quando tivesse certeza de que Hector alcançaria Messias, então... eu poderia morrer.

Sim, essa foi a razão para eu ter nascido neste mundo. Sempre foi essa, e nenhuma outra. Eu não tinha por que desviar do caminho que foi traçado para mim. E-Eu morreria, e meu papel chegaria a uma conclusão. A história acabaria...

Cerca de uma semana depois, voltei a ouvir batidas na minha porta. Dessa vez, eram reais. Era o Filho de Trismegistus, que veio me procurar às pressas. Eu nunca tinha parado para ouvir sua voz com muita atenção.

Ele não encontrava Theseus. De acordo com as máquinas, ele não havia retornado ao quarto desde a última noite. Mas, Theseus?

... Quem era Theseus?

Procuramos pelo Anfiteatro inteiro, até que cheguei ao laboratório de Circe, destrancado. Em silêncio, entrei. Um menino de cabelos ruivos dormia sobre uma mesa, ao lado de frascos e uma folha de papel.

Seu rosto me era familiar. Aproximei-me para acordá-lo, mas seu sono era profundo. Ele estava pálido, e sua mão, fraca. Com cuidado para não despertá-lo, peguei o papel e li.

 

“Para Teru e Kosmo.

Obrigado por me acharem. Me desculpem pelo que fiz.

Muitos motivos me levaram a isso. Mas talvez o principal seja que me desesperei com o simples ato de viver. Eu sempre soube que o nome que conquistei não era a minha salvação, mas não tenho forças para suportar uma vida sem as pessoas preciosas para mim.

Por isso...”

 

Não consegui lê-la até o fim.

Devido ao lapso em minhas memórias, não estive ao lado de Theseus quando ele precisou de mim. Eu o abandonei. Tenho certeza de que ele sofreu pela morte de Circe tanto quanto eu, e eu o deixei completamente sozinho.

Agora, eu o havia perdido também.

Conforme as lembranças voltavam ao lugar, mais a dor me sufocava. Quando me dava conta, os móveis do meu aposento estavam esparramados, quebrados. Minha garganta doía de tanto gritar. De tristeza ou raiva, eu não sei dizer.

Caí de joelhos, rodeado pela destruição. Minhas mãos trêmulas seguravam os pedaços rasgados da carta, como se tentassem uni-los, mas era inútil. Não havia mais volta. Este mundo não tinha mais conserto. Não servia mais.

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