Volume II – Arco III
Capítulo 43: O Presságio
Era tarde da noite, e os grilos cantavam nos arredores da cidadela.
O sono não vinha de jeito nenhum. Enquanto estive no Kunstkammer, meu corpo físico permaneceu inconsciente por duas semanas consecutivas. A última coisa que eu sentiria, a essa hora, seria vontade de dormir.
Ninguém me deu explicações sobre o que aconteceu durante a Reavaliação de Dignidade. Thes pediu que eu retornasse ao meu quarto para descansar. Não tive sinal da presença de Kosmo e Circe.
Enquanto me sentava na cama, o senhor Kaeru veio saltitando até o meu colo. Ele estava gordinho e com os olhos esbugalhados, e vê-lo assim, bem-cuidado, me deixou feliz.
— Ei, carinha. Sentiu minha falta?
Deu um coaxo.
Na minha ausência, meus amigos se encarregaram da limpeza e manutenção do viveiro dos anuros, então estava tudo limpinho.
— As coisas mudaram, não? — perguntei. — Foi mal por ter ficado longe.
Pelas piscadinhas que dava, percebi que estava com sono. Manuseei-o e o deixei junto às outras rãs adormecidas. Desliguei as luzes, calcei as sandálias e saí para dar uma volta.
Fazia tempo que eu não escutava o som da água corrente do Anfiteatro, o cheiro do ambiente e aquele vento frio que vinha das aberturas para a área externa. Era relaxante.
Mas, em meio a essa calmaria, não conseguia deixar de retornar àquele momento.
“Não há mais um mundo para aceitares.”
“Esqueça esse nome. Eu o deixei para trás quando nos separamos.”
“Você nunca aceitaria tudo em mim.”
O mundo que vejo é diferente do que as outras pessoas enxergam. Do outro lado, reuni-me com Tsubasa, a quem Hermes Trismegistus — ou melhor, Michael Maier — se referiu como a Correnteza Eterna.
Eu herdei uma parcela do poder do Criador. Para ser mais exato, tornei-me consciente de um fragmento incompleto dele que já havia despertado em mim, e, graças a isso, adquiri conhecimentos que antes não possuía.
Minhas capacidades ainda eram limitadas. Eu não tinha a autoridade de um deus, mas fui reconhecido como seu receptáculo. A restauração de sua completude era o objetivo final por trás da Corte dos Heróis.
... Não sei ao certo como ou quando os planos para mim começaram, mas, no meu oitavo aniversário, o Amaranto se manifestou no medalhão que meu avô me deu de presente e, por meio disso, conheci Hector.
Isso foi antes de eu conhecer Tsubasa e qualquer coisa relacionada à existência de Arcadia.
Por um instante, cheguei a pensar que esse encontro impossível pudesse ter a ver com o fato de eu, dentre todas as pessoas possíveis e imagináveis na Terra, ter sido escolhido como o Filho de Trismegistus.
É melhor dar valor às tuas lembranças, ou terás mais arrependimentos mais tarde. Estas foram as últimas palavras que ouvi antes de ser lançado no forno cósmico, uma fortaleza mecânica que o Banco de Dados Psicalquímico reconhecia como “Atanor”.
E então, acordei nos braços de Thes.
Contudo, eu sentia falta de algo. Era como se tivesse sonhado com algo importante e esquecido. Por mais que me esforçasse para lembrar, nada vinha. ... Que estranho. As lembranças anteriores ainda eram vívidas para mim.
Foi então que avistei uma silhueta passando pelo corredor além dos pilares, sob a sombra da cobertura. Ela tinha uma postura curvada e andava mancando, apoiando-se onde podia. Tropeços e grunhidos de dor.
Era Hector. Mas para onde ele estava indo?
ᛜᛜᛜ
O segui pelas escadarias até o eirado, onde as correntes de ar batiam com mais força do que nos níveis inferiores.
Quando o alcancei, ofegante, voltei meu olhar para onde ele estava e dei um sobressalto. Hector se punha à beira do precipício. A ventania balançava seus cabelos, e eu podia ver claramente suas cicatrizes.
Nas condições em que estava, se ele desse mais um passo e caísse, não teria energia suficiente para abrir as asas e voar.
— Hector?
Ao meu chamado, ele estremeceu, mas continuou virado de costas para mim.
— O que está fazendo? — continuei. — Volte. Saia daí. Por favor.
Aproximei-me, a poucos metros de sua posição. O sopro gelado parecia tentar me afastar, mas eu não podia abandoná-lo ali. Após alguns segundos, que pareceram durar uma eternidade, segurei seu pulso.
No susto, ele se contraiu. Na verdade, eu não tinha certeza se foi pelo susto ou pela dor. Seus curativos pareciam velhos. Alguns tinham manchas de sangue devido ao esforço físico. Se eu o deixasse assim, as feridas acabariam infeccionando.
A Lua se recolhia, timidamente, para além do horizonte. As cidades da Terra cintilavam, e quase me esqueci de que não eram estrelas de verdade. Sob essa infinidade de luzes, nós nos sentamos sobre a bancada da plataforma.
Usei meu medalhão para curar as feridas de Hector, como costumava fazer, e o ajudei a retirar as faixas sujas. Ele abria e fechava as falanges, movia os ombros e braços, sem mais agonizar. Enquanto o fazia, eu o olhava nos olhos.
Ele pretendia mesmo tirar a própria vida, escondido de nós?
— Eu senti saudades — eu disse. — Estou feliz em te ver de novo.
— ...
— Ei, Hector, você já teve algum sonho que parecia real, apesar de ser impossível?
— Acho que já.
— Você se lembra como foi?
— Não.
— Eu tive um desses antes de acordar — afirmei, olhando para o céu. — Eu te encontrava quando ainda éramos crianças. Eu ainda não te conhecia, e, mesmo assim, corri, corri e corri, tentando te alcançar, porque te fiz uma promessa. Achei que você estava ferido, indo para um lugar onde eu não podia te ver, e... eu não queria isso. Mesmo agora, eu não quero. Porque eu amo você.
— E se um dia tivermos que nos separar para sempre?
— Para sempre? N-Não, que besteira. Eu não iria querer estar separado de você para sempre. Seria muito triste. Eu choraria.
— Entendo. Sendo assim...
— Huh?
Nesse instante, Hector se levantou, com uma expressão que eu nunca tinha visto antes.
— Você estava me persuadindo a não duelar. Daí as palavras bonitas.
— O-O quê...? Não. Não é nada disso!
— Eu não vou permitir. Ninguém vai te tirar de mim. Jamais.
— Hector!!
Deu de costas, e bateu em retirada. Enquanto ia embora, ele ignorava meus gritos.
— Hector, não! Não faça isso!! Não solicite um duelo!! Se você fizer isso...!
Os dias que se seguiram foram muito duros. As coisas saíram do controle após a Reavaliação de Dignidade, e a relação entre meus amigos se partiu em pedaços.
Circe abandonou a confiança que tinha em Kosmo e passou a tratá-lo como um inimigo. A ascensão de Theseus ao posto de comprometido só a convenceu de que o grisalho mentia sobre Hector.
Temerosa de que o poder do Messias caísse em mãos erradas, ela não levou em conta um detalhe crucial: Hector poderia tentar reivindicar a posição, e isso nos levaria a um sexto combate pela Corte dos Heróis.
— Está se sentindo ruim? — Thes perguntou, saindo da água e deitando a cabeça sobre a toalha que eu usava para cobrir meu colo.
Pétalas aromáticas foram derramadas no tanque. Enquanto derretiam na água quente e exalavam seu perfume, nós dois nos expúnhamos ao vapor.
— Estou bem — respondi.
— Não está, não. Você está morrendo de preocupação.
— ... Kosmo e Circe não se reconciliam. Tentei dizer a eles que não adianta brigarmos, mas não me ouvem.
— Sei como é.
— O que faremos?
— Circe tem razão. Queira ou não, Kosmo nos contou mentirinhas. Não temos como saber se o mundo estará seguro nas mãos dele e de Hector, porque há uma grande possibilidade de eles pedirem por algo diferente do que prometem. E não é só isso. O fato de eu me tornar o comprometido também a frustrou.
— Por quê?
— Eu não estou alheio à possibilidade de desejar outra coisa.
— O mesmo não vale para ela?!
— Não. Circe certamente pediria pela salvação do mundo. Arcar com essa responsabilidade é o motivo de ela ser quem é. É a única forma de sentir que se redimiu pelo passado. E, por mais hipócrita que isso soe, ela não acredita que outra pessoa vá se entregar ao papel tanto quanto ela.
Engoli em seco.
— O fato é que as ações de Kosmo e Hector são bastante suspeitas. Mas não os odeie. E não odeie Circe. A culpa não é de nenhum deles.
— E-Eu não vou desistir. Eu vou falar com o Hector.
— De novo?
— Sim.
— Está tudo bem se não der certo, Teru.
... "Está tudo bem"? Como assim, "está tudo bem"...?!
— Fui eu quem atravessou o labirinto e tirou o comprometido de Hector. Isso é uma consequência das minhas ações. ... Acho que fiz algo cruel com você.
— Não!! — exclamei. — Isso não é responsabilidade sua!! Você fez o que estava prescrito nas regras. Ninguém foi sacrificado por isso. E, mais, já aconteceu! Se não podemos mudar o passado, ainda temos o futuro, e eles também precisam ver por esse lado! O que importa é que nós cinco continuemos juntos!!
Thes se assustou com a minha mudança de tom. No lugar dele, eu também teria me assustado.
— Desculpa — pedi, escondendo o rosto.
— Você não tem se alimentado nem dormido bem, Teru. — Calmamente, ele passou os dedos no contorno arroxeado dos meus olhos. — Por que você tem que passar por isso? Quem fez isso com você?
Tomei sua mão e a segurei, firme.
ᛜᛜᛜ
Na época em que Tsubasa era importunado pelos nossos colegas de classe na Academia Kinran, eu me sentia impotente. Às vezes, ficava sem saber o que fazer e não saía do lugar, mas não era como se nunca tivesse tentado nada.
Conversei com os coordenadores. Mostrei gravações, mensagens e publicações difamatórias nas redes sociais — provas sólidas de que Tsubasa estava sendo vítima de bullying —, mas nenhuma providência foi tomada.
Eles não se importavam. Os responsáveis por nós não davam a mínima para o que acontecia com seus alunos. Gritei com eles, discuti e fui ameaçado de advertência caso meu "mau comportamento" se repetisse.
Fazer as coisas conforme o prescrito pelo sistema nem sempre dava resultados. ... Não. No lugar em que estávamos, isso nunca daria resultados, pois o que eles realmente queriam era apagar a existência de pessoas como Tsubasa.
Ignorar e ignorar, até que fosse solicitada a saída voluntária.
Eles não eram ingênuos a ponto de não saberem que algum de seus alunos poderia apresentar tendências suicidas. Se algo assim acontecesse, a imagem da escola seria manchada. Seria ilógico não contatarem seus cuidadores.
No dia em que Tsubasa foi forçado a beijar um menino publicamente no refeitório, cheguei em casa e fiz uma ligação para sua família. Eu pretendia expor tudo à senhora Miyashita e dar um fim definitivo àquilo.
Uma ligação não. Dezenas de ligações não atendidas. Eu não podia desistir, então persisti, me rendendo ao som do telefone chamando. O mesmo toque se repetindo, de novo e de novo. De novo e de novo. De novo e de novo.
Então, retornei ao presente.
Hector havia me empurrado e, perdendo o equilíbrio, caí no chão. Eu podia ouvi-lo gritar comigo, mas não entendia o que ele dizia. Era como se o mundo estivesse mudo, como aconteceu nas minhas tentativas passadas.
Quanto mais eu tentava pressioná-lo, pior a situação ficava. Eu não conseguia convencê-lo nem alcançar seu coração. O vínculo entre nós dois se mantinha por um fio. Esse não era o mesmo homem que me abraçou e me beijou antes.
Mas eu não deixei barato. Avancei contra ele e também o empurrei. É claro, eu mal pude tirá-lo do lugar, pois ele era bem mais forte do que eu. Com um semblante de desprezo, ele ignorou meu ato e me deixou para trás.
Por que ele não queria me entender? O que havia de tão ruim em Thes ser o comprometido...?
— Olá? Tem alguém aqui?
Minha voz ecoou pelas escadarias em espiral que levavam à fornalha. De acordo com os fantoches informantes, Kosmo foi visto pela última vez indo para lá.
Sozinho, eu não conseguiria fazer nada. Precisava de ajuda e acreditava que ele era a melhor pessoa para me apoiar naquele momento. Afinal, nossos fins eram os mesmos, ainda que os meios fossem distintos.
A cada degrau, a temperatura aumentava. Não demorou muito até eu começar a suar. Cheguei ao terminal principal, onde um caldeirão fervente fazia o ar se distorcer, e a pessoa que eu procurava estava à frente dele.
Ele tinha em mãos o pergaminho do abutre — a versão original —, junto de outros escritos, e o jogou para descarte.
— Kosmo...! O que houve?!
— O que você quer? — perguntou, virando-se para mim.
O que deu nele para jogar fora algo tão importante? O Pergaminho do Abutre não era um patrimônio clerical?
— E-Eu preciso conversar — gaguejei. — Na verdade, vim pedir a sua ajuda. É sobre Hector.
— Eu já sei. Você quer a minha ajuda para evitar que o sexto duelo aconteça.
— Sim. ... Sim — confirmei, atônito. — Mas eu--...
— É tarde demais, Terumichi. Acha mesmo que conversar comigo vai resolver? Está tudo acabado. Agora, ninguém mais pode parar as engrenagens do futuro em movimento. Nem eu, muito menos você. O que quer que faça será uma perda de tempo.
Suas palavras me atordoaram.
... Tudo acabado? Perda de tempo...?
— Eu não estou entendendo. Só queria compreender mais sobre Hector. Sobre o motivo de vocês insistirem tanto para que ele seja o comprometido.
— Nós, criados pelo Ministério das Profecias de Vertumnus, não somos diferentes dos outros heróis. Não viemos com outro ímpeto senão o de salvar nossos povos. Ele almeja o Messias porque há um desejo que só ele pode realizar.
— Que desejo é esse?
— Já que chegamos até aqui, eu vou te dizer, alto e claro, o que está prestes a acontecer. Hector desafiará Theseus a um combate e vencerá.
— N-Não...
— Sim. É a verdade. Está surpreso? E agora que você o curou, não há nem como adiar isso.
— Eu o curei porque não queria que ele continuasse a sentir dor! Está insinuando que a culpa é minha?!
— Se isso nunca passou pela sua cabeça, então realmente não há mais nada ao nosso alcance.
— É mentira!! — gritei, perdendo a compostura. — Não foi você quem disse? Que havia uma forma de encontrarmos felicidade aqui fora, mesmo que não fosse a que vi no meu sonho? Que, por estarmos aqui, nós podíamos agir? De repente, você não acredita mais nisso?!
Com passos pesados, fui até ele e o agarrei pela camisa.
— Na Reavaliação de Dignidade, você teve coragem de levantar sua mão contra uma pessoa que ama! Hector vai solicitar o duelo? Então por que você não faz o mesmo?! Por que não usa a merda da sua força e o tranca em um calabouço, qualquer coisa?! Eu assumo a responsabilidade com você! Mas não desista, não agora que chegamos tão longe!!
— Eu tentei! Eu tentei tudo o que eu podia!! — exclamou, rangendo os dentes.
quelas gotas escorrendo de seus olhos não eram suor, mas... lágrimas?
— Tentou? Quando?! Mentiroso! Você é um mentiroso, Kosmo!! Desde o começo, você nos usou, nos enganou! Você só mente, seu farsante maldito! Pare de mentir, agora!!!
— Afaste-se! Tire suas mãos de mim! Já chega disso tudo!!
O soltei com violência, e ele se prostrou, chorando.
Era como se eu estivesse olhando para mim mesmo. A mesma pessoa que eu era na escola, alguém que desistiu e depositou as esperanças no “tempo” ou no “destino”, que não mudariam nada sem uma atitude drástica.
A raiva inflamava dentro de mim, e eu mal me reconhecia. Sentia algo explodindo no meu peito. Quando estava prestes a chutar a figura chorosa e patética de Kosmo, uma voz veio de trás de mim, e eu cessei.
— Kosmo é tão inteligente. — Era Thes, que esteve nos escutando escondido. — Ele conhece tudo o que eu não conheço e sabe tudo o que vai acontecer. É quase como se fosse um profeta que prevê o futuro.
— Theseus...?
— No dia da Correnteza Eterna, seu irmão alcançará o Messias. Pensando bem, ninguém precisa de uma bola de cristal para prever isso. Eu não sou como os Dióscuros. E não sou o epítome de um homem absoluto, como Hector. Eu estou destinado a ser derrotado.
Kosmo, visivelmente abalado, tentou se explicar, mas foi interrompido.
— Você só queria nos proteger desse futuro, não é? Eu e Circe fomos soberbos. Como os que vieram antes de nós, abandonamos a nós mesmos para a húbris... Eu estraguei tudo.
— Não, não diga--!
— Obrigado por tentar me salvar. Você é uma das pessoas que eu mais amo no mundo inteiro, Kosmo.
Os sinos da audiência tocaram, e meu coração pulou uma batida.
A Correnteza Eterna rolou os dados. Sem esperar pela minha jogada, ela arrancou de mim todas as peças que eu possuía e me encurralou. Agora, eu não passava de mais uma de suas marionetes, dançando sob seus dedos.
ᛜᛜᛜ
Hey, aqui é o Rafa! Muito obrigado por ler Os Prelúdios de Ícaro até aqui. Considere deixar um favorito e um comentário, pois seu feedback me ajudará bastante!
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios