Volume II – Arco III
Capítulo 38: O Caminho, ato I
No princípio, não havia nada além de um mar de areia varrido pelos vendavais. O céu era claro, mas não havia um Sol ou qualquer fonte luminosa. Era um céu opaco, como um teto tingido de branco.
Os bancos de areia, a terra, e até mesmo a Torre de Davi, não passavam de construtos artificiais. Câmaras subterrâneas que produziam vento. Pedras feitas gesso. Como tudo no Kunstkammer, essa dimensão era como uma cenografia teatral.
Patroclus jazia no topo de uma duna, seu corpo inconsciente semienterrado, até que sons de passos se aproximaram de onde estava. Era um home alto que se agachou ao seu lado, pondo em sua orelha um pequeno aparelho com o brasão de Angerona.
Era o dispositivo auricular alquímico que uma vez vi o senhor Achilles colocar em seu cadáver de ouro, nos depósitos do Anfiteatro. Após alguns segundos afagando a cabeça do caído, o homem de cabelos loiros se levantou, e tomou rumo.
Naquele momento, os dedos de Patroclus sobressaltaram, e ele despertou. Não só isso, mas ele pôde escutar pela primeira vez.
Ele checou a orelha, e retirou o objeto para analisá-lo, retornando ao silêncio. Apenas uma pessoa poderia ter feito isso por ele. No que levantou e olhou em volta, essa pessoa já havia ido embora.
No passado, quando vivia em um subúrbio, o quirinense aprendeu com sua cuidadora que, após uma pessoa morrer, ela passava por provações antes de seu destino final ser decidido entre o paraíso e a punição eterna.
Uma vez derrotado na Corte dos Heróis, ele morreu. Lembrava-se bem disso. Sendo assim, o mundo onde estava só podia ser o Mundo dos Mortos.
Arcadia, ano 322 pós-cisão.
A cidade de Quirinus sofria com a exploração da cidade de Angerona há décadas. Por serem vizinhas, a menor dependia da maior para se sustentar e abrigar o resto de seus cidadãos perante a fome, a sede, a violência e a proliferação do Declínio.
O menino foi tirado de um centro de acolhimento ainda pequeno e comercializado para a realeza de Angerona em troca de uma enorme quantia de dinheiro. Ele recebeu um novo nome e uma nova vida como a sombra do príncipe Achilles.
Por não ter a audição, a ideia era que ele fosse um objeto para instigar ânimo no príncipe campeão. Um “brinquedo” que satisfizesse suas necessidades, seja de toque físico ou afeto, sendo dado e retirado por reforço e punição.
Tanto para si quanto para os superiores, aprender a lutar tão bem quanto outros servos na fase de treinamento foi uma surpresa. Seus outros sentidos, em especial a percepção tátil e a visão, foram treinados para suprir suas dificuldades.
No ano de 326, Patroclus teve sua posição como herói admitida pelo ministério. Ele ganhou renome, até, eventualmente, esquecer-se de quem era antes.
Suas memórias de Quirinus não era gentis. Em Angerona, também guardou rancores contra Achilles e a família real em si. Certas coisas nunca deveriam ter acontecido. Ainda assim, ele acreditava que ambos foram vítimas do mesmo mal.
Era difícil crer após uma vida sendo usado como uma ferramenta, mas, se mesmo após a morte, Achilles escolheu dá-lo o presente, foi porque os sentimentos que dividiram no passado, em meio a tantas tragédias, continham algo genuíno.
Por isso decidiu procurar por seu antigo mestre. Para conversar, nem que fosse uma última vez.
Durante a viagem, Patroclus se deparou com Ganymede de Carmenta, um dos desafiantes que conheceu na Corte dos Heróis. Ele estava na mesma condição em que se encontrava antes: desacordado, como um boneco sem vida. Até que o tocou.
Ao que parecia, um herói derrotado continuaria em um estado semiconsciente, descansando eternamente naquela dimensão, até que a alma de outra pessoa o despertasse por completo.
Assim ambos se conheceram, e passaram a vagar juntos em busca de respostas. Passou-se um longo, longo tempo, que parecia muito mais do que o tempo passado na realidade. Era como se o fluxo no Kunstkammer corresse mais devagar.
— Ei, Patroclus — chamou Ganymede, vindo logo atrás dele. — Se foi o tal do Achilles de Angerona quem te acordou, outra pessoa teria que ter acordado ele, não?
“Presumo que sim”, ele sinalizou com as mãos. “Um dos desafiantes pode ter duelado depois de nós, perdido e vindo até aqui.”
— Q-Quanto tempo será que passamos dormindo?
“Eu não sei.”
Com o poder imbuído em mim, eu enxergava cada detalhe do destrinchar dos eventos temporais do Kunstkammer, como se tudo estivesse escrito nas páginas de um livro. Na verdade, era como se eu as tivesse escrito.
Este era um mundo onde eles não sentiam fome, sono ou sede, mas era possível comer, beber e dormir por prazer. Eles não precisariam lutar. Aqui, eles poderiam até mesmo voar com suas próprias asas, se assim desejassem.
Não se sentiria dor ao abri-las, pois a fórmula que alterava os princípios originais do protótipo bioalquímico das Asas de Simurgh perderia a validade. Sem ingerir o desobstrutor alquímico, os efeitos colaterais também seriam amenizados.
E, por ser livre das limitações impostas pelo plano físico, duas identidades poderiam tomar formas distintas e viverem separadas uma da outra. Foi o que aconteceu com a senhorita Pollux e o senhor Castor, após chegarem em conjunto.
Isso fez deles os primeiros. Ou seja, os acontecimentos desse lado se deram após a derrota dos dióscuros, no quinto e último duelo.
Eu tentava acessar outros pontos de vista, outras camadas de observação, mas, em minha forma atual, meus recursos eram limitados. Tudo o que eu via eram os eventos a partir da perspectiva de Patroclus; meros traços de memórias e emoções.
De alguma forma, a sintonia entre nós era maior do que a que eu sentia com Ganymede ou a senhorita Pollux. Eu me perguntava se isso se devia a tê-lo conhecido por menos tempo do que os outros três, mas isso não me satisfazia. Por que ele, e só ele?
Eu detinha um poder que não compreendia na totalidade, e isso delimitava as minhas possibilidades de intervenção. ... Possibilidades de intervenção? Do que eu estava falando? Quando foi que comecei a usar esse tipo de vocabulário?
— As cortinas que me separavam de Castor, assim como o nosso jardim em miniatura, desapareceram — explicava a senhorita Pollux, no presente, sentada ao lado da cama onde eu descansava. — Não sabemos a respeito do paradeiro dele, ou do príncipe de Angerona, mas... eu acredito que eles tenham se encontrado, em algum momento.
— H-Hmm... — murmurei, disfarçando o meu retorno repentino.
Após minha chegada, fui levado a um quarto confortável, onde me ofereceram uma comida, água e uma cama limpa. Ganymede e Patroclus ficaram conosco, brincando de um jogo de tabuleiro que eles encontraram nas estantes da Torre.
O mais baixo perdia toda rodada, e se descabelava de raiva.
— Arrghh! Você tá roubando! Isso não vale!
“Foi você quem deixou suas peças indefesas.”
Eu e a senhorita Pollux rimos. Em um dado momento, ela continuou, com a voz nostálgica:
— Castor está por aí, vivendo a vida como ele sonhava ter vivido todos esses anos. Voando livre, e sozinho. Longe de mim.
— Não é melhor assim? — questionou Ganymede. — Castor é uma desgraça. É bom que ele mantenha distância de nós!
“Ei, ei, você!” Patroclus deu um empurrãozinho no outro. “Seja mais compreensivo com Pollux!”
— Compreensivo?! Eu estou falando a verdade! Aquele cara não tem jeito! Por que vocês falam como se isso fosse o estranho? Aliás, não é tudo melhor quando só estamos só nós três aqui?
Ganymede não tinha interesse em ir atrás de seus antigos mestres. Depois que conheceu Patroclus, ele sentia que essa companhia bastava.
Foi um tanto difícil se acostumarem um com o outro. Um nunca teve quem o ensinasse a falar, e o outro não entendia nada da linguagem de sinais arcadiana. Ainda assim, eles descobriram semelhanças entre si.
Assim que encontraram uma forma própria de se comunicarem, as coisas facilitaram. Era melhor do que uma peregrinação solitária, ao menos. Em pouco tempo, eles se tornaram parceiros inseparáveis.
O encontro dos dois com a senhorita Pollux foi ao acaso. A relação entre ela e Ganymede mudou, e não havia como continuarem sendo como eram antes.
Ele parou de se referir a ela como “minha senhora”, ou usar honoríficos, e ela aceitou sem questionar. Em troca de ser aceita no time, os ensinou a usar as asas para voar, já que era a única com experiência nisso.
Os rapazes demoraram para se acostumar, mas ela foi paciente, e logo eles pegaram o jeito. Na verdade, eles aprenderam a estabilizar o voo tão bem quanto ela, e isso a deixava orgulhosa.
Ela sorria mais. Vivia mais. Eu via claramente o quanto a senhorita Pollux estava se esforçando.
— Gany tem razão. O tempo nunca mudou o meu irmão. Esperar que ele mude agora é ingenuidade. ... Pode parecer patético, mas desde que me separei dele, só sinto arrependimentos — disse ela, enquanto os outros dois se distraíam com os jogos. — De ser uma cúmplice. De ser complacente. Embora eu quisesse fazer mais do que me redimir pelos meus erros, mesmo agora, eu continuo pensando apenas em mim mesma.
— ...
— Tens falado pouco desde que chegou, Terumichi. No Anfiteatro, você costumava ser mais tagarela.
Sim, eu... falei pouco desde que cheguei.
No momento, eu tinha dificuldade para falar, e verbalizar. Desde que fui salvo, tampouco consegui processar todas as informações que se passavam na minha mente. Muito aconteceu de uma só vez. Eu me sentia estranho. Fadigado.
Há algumas horas, eu estava certo de que queria morrer, mas, parando para pensar, talvez eu tenha tomado aquela decisão por impulso. Eu apenas assumi que as palavras de Maier eram verdade, quando nem ele tinha como certificar esses fatos.
Tsubasa ter morrido era algo que mexia com meus medos mais profundos, e ele usou desse conteúdo para me manipular. Dessa forma, eu pararia de resistir e me renderia como seu receptáculo. Vendo por esse ângulo, fazia mais sentido.
Ele não morreu. Não foi assim que acabou. Era nisso que eu preferia acreditar.
Por agora, o que eu tinha que fazer era me acalmar, e me manter no agora. As pessoas cujas mortes eu vi com meus próprios olhos estavam ali, comigo, conversando sobre um montão de coisas, como velhos amigos.
Ao longo dos meses no Anfiteatro, minha sanidade lentamente se esvaiu. Uma hora eu me desesperei e me conformei com as consequências dos combates, pois a vida dos meus amigos vinha antes das deles. Nisso, eu só me afoguei em mais remorso.
Eu nunca quis que eles morressem. Quando as coisas saíram do controle, eu perdi isso de vista. Ver aquelas coisas horríveis me dessensibilizou quanto ao valor que eu atribuía à vida das pessoas.
Eu queria ouvi-los. Os poderes que herdei não bastavam. Eu queria ouvir as palavras de suas bocas, pois o tempo que tivemos lá fora foi curto demais. O momento de agora era especial, mais do que eu me permitia ver.
— Eu só estou... incrédulo, por estar na presença de vocês outra vez — respondi. — Me desculpe. Me desculpem, todos vocês. Ganymede, e Patroclus. Eu não queria que as coisas tivessem acabado daquele jeito. E-Eu não queria.
— Nada do que aconteceu foi culpa sua. Pelo contrário, foi você quem tentou mais do que qualquer um de nós.
— É, não precisa ficar aí se lamentando — Ganymede apontou, movendo uma pecinha do tabuleiro. — E mesmo se a culpa fosse sua, o que mais a gente ia poder fazer? Te bater? Nós estamos bem. Até o Patroclus está, e olha que ele deu com o pé na cova bem antes de nós.
O mais alto não respondeu. Apenas o encarou, emburrado.
— Olha aqui — continuou —, eu não acho que valha a pena tentar consertar as coisas ruins que já aconteceram, mas se você quer ser teimoso igual esses dois aí, pelo menos faça o seu “fechamento com o passado” valer pra alguma coisa. Se isso não te trouxer alguma paz, pra que perder tempo correndo atrás?
“Você mudou, Gany”, Patroclus sinalizou, deixando o outro enrubescido.
— M-Mudei em que, exatamente? Eu sempre fui assim. Eu sou racional e sensato. Só é difícil demonstrar quando se está cercado de desmiolados.
“Você não era tão atencioso quando nos conhecemos.”
— Nesse caso, a culpa é toda sua! Você é um coração mole e está me influenciando!
O maior deu uma risadinha.
— Eu posso não ser a pessoa que Castor está procurando — a mulher retomou a vez. — O que entendo como “paz” pode estar mais distante do que eu consigo alcançar.
— Isso nós vamos descobrir. No fim das contas, merecemos tirar uma satisfação pelas merdas que o Castor fez. E eu não vou aceitar ninguém tratando ele como se fosse um coitadinho.
— Pode deixar. Obrigada, Gany.
Os caminhos que percorremos nem sempre se desenham como imaginávamos.
As dores e os erros do passado não podem ser apagados. Alguns deles caminharão conosco pelo resto das nossas vidas, e após nos darmos conta disso, tudo o que podemos fazer é mudar e aprender com o mundo ao nosso redor.
Se parar para pensar, é como na alquimia. Seja através das nossas falhas e acertos, ou dos sacrifícios equivalentes que fazemos, nós nos reinventamos, reforjamos o que temos e o que somos até acharmos o produto que cremos ser adequado.
O resultado nunca será “perfeito” como o ouro alquímico, mas quem sabe seja isso que nos torna humanos.
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✤ Banco de Dados Psicoalquímico ✤
OPERADOR: MICHAEL_MAIER | R#ID: KINJOTERUMICHI_08081999
Saudações! Parece que nos comunicamos mais cedo do que o imaginado. Como tens estado? Hoje, trago informações que creio serem do teu melhor interesse, já que vives imaginando ou tentando adivinhar que pensam os demais, em especial o que pensam de ti.
... Por que te ofendeste? Oh, então não queres mais saber. Bom, não lembro de ter perguntado se tu querias ou não. Eu me dei ao trabalho de fazer isso por ti, portanto, aceite minha gentileza de bom grado.
O que pensam os heróis uns sobre os outros?
Patroclus
Sobre Ganymede: “Gany é alguém com quem eu aprendo muito todos os dias. Sou grato por conhecê-lo. Um dia, eu espero poder retribuir por tudo de bom que ele fez por mim.”
Sobre Pollux: “Apesar de ser mais jovem do que eu, a serenidade de Pollux transmite um ar de maturidade. Mas ela tem um lado brincalhão, e às vezes parece uma garotinha entusiasmada. Nessas horas, ela me lembra de como meu mestre costumava ser.”
Sobre Achilles: “Eu o perdoo. Assim, pode ser que eu me perdoe também.”
Sobre Terumichi: “Sinto que seríamos próximos, tivéssemos a chance de nos conhecer melhor. Ele tem um olhar atento, e um tanto inocente. Ele me faz me sentir nostálgico. É como se eu estivesse perto de casa.”
Sobre Hector: “A habilidade do comprometido é admirável. Eu não tinha a intenção de lutar contra ele, mas... naquele dia, eu dei o melhor de mim, e ainda assim não consegui vencê-lo.”
Sobre Theseus: “Ele conhece a língua de sinais arcadiana.”
Sobre Circe: “Não era a moça do laboratório?”
Sobre Kosmo: “Na primeira vez que o vi, me senti inquieto. Não sei dizer o porquê.”
Sobre Castor: “Nunca conversei com ele de fato. Só sei o que Gany e Pollux contam.”
Ganymede
Sobre Pollux: “Nossa relação é diferente de como costumava ser, mas Pollux sempre foi, e sempre será uma irmã pra mim. D-Digo, a não ser que ela comece a puxar o saco daquele sacana do Castor se a gente encontrar ele de novo! Eu ia matar ela por isso!!”
Sobre Patroclus: “Ele é o cara mais legal e inteligente que eu já conheci. Desde que aprendi mais sobre a linguagem de sinais, ficou muito mais fácil se comunicar. Nós temos gostos parecidos, e a gente se identifica um com o outro. Ah, ele também é um ótimo professor! ... Quem dera eu tivesse conhecido ele antes.”
Sobre Terumichi: “Dizem que eu mudei, mas ele também mudou.”
Sobre Hector: “É um pouco frustrante ter perdido pra esse aí. Eu claramente luto melhor.”
Sobre Theseus: “Ah, o ruivinho. Me pergunto como ele reagiu, depois de tudo.”
Sobre Circe: “Ela me assusta.”
Sobre Kosmo: “Ninguém nunca percebeu, mas ele e o irmão são estrábicos.”
Sobre Achilles: “Mimado! Patroclus merece algo melhor.”
Sobre Castor: “Eu empurraria ele de um penhasco se pudesse.”
Pollux
Sobre Ganymede: “Eu estou aliviada quanto ao que mudou entre nós dois. Não quero mais ser uma mestra que detém controle sobre a vida de alguém. Não é nisso que eu acredito.”
Sobre Patroclus: “Um ótimo companheiro. Ele faz Gany feliz. Confesso que ainda estou me acostumando ao cotidiano com outra pessoa. A intimidade me assusta.”
Sobre Castor: “Viver em um corpo separado do dele é mais difícil do que eu imaginava. Eu costumava pensar que isso significava meu apagamento. Mas aqui estou eu.”
Sobre Terumichi: “Eu tenho muitas coisas a dizer a ele, mas palavras não são o suficiente. Seu coração parece estar mais ferido do que nunca.”
Sobre Hector: “Ao fim do combate, eu vi Castor nele. O mesmo Castor do dia da cerimônia. Foi a única razão pela qual deixei emoções me dominarem. Eu não pude matar o meu irmão dentro de mim.”
Sobre Theseus: “Um bom menino.”
Sobre Circe: “Admiro por sua dedicação e honestidade. Gostaria de conversar mais com ela algum dia. Se eu tivesse que eleger o vencedor da Corte dos Heróis, seria ela.”
Sobre Kosmo: “Eu diria que somos parecidos. Ou, talvez...”
Sobre Achilles: “Se ele estiver com Castor, rezo para ficarem bem.”
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