Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume II – Arco III

Capítulo 41: O Monstro

Sons de estalidos ecoavam. Um cheiro ruim se misturava com o ar denso.

O jovem gladiador mancava, usando suas últimas forças para segurar a espada. Com o corpo coberto de cortes e arranhões, ele desbravava as passagens estreitas e bifurcações do labirinto.

O tempo era precioso demais para ser desperdiçado. Enquanto pudesse respirar, teria de continuar. Passaram-se dias desde que entrara ali, e seus lábios já estavam rachados devido à sede, mas aquela era sua única chance de sobreviver.

Testemunhara coisas terríveis. Havia morte e sangue por onde passava. Era quase como se o "inferno" das histórias e mitos que lhe contaram tivesse tomado forma na realidade. O tormento não parecia ter fim.

Até que se deparou com um salão escancarado, repleto de luxuosidades e maravilhas em seu interior. O sinal demarcava o ponto de chegada. No entanto, já havia alguém lá. Um rapazinho menor, mais franzino.

Tão surpreso quanto ele, o garoto apreciava os arredores, sem perceber a presença do adversário. Talvez não esperasse que mais alguém o alcançasse ali, e por isso não correu imediatamente para a saída. Como ele era ingênuo.

Será que ele já ouviu falar do monstro que vive no fundo do oceano, o Leviatã?

Eu aprendi sobre o verdadeiro significado por trás dele bem cedo. O que as pessoas acreditavam ser uma criatura marinha era, na verdade, um deus imortal que controlava o mundo e punia os transgressores da sociedade.

Ele detinha um poder avassalador. Um ser temível, destrutivo e dominador, sem qualquer traço de misericórdia para quem se pusesse em seu caminho. O destino de seus inimigos era a aniquilação.

Esse era o Leviatã.

Gritos estridentes, exasperados, reverberaram pelo ambiente. Quando a mão do garoto caiu do carpete, bamba como a de um boneco, eles cessaram. Então, arranquei minha espada do cadáver e vi uma poça se formar embaixo dele.

Podia ter sido eu. Se eu tivesse fraquejado, se eu não tivesse sido forte o suficiente, eu teria morrido. Eu era grato por sua ingenuidade, e por seu azar de ser mais fraco do que eu. Bem, para ele, o sofrimento acabou. Agora ele podia descansar.

Apressado, subi as escadas até o altar, onde jazia uma máscara dourada. Ela pertencia a um herói lendário chamado Theseus.

Ouvi falar sobre sua lenda quando ainda era uma criança. Ele matou o monstro em um labirinto e, com a ajuda do fio de novelo oferecido pela virgem Ariadne, encontrou o caminho até a saída, são e salvo.

Porém, eu e ele não éramos a mesma pessoa.

Eu era tanto Theseus quanto o Monstro. O monstro passou a existir como parte de mim. Eu nunca tive uma Ariadne para salvar, nem para aprisionar. Ela seria, afinal, a razão pela qual eu existiria com um novo nome.

Sua função, como meu pertence, era simbolizar o meu valor como indivíduo. No reformatório, aprendi que esse era o destino inevitável de todo objeto de desejo de um homem. Se tornar posse. Era a lei natural das coisas.

— O novo Theseus de Salacia foi nomeado com sucesso — informou o sacerdote ao representante do ministério, na sala ao lado. — MER2340333. Participante nº 40.
— O 40?! Prossiga com o retorno dele à corte de Salacia. Mande-o embora daqui e exija a maior quantia de dinheiro possível em troca.
— Mas, senhor... talvez o nº 40 não esteja preparado.
— Como assim? Não eram vocês os responsáveis por prepará-los?
— A formação dele foi um sucesso, porém, seu estado mental encontra-se fragilizado.
— E você acha que a culpa é de quem? Minha? Agora vá, trate de resolver isso, e rápido. Não temos todo o tempo do mundo.

Eu não sabia exatamente onde estava. Na verdade, nem percebi que a pessoa de quem estavam falando era eu, até ouvir meu número de marcação. Quase respondi com um “presente”, por impulso, mas as palavras não saíam.

Meu corpo estava dormente devido aos anestésicos e curativos. Nem entendia como ainda estava vivo. Agora, eu voltaria... à corte, o lugar onde meu irmão e meu pai estavam. As pessoas que eu não via há quatro anos.

O que será que pensariam de mim? Será que teriam medo?

Quando me olhava no espelho e via aqueles ferimentos, eu me lembrava daquele pesadelo e sentia medo de mim mesmo. Porque eu me tornei algo monstruoso. Já havia perdido a conta de quantas vezes vomitei e chorei de remorso.

Meu pai, governante de Salacia, era um homem viúvo. Ele tentava ser bom e criou a mim e a Pirithous para que tivéssemos uma infância o mais feliz possível, apesar da ausência da nossa mãe.

Graças aos acordos feitos com Juno, os efeitos da fome e da sede em nossa cidade não eram tão severos quanto em outros lugares, mas isso tinha um alto preço.

Lembro que, em um ato desesperado, ele vendeu os projetos dos nossos barcos modificados em troca de fornecimento mensal de água potável e alimentos. A soberania da nossa tecnologia em navegação foi perdida.

Durante os quatro anos que passei longe, o patrimônio se desmoronou e os termos com a capital se tornaram obsoletos. Juno, isolada em seu castelo impenetrável, usava os contratos para explorar ao máximo os recursos da nossa terra.

Da janela da carruagem, eu via as consequências da nossa submissão ao supremo império. O número de pessoas nas ruas havia aumentado. Idosos, até crianças. Mercados vazios, com filas de doentes nos hospitais, vítimas do Declínio.

No fundo, parte de mim queria acreditar que, ao voltar para casa, poderia reviver os dias felizes de antigamente. Mas eu deveria ter imaginado que isso nunca aconteceria.

Eu era um herói. Meu dever era servir ao príncipe Pirithous em sua missão de evitar a decadência total da humanidade. A partir daquele momento, minha razão de viver seria essa, e nenhuma outra.

Por ordens ministeriais, fui removido da minha posição na família real. Eu não era Atalanta, nem uma princesa de Salacia. Portanto, devia cortar os laços familiares e me tornar o receptáculo de Theseus.

Todo mercuria que ascendia em sua jornada precisava apagar qualquer vestígio da identidade anterior para adotar uma nova. O preço da aceitação era a readequação completa; a performance infalível no novo papel.

O que vivemos no reformatório se estenderia até o dia da nossa morte. Caso contrário, restava-nos a reclusão.

Um mês após o início do meu treinamento como herói, Pirithous veio me visitar no cais, perto de onde eu passara a viver. Era o local onde eu costumava assistir ao pôr do sol, já que não tinha mais nada melhor para fazer.

— Ei, eu senti sua falta — ele disse, se sentando ao meu lado.
— De Atalanta? Essa pessoa não existe mais, meu mestre.
— Por favor, esqueça as formalidades quando estivermos a sós. Eu quis dizer o meu irmão gêmeo.
— Seu irmão gêmeo?
— Sim, o meu irmão gêmeo. Você. ... Ahhh, que coisa. Quando éramos uma família, tudo parecia mais simples do que é hoje.

É verdade. Eu vivia pensando em contos de fadas, e em como eu poderia ser um príncipe que salvava princesas. Era tudo tão simples. Tão inocente.

— Mas eu nunca me esqueci do dia em que você disse que me daria forças — continuou. — Eu continuei aqui até hoje porque estive esperando por você.
— ...
— Por isso, tem algo que eu gostaria de perguntar.
— Sim?
— Você aceita ser meu escudeiro na jornada à Torre dos Filósofos? Não um herói qualquer, mas o meu fiel defensor. Eu... só posso confiar esse dever a você, meu irmão.

Com os olhos arregalados, eu rapidamente me curvei diante dele e prestei respeito.

— Se é isso que deseja, então eu, Theseus de Salacia, honrarei nobremente com esse dever até meu último suspiro.
— Obrigado. Posso chamá-lo de Thes?
— É claro! C-Como quiser. — Ele me tirou um sorriso sem jeito.

Podíamos não estar mais ligados fraternalmente, mas Pirithous ainda foi o melhor amigo que eu tive na vida.

Ele e o papai nunca souberam pelo que eu passei, nem dos crimes que cometi, mas Pirithous mostrou ao meu mundo cinzento e ensanguentado que eu ainda podia me apegar às memórias que eu considerava preciosas.

Mesmo que fosse apenas mais um conto de fadas que eu gostaria de contar para alguém, eu queria acreditar que, se nos esforçássemos ao máximo, poderíamos salvar o nosso povo e voltar para casa juntos.

Porque ainda havia algo doce e gentil, mesmo em um mundo como aquele. Algo que eu não precisava tocar com mãos violentas nem destruir. Só isso já era motivo suficiente para eu continuar vivendo.

A administração contínua de hormônios e o trabalho árduo me ajudaram a criar músculos fortes. Passei a ser admirado. Eu levantava os pesos mais pesados e fazia coisas que nem os maiores entre meus companheiros conseguiam.

Não sei se ser o “modelo” era o meu objetivo. Passei tanto tempo tentando me reafirmar, me comparando e me sentindo insuficiente, que percebi tardiamente que não tinha obrigação de provar nada a ninguém.

Eu sempre fui um homem. Nunca tive outra coisa que me guiasse, além das minhas fantasias e das normas de comportamento do reformatório, mas sempre fui um homem.

Nós, os heróis salacienses, comíamos à mesma mesa. Comemorávamos e cantávamos músicas tradicionais quase todas as noites. Ah, também bebíamos cerveja, uma prática culturalmente reservada aos homens.

À noite, havia brincadeiras de mímica e adivinhação. Antes de dormir, contávamos histórias. As minhas histórias assustadoras eram as melhores, deixando todos tremendo e acuados. Eu tinha talento para isso.

A minha casca dura se quebrava, e minhas cicatrizes mais profundas se expunham. Muitas vezes, senti vontade de chorar. De felicidade, claro, porque, depois de tudo, eu ainda podia viver momentos bons.

Meu desejo nunca foi ser um herói, mas compartilhar esses bons momentos com meu irmão, meus amigos e enamorados. Amar, e ser amado. Eu queria que déssemos as mãos uns aos outros, em vez de apontar espadas.

Meu Jardim de Rosas da Sabedoria era só... estar com alguém.

Assim se passaram os anos até a nossa partida. Ao lado de Pirithous, ganhei uma nova família. Cada um deles trouxe algo especial para mim, e me mostraram que eu não precisava enfrentar o mundo inteiro sozinho.

Nos festejos das multidões, nosso navio se preparava para partir. O homem que já foi meu pai me abençoou ao lado do príncipe, como se eu ainda pertencesse à família real. De perto, eu via nele o mesmo olhar triste de anos atrás.

Ao fim da tarde, demos adeus à cidade. A terra firme sumia para além do horizonte que a separava do céu.

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— ... Como pensei. Isso é uma mancha de ouro.

Todos se assustaram.

— M-Mancha de ouro? Declínio?!
— Impossível. Isso é impossível! Esse navio não foi feito para nos proteger?!
— Levem-no ao contêiner. Mantenha-o em quarentena imediatamente.
— O quê...? Não, vocês não podem fazer isso comigo!
— Perdoe-nos, Cadmus.
— Ei, o que estão fazendo? Pessoal?! Me larguem!!
— Fique parado...!!
— Eu não quero! Eu não quero ir!! Ahhh, aagh!! Aaaahhhhh!!!

No terceiro dia de viagem, um dos nossos foi levado aos berros ao setor de isolamento.

Nós procuramos possíveis falhas na estrutura do barco, mas não achamos nada. Na verdade, a origem do problema deveria ser a qualidade dos materiais usados em sua construção. Um problema de anos atrás.

No quinto dia, mais três infectados. Na manhã do sexto, sete. Mal deixamos a cidade, e mais de um terço da tripulação foi aprisionada nos contêineres, dois deles já tendo tirado suas vidas em antecipação.

Mesmo um que ainda não havia demonstrado sinais de contágio se desesperou e se atirou no mar.

Um por um, o número de tripulantes diminuía. Por mais que tentássemos manter a calma, era impossível. Eu perdi até mesmo as pessoas com quem eu compartilhava um sentimento mais forte do que companheirismo.

Não demorou muito até levantarem suspeitas de que eu e Pirithous estivéssemos tramando algo, pois éramos os únicos ilesos. Uma espada foi levantada contra ele, e eu reagi, ao clarão do relâmpago lá de fora.

Sem hesitação, eu saquei meu gládio e atravessei a garganta daquele que a empunhava. Ele arfou, em um grito silencioso. No que ele caiu, sem vida, seus comparsas que estavam atrás entrarem em pânico e tentaram fugir.

Eu os segui, sereno. Passos vagarosos. Eles não tinham para onde ir. Eu conhecia aquele barco como a palma da minha mão. Assim que os encurralei, eu, o monstro do labirinto, fiz o que Pirithous não tinha o ímpeto de fazer.

Homer. Xander. Iapetos. Argo. Quantos faltavam? Um, dois? Ou não havia mais ninguém? Eu precisava finalizá-los. Se a existência deles era uma ameaça, exterminá-los era a única maneira de garantir a nossa sobrevivência.

Mais um pouco. Só mais um pouco.

Com os meus sapatos sujos, eu arrombei a porta da copa, que se desprendeu da parede e bateu contra os armários feito uma bala de canhão. Escutei algo se remexendo atrás dos armários, e me posicionei.

— Quem está aí?

Com cuidado, me aproximei, até que encontrei Pirithous sentado no chão, próximo a frascos quebrados que continham um pó dourado. Ele estava pálido, seus lábios esbranquiçados, como os de um fantasma.

— Meu mestre Pirithous, o que está fazendo aqui? — indaguei. — Eu não pedi para que se refugiasse em sua sala?
— Não se aproxime, irmão. Eu preciso morrer.
— O quê?
— É tudo culpa nossa. Esse mundo está podre por causa de nós...! Não há salvação, não para nós. Não há salva--...

Ele se engasgou antes de continuar a falar, e começou a gritar de dor. Eu tentei contê-lo, mas ele se debatia, grunhindo descontroladamente.

— Meu mestre, o que está acontecendo? O que é essa substância?!
— Irmão, eu fui possuído por um espírito maligno. — Ele fincou seus dedos em mim, aterrorizado. — Eu queria ser o herói que nosso pai queria que eu fosse, mas eu... e-eu... não sou nada disso. Eu sou uma grande mentira. A minha vida toda foi uma mentira...! Eu menti para você, e menti para eles! Para todos eles!
— Pirithous?!
— Eu não tinha escolha! Esse é um labirinto sem saída. Depois da verdade, só existe escuridão. Eu estou com medo. Por favor, me perdoe, irmão. Me perdoe! Eu odeio tudo isso, eu não consigo aguentar mais...!!

Então, ele fez força para se levantar à minha altura e beijou minha boca. Não foi um beijo fraterno. Seus lábios tinham um gosto metálico, como se tivessem fervido em um abismo de desespero.

Eu o empurrei com força, e ele foi derrubado na estante dos condimentos. O impacto o fez voltar a si por um instante, permitindo que visse minha imagem com clareza. O sangue em minhas vestes o aterrorizou ainda mais.

— A-Ahhhhh!!!! Ahhh!!

Meu irmão correu, tossindo e babando aquele condimento que parecia queimar sua garganta, impedindo-o de respirar. Da próxima vez que o vi, ele já era apenas mais um dos corpos sem vida no barco.

Eu, Theseus de Salacia, fui o único sobrevivente da minha caravana.

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