Volume II – Arco III
Capítulo 37: A Deflagração
A luz forte fazia cócegas em minhas pálpebras.
Eu me sentia pesado, e meu corpo doía. Por mais que estivesse acordado, eu não conseguia me mover ou abrir os olhos. Perdi a conta de quantos dias passei nesta cama, dormindo, despertando e voltando a dormir.
Há pouco, tive um sonho. Nele, eu revivia o dia da cerimônia e aguardava minha morte, até que me apareceu um garotinho de cabelos castanhos e o rosto cheio de marquinhas marrons, como as de alguém que conheci.
Aquela criança era, sem dúvida alguma, Terumichi.
Eu não lembrava quando foi a primeira vez que tive esse sonho, mas desde o instante em que nos encontramos pela primeira vez, no Anfiteatro, eu tive a sensação de o ter visto antes. Desde então, eu sonhei mais vezes.
Eu podia escutar traços de sua voz ecoando em meus ouvidos, junto aos apitos dos medidores de sinais vitais. Pensei que ele pudesse estar lá. Fiz força para sacar qualquer fôlego dos meus pulmões e o chamar, mas ninguém veio.
Com uma voz fraca dessas, dificilmente alguém me escutaria. Não só isso, eu só devia estar sofrendo com algum tipo de ilusão auditiva. Como sou tolo. Não havia como ele estar aqui, não em um momento crítico como esse.
O ritmo do monitor cardíaco acelerava.
Eu fracassei, e fui poupado da morte. Assim como há dez anos, eu não pude cumprir com o meu dever. Meu merecimento de Messias foi contestado devido à rendição dos dióscuros, dando início à Reavaliação de Dignidade.
Desde então, o Filho de Trismegistus foi arrebatado pela vontade santíssima da Correnteza Eterna. Segundo as leis da Corte dos Heróis, ele permaneceria em isolamento absoluto até que um novo comprometido fosse eleito.
Eu perdi, pois deixei de ser vazio. Me preenchi com o amor de alguém, e isso me trouxe ruína. E agora, mais uma vez, eu precisaria me machucar e machucar outro alguém para retomar o meu posto, caso contrário, ninguém mais--...
— Irmão, não se mexa — disse uma voz reconhecível.
Era a voz de Kosmo. Ele deve ter notado a mudança brusca nos meus sinais.
— Sei que dói, mas aguente. Os autômatos estão refazendo os curativos.
Do canto dos olhos, eu pude ver. Faixas ensanguentadas em minhas mãos, ombros, joelhos, e ao redor do meu tórax. Os braços mecânicos dos ajudantes enfermeiros se movendo rapidamente. Múltiplos acessos venosos. Fios, e mais fios.
Tudo se tornou mais vívido para mim. Os vestígios de memória de quando fui contido para tomar aquele remédio e guardar minhas asas. Meus gritos, e a minha resistência vã. A sensação de estar sendo triturado, carbonizado.
Eu chorei em silêncio, deixando lágrimas escorrendo pelos lados do rosto. Eu tentava soluçar, mas algo parecia estar prendendo o meu peito, e causando dor quanto mais ar eu puxava.
Por que as coisas acabaram desse jeito? Por que o mesmo sempre tinha que se repetir? Se era pra ser assim, eu preferia ter morrido. Ao menos, eu não precisaria passar por isso. Essa tortura acabaria.
A silhueta do meu irmão se aproximou, criando uma sombra sobre o meu rosto, e senti sua mão afagar minha testa.
— Isso vai acabar, Hector. Em breve.
— K-Kosmo — eu gaguejei —, por favor... faça isso parar... E-Eu não aguento mais. Só me deixe morrer. Ugh--...!
— Pare com essa bobagem. Agora que chegamos até aqui, você tem que ir até o fim. Desistir não é uma opção. Ei, não se preocupe. Eu vou cuidar de tudo por você. Apenas faça o que eu mandar. Ouviu bem?
Embora suas palavras fossem de conforto, a entonação de sua voz me dava a entender algo diferente. Como uma ameaça.
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Da boca de uma cornucópia, flores e frutas de todos os aspectos e cores extravasavam incessantemente. Era uma correnteza eterna por onde minhas memórias fluíam.
No dia do meu aniversário de oito anos, quando ganhei meu presente especial, eu tive uma visão da qual eu nunca deveria ter me esquecido.
Era um garotinho ferido, coberto de sangue. As penas de suas asas eram da cor do bronze. Sua pele, marrom. Seus cabelos eram negros e seus olhos azuis cristalinos. Era o meu anjo. O nome dele era Hector.
Eu queria tirar ele do poço, e salvar sua vida, mas não sabia como. Então, caminhei por um extenso campo vazio — como fazia agora —, tentando alcançá-lo, mas ele se distanciava a cada passo que eu dava.
Até que ele desapareceu, e minha mão retornou à mão do vovô, no exato momento em que o tempo havia parado. Pensando ter sido apenas um sonho que tive à noite, eu deixei isso pra lá e segui com a minha vida.
As recordações desse milagre permaneceram dormentes por muitos, muitos anos, mas eu tenho certeza que ele era real. Do contrário, não haveria outra razão para me sentir tão nostálgico quando nos conhecemos.
Nas vezes em que o assisti se machucar, dando de seu sangue e vencendo os combates da Corte dos Heróis. A cada pessoa que vi morrer na minha frente. A cada gota de suor que descia o meu rosto pelo medo.
Essas reminiscências sempre lutavam para retornar, junto às muitas outras que reprimi.
Ele esteve esperando por mim, todos esses anos. No dia em que nos beijamos pela primeira vez sem ser para invocar o Amaranto em um duelo, ele me falou as mesmas coisas que naquela época. Não vá. Fica comigo. Não me abandona.
E como ele mesmo contou, eu fui a primeira pessoa além do irmão gêmeo cuja pele ele viu. Eu sou tão burro. Como pude não perceber? Hector esteve tentando me fazer lembrar dessa ocasião, mas eu continuei cego para o que era mais importante.
— Errado. As lembranças dele referente a esse evento são tão vagas quanto as suas — respondeu uma voz aguda e anasalada. — Mas elas ainda se manifestam, mediadas pela sua conjunção.
De supetão, olhei para trás. Diante de mim, estava a criança que fui há uma década, em meio à escuridão. Tal qual as pétalas que esvoaçavam, seus olhos eram de ouro vívido, iguais aos que vi em Tsubasa.
Sobre sua cabeça, pairava o símbolo do infinito, na forma de um oito deitado.
— E não se engane — continuou —, mesmo sem ter te conhecido, aquela criança de fato nunca teria visto a pele de outro senão Koshmayah, ao menos até o combate de abertura. Ouviste sobre o povo vertumnita. Alguém que só sai dos aposentos para comer e tomar banho em horas incomuns certamente não verá ninguém.
— Quem é você? — questionei, em alerta.
— Eu? Eu já tive muitos nomes. Tudo o que eu sou não pode ser descrito com um só. Só aconteceu do teu nome ser o receptáculo mais próximo do ideal, então eu poderia dizer que o meu nome é Terumichi Kaneshiro.
— ...?!
— Oh, mil perdões. A pronúncia correta é Kinjō, não?
— Para com essa brincadeira!!
— Acalme teus ânimos. Diferentemente da minha outra criação, não possuo maus intentos contra ti. Saúdo-vos, pois. O punhal que perfurou o seu coração deveria ter te colocado em um sono mais duradouro. A proeza de te libertares tão cedo prova que és digno de portar meu Magnum Opus.
Ele me mostrou o medalhão, que havia sumido até então, e dei um sobressalto.
— Está surpreso? Não se preocupe, eu não vou confiscá-lo de ti. Tu precisarás dele de agora em diante. Tome, eu faço questão.
Ele o jogou, e eu o contive em minhas mãos.
Nisso, a aparência daquela pessoa mudou. Era agora um adulto — uma exata cópia minha — com um sorriso gozador, parecendo de mentira. No olho esquerdo, o que eu tinha maior grau, ele usava um monóculo antigo.
Trajava uma túnica verde com uma capa escura que descia para um único lado de seu corpo. No ombro direito, o oposto ao da capa, havia uma longa faixa branca, adornada com o mesmo broche da boina de Tsubasa.
Era um broche com o brasão de um leão verde devorando um Sol sangrento.
A energia que esse ser à minha frente emanava era igual, senão mais intensa do que a que senti antes. O mero fato de ele estar presente me fazia sentir insignificante, como se um mero relance seu já pudesse me esmagar.
— Eu tomei a liberdade para me apossar das tuas memórias, assistir e estudar tuas experiências psicoalquímicas desenvolvimentais — disse, sentando-se a uma mesa de trabalho. Entusiasmado, ele tomou uma caneta de pena da boca do tinteiro, tornando a assinar papéis com escritos estranhos. — Estive analisando os resultados, e o que posso dizer é: tu és um receptáculo intrigante! Não é o que eu esperava, mas até que tua aparência e teu corpo me agradam.
— ...
— Algo te aflige. Ah, suponho que eu tenha causado constrangimentos. O sinal que uso para me fazer presente no plano físico não é tão discreto, mas foi o único design a apetecer meus interesses estéticos.
— Interesses estéticos?
— É, não está vendo? Olha aqui.
Ele apontou para o símbolo pairando em sua cabeça.
— Vocês chamam de infinito, mas no meu tempo ele se chamava lemniscata, que acredito ser um termo mais belo — afirmou. — Eu amo apenas o que é belo, seja conveniente ou não. Peço encarecidamente que lide com isso.
— Responda-me, você é Maier?
— "Maier" é como minha outra criação se refere a mim. Sempre tão extravagante. Minha pobre, pobre Correnteza Eterna. Ela sempre foi assim. Por favor, não a odeie. Tudo o que ela fez foi seguir com minha experimentação.
— Correnteza Eterna?
— É como eu a chamo.
— O nome dele é Tsubasa. Ele não é nenhuma Correnteza Eterna.
— Tsu... basa...? Ahahahaha! Hahahaha! Hahaha!
— O que é tão engraçado?!
— Após tudo o que aconteceu, ainda não entendeste? A negação não te levará a lugar algum. O teu “amigo”, ou seja lá o que tu o considerava, já morreu.
Quando ele disse aquela palavra, algo dentro de mim quebrou, como se um pedaço muito importante de mim que me mantinha de pé desabasse. Com os olhos marejados, rebati de cara:
— É mentira!! Tsubasa não pode ter morrido...!!
Atônito, ele parou de escrever, retornando seu olhar sem alma para o meu.
— Se parares para pensar, não era óbvio?
— Não, não era!
— Por que outro motivo o mundo teria se fechado para ti depois do dia 1 de março? Um mundo onde perdeste as duas pessoas mais próximas de ti. Já devias ter percebido isso. Não entendo o porquê de tais reações grandiosas.
— N-Não quero ouvir mais dessas baboseiras. Qual é a relação do meu avô com tudo isso? O que aconteceu com o Tsubasa no Kunstkammer, e o que eu faço pra ele voltar ao normal? Por que o meu medalhão é o Amaranto, afinal? Me conte tudo! E não se faça de inocente, eu sei muito bem o que você é!!
Eu me recordava.
Maier era o sobrenome do homem que escreveu o Atalanta Fugiens, o livro favorito de Tsubasa, que o dei de presente. A real identidade de Hermes Trismegistus, que concedeu os conhecimentos da alquimia à humanidade em Arcadia, era Michael Maier.
Isso queria dizer que as memórias humanas se misturando com as minhas desde que adentrei o Kunstkammer pertenciam a ele, na época em que ele ainda não era um deus.
— Procurar outros culpados na história é um dos teus maus hábitos — respondeu, debochando de mim. — No fim, eu ainda sou parte de ti. Se eu pudesse dizer, eu e tu somos como pai e filho.
— P-Pai e filho?!
— É inútil me interrogar. Tu não gostarás das respostas, de qualquer maneira. Nas condições em que estou, não tenho, e nunca tive como fazer algo contra o teu amigo, ou o teu avô. Alguém sem conhecimentos úteis dos últimos 333 anos não é a pessoa com quem deverias tirar satisfação.
— Não foi você quem disse que isso era a sua experimentação? Você não é uma divindade?
— Eu deveria ser uma, sim, mas se eu tivesse controle total sobre alguma das coisas que estão a acontecer, achas mesmo que eu sequer estaria aqui, mofando no teu coração? É um lugar deveras desagradável.
Pus-me em silêncio.
— Ah, sabia que a última vez que usei essa caneta-tinteiro foi há 334 anos? Ela é a minha favorita. É uma ótima caneta.
Ele não demonstrava a menor preocupação, ou responsabilidade quanto a nada. Continuava assinando papéis e enrolando documentos em pergaminhos, seja lá para quê, ou para quem, como se nada mais no mundo importasse.
O que aconteceu em Arcadia, a origem da Correnteza Eterna e daqueles três séculos de sofrimento, foi pelas ações desse homem fútil que alegava não ter poder sobre a situação. Como se não bastasse, ainda mentiu a respeito de Tsubasa.
Olhar para ele, por alguma razão, era como olhar para mim mesmo. Eu queria chorar, mas, ao mesmo tempo, também queria fazer algo de ruim contra ele. Tirá-lo da inércia, e só então eu saberia se ele era ou não incapaz de agir.
No entanto, quando a alguns passos dele, tanto sua aparência quanto sua voz mudaram novamente. Ele voltou a ser uma criança de oito anos, e eu trepidei.
— Certo! Fórmula pronta! — exclamou, com um rostinho alegre. — Ufa, dez pergaminhos de fórmula. Eu nunca me canso. Sou o máximo mesmo. Sempre fui. Não há trabalho meu que não seja impecável.
Ele devolveu a caneta ao tinteiro e se pôs de pé sobre a mesa, segurando os pergaminhos em mãos. Após espanejar o suéter, tomou uma postura imponente, e, bem devagar, direcionou seus olhos brilhantes a mim.
— Hoje é o teu dia de sorte, Menino de Ouro. Como és inteligente, eu deveria te deixar pensar por si mesmo, mas já perdemos tempo demais. Está quase na hora.
— Hora do quê?
— Eu te ajudarei a sair daqui. Seja muitíssimo grato pela minha cortesia. Como é a última vez que nos vemos pessoalmente, o resto cabe a ti.
— E-Espere! Eu ainda tenho perguntas para fazer!
— É melhor dar valor às tuas lembranças, ou terá mais arrependimentos mais tarde. Bye-bye, Lullabye.
Ele estendeu a mão, fazendo um sinal com os dedos, e nisso os dez pergaminhos começaram a emitir um fulgor intenso. O selo que os firmava sumiu, e eles se desenrolaram e se estenderam em todas as direções, mais compridos do que realmente eram.
Para o núcleo da reação alquímica, era absorvido o ouro das pétalas que nos rodeavam. Elas colidiam umas com as outras, se amalgamando e criando a forma sólida de um... caixão. Era o mesmo caixão dourado em que meu avô foi velado.
A tampa se abriu, e dezenas de correntes douradas saíram de dentro para me capturar. Eu gritava, e tentava resistir, mas elas eram fortes demais. Como um animal condenado, fui arrastado para o sepulcro, que se fechou comigo dentro.
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Era uma imensa fortaleza de máquinas e aparatos metalúrgicos em funcionamento. Cheiro de ferro misturado com enxofre. Luzes artificiais, e lanternas coloridas.
Fui despejado em um tubo formador, este conectado a centenas de outros tubos menores. Meu corpo não reagia. Eu retinha algumas sensações superficiais, como a visão embaçada, mas era imóvel, frio, como um cadáver.
Quando me dei conta, havia um furo na minha camisa, e uma mancha escura ao redor dele. Era o ponto onde fui apunhalado. ... Eu era de fato um cadáver. Eu morri, e estava sendo levado para algum lugar que eu desconhecia.
De rampa em rampa, fui transferido para uma superfície escorregadia, e o meu corpo, que parecia tão pesado quanto um bloco de metal bruto, derrapou até a primeira entrada, sobre a qual havia uma placa eletrônica.
Lia-se, na língua japonesa, “CANAL DE REFRAGMENTAÇÃO, FAVOR DIRIGIR-SE AO SETOR DE REFRAGMENTAÇÃO FÍSICA E ESPIRITUAL.”
Assim que caí no canal, as comportas e os respiradouros se fecharam, e não vi mais nada além do breu.
Foi quando a estátua sem vida de “Terumichi Kinjō” apareceu por trás de um vidro, derretendo em uma fornalha acesa em 1.064 °C. Seu estado sólido tomava a forma de um líquido amarelo fervente que enchia o volume do tanque.
Por um funil, ele escorreu até o molde de um ovo envolto pelas garras de uma águia de mármore. No interior de sua superfície semitransparente, um líquido colorido cintilava no mesmo ritmo que as batidas de um coração.
Na fase de resfriamento, era possível ver algo se originando no centro. Células, reestruturando-se numa velocidade inimaginável. O cérebro e a coluna vertebral de um humano adulto. Ossos, órgãos internos, vasos sanguíneos e ligamentos.
Do tronco, cresceram os membros, os quais foram cobertos com músculos, pele e cabelos. Oh, e não podíamos nos esquecer das sardas pelo corpo, e de vesti-lo com roupas leves para que não se sentisse constrangido com a nudez.
O novo ser humano, refeito do zero, nascido uma segunda vez, havia acabado de ganhar um novo coração e uma nova vida. Ele abriu os olhos, antes completamente brancos, e disso surgiram suas pupilas negras e íris marrons.
Dos alto-falantes, uma voz grave informou:
— REFRAGMENTAÇÃO FINALIZADA. PROCEDER PARA EXPOSIÇÃO.
Eu costumava ter um papel. Um diferente do que tive durante o ensino secundário alto, ou como o Filho de Trismegistus. Era um que eu tinha muito antes, quando pertencia a algo maior do que eu sou como um simples ser humano.
Eu tinha a autoridade para criar, mudar e estabelecer a ordem nas coisas. Eu tinha o mundo inteiro na palma das minhas mãos, como uma orquestra na qual eu era tanto o condutor quanto o compositor da peça musical.
Os meus sonhos se tornavam realidade, e a realidade se transcrevia em sonhos. Uma infinidade de universos, estes disfarçados de sonhos, era criada a partir das possibilidades que eu tecia em meu cerne, ganhando vida.
Minha consciência ainda não estava plenamente preparada para conceber essas capacidades por completo, mas, creio que tudo o que vivenciei até aqui tenha servido para me fazer amadurecer dentro do ovo chamado Terumichi Kinjō.
O luto pelos meus avós. A necessidade que eu tinha da atenção e aprovação das outras pessoas. O terror que senti ao assistir Tsubasa ser atormentado várias e várias vezes. A culpa de tê-lo abandonado daquela forma. De tê-lo deixado morrer.
No dia da excursão, você realmente me deixou para trás, Tsubasa? Assim, sem mais nem menos?
Se você não estava esperando por mim, quer dizer que eu não tinha mais como te pedir perdão. Eu perdi você, e perdi o vovô. Eu não tinha forças para continuar tentando. Mesmo com a mamãe, o papai e o Teruki, eu me sentia mais sozinho do que eu podia suportar.
Além do mais, eu disse a mim mesmo que preferiria ir com você. Eu não falei isso brincando. ... Eu precisava cumprir com a minha palavra. Assim que a minha alma desaparecesse e caísse no vazio do esquecimento, nós dois estaríamos juntos para sempre.
Outro alguém me substituiria, e tomaria o meu lugar. Alguém mais poderoso, magnânimo. O meu nome, daí em diante, seria... Michael Maier, não é?
— Agora, Patroclus!!
Na velocidade de um relâmpago, a ponta de uma berdiche cravou na superfície do ovo, por pouco não me atingindo. O vidro rachou e rachou, até se partir em mil pedaços.
Os alarmes acionaram. O líquido extravasou, e antes que eu caísse num fosso sem fim, um anjo me apanhou. Ele tinha a pele marrom e os cabelos castanhos, levemente ondulados. Olhos verdes, e pintas no canto do olho esquerdo.
Bem atrás dele veio, outro anjo, com um rosto tão belo que era impossível eu não reconhecer. Eram Patroclus de Angerona e... o senhor Ganymede de Carmenta. ... O que estava acontecendo? Eram eles de verdade?
Desviávamos de vários obstáculos em pleno voo, desde hastes, grades, até garras metálicas que tentavam nos capturar. Com o pouco de energia que me restava, eu me segurei no pescoço do senhor Patroclus, e fechei bem os olhos.
À medida que tomamos altura o suficiente, o reino mecânico foi ficando menor, e mais distante.
— Como ele está? — perguntou Ganymede, planando para perto de nós. Em resposta a ele, Patroclus deu um aceno com a cabeça. — ... Cara, é ele mesmo. Não posso acreditar.
— Senhor Ganyme--... — No que tentei vocalizar, eu me engasguei e tossi o líquido estranho que ficou na minha garganta, e ambos fizeram uma careta de espanto.
— Ahhh! O que que é isso? É gosma? Que nojeira!
— Desculpe...
— T-Tá tudo bem. Não precisa falar mais nada, garoto de Agartha. Patroclus, vamos levá-lo embora daqui.
Mudando a direção em que voávamos, entramos no que parecia ser uma espécie de túnel enferrujado, repleto de bifurcações e passagens estreitas.
Esta era uma das múltiplas camadas do Kunstkammer, mais especificamente, a que possuía a função de interligar todas elas. A camada para qual íamos, segundo informações obtidas através do meu banco de dados psicoalquímico, era a camada nº 83.
Chegamos a um deserto esbranquiçado, assolado por fortíssimas rajadas de vento. Bem à frente, ofuscada por nuvens de poeira ou névoa, jazia uma escultura gigantesca de Davi de Michelangelo. Era uma torre com centenas de janelas negras.
— A descida será turbulenta! Se segura! — exclamou o senhor Ganymede, estreitando o espaço entre suas asas.
Mesmo sendo impelidos pela turbulência, o susto durou pouco. Eles se reequilibraram e planaram em segurança até a entrada principal da torre-estatuário, um corredor longo que dava a impressão de ser um hangar, ou pista de pouso.
No que aterrissamos, meus salvadores me puseram no chão com cuidado, e suas asas começaram a brilhar, tornando-se cada vez menores. Suas penas se soltavam, se transformando em pétalas douradas que se desfaziam no ar.
Logo eles voltaram a ser homens comuns, sem sentir dor, sem necessidade de derramar sangue.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, senti algo subir minha traqueia, e cuspi mais daquela substância no chão. Achei que tinha acabado, mas veio mais, e mais. Eu estava assustado. Não fazia ideia de como tudo isso coube em mim.
Na tentativa de me ajudar, o senhor Patroclus se ajoelhou ao meu lado, pondo a mão sobre as minhas costas, e sinalizou com as mãos para que eu respirasse fundo. Era como o exercício que eu fazia com Hector, quando ele tinha picos de pânico.
— Sente-se melhor? — perguntou o loiro, de uma distância segura da sujeira.
— Sim. Muito obrigado, vocês dois, mas-... Me perdoem. Eu estou surpreso. Não sei bem o que dizer. Por que vocês estão aqui...?
— É uma longa história. Quem vai explicar?
“Você terá mais facilidade com isso” apontou Patroclus, usando a linguagem de sinais arcadiana.
— Meh, tá legal. Em primeiro lugar, vá tomar um banho. Em segundo lugar, esqueça o negócio de “senhor”. Me chame só de Ganymede. Patroclus também não gosta de honoríficos. Agora, bem, como eu explico isso...? Tudo começou com... err... quando nós...
“Deixa pra lá. Eu explico. Você vai confundi-lo ainda mais” comentou o mais alto.
— Calma! Eu nunca precisei fazer essas coisas, okay?! A Pollux é a melhor nisso. Ah, e falando no diabo.
Sons de saltos altos. Dos confins do salão, uma pessoa alta e magra veio até nós trajando um longo vestido branco. Brincos, joias e adereços enfeitavam seus cabelos negros cacheados.
Era a senhorita Pollux, tão graciosa quanto uma majestade.
— Como pensei. O sinal no céu vinha de você. — Com um leve sorriso, ela se aproximou e estendeu a mão para me cumprimentar. — E pensar que nos veríamos de novo. É um prazer recebê-lo, Terumichi Kinjō.
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