Volume II – Arco III
Capítulo 36: A Adoração
Na madrugada do dia 28 de fevereiro, eu cometi um erro imperdoável.
Já que eu era o único a saber da existência dele, ninguém me condenaria ou puniria, nem mesmo a mamãe. Essa tênue percepção de segurança me mantinha são, e me perturbava.
Eu fiz com meu melhor amigo o que Makoto fez comigo. Eu o estuprei. Não havia outra forma de descrever, nem o que justificasse minhas ações. Acabou. Eu estava bem ciente disso.
Achei que, no decorrer, ele acordaria. Não tentei ser cauteloso. No fundo, eu tinha vontade de que Teru acordasse e me rejeitasse, mas ele continuou dormindo, e isso me fez sentir ainda mais miserável.
Eu já não entendia o porquê de estarmos sorrindo, ou comemorando o meu aniversário. Era tão estúpido. Eu menti até sobre minha mãe estar viajando a trabalho. No que diabos eu estava pensando?
Quis confessar, pedir desculpas, qualquer coisa, mas as palavras não saíam. Já não restava o que pudesse ser perdoado em mim. Eu só pensava em ferir e violentar, a mim, e aos outros ao meu redor.
— É imperdoável, não é? — o demônio indagou.
— É imperdoável.
— Então não há pelo que se culpar. Ele mereceu isso.
— ... O quê? — Pus-me atônito.
— Terumichi Kinjō mentiu e te abandonou. E como se não bastasse, ele quis arrancar suas asas e te fazer andar com os próprios pés, para sempre.
— ... Não. Eu nunca tive asas. As que todos, inclusive você, acreditavam que eu tinha, eram uma fantasia. Vocês só as viam porque queriam tê-las para si como posses preciosas.
— Fantasia ou não, que diferença faz? Neste mundo, só vale o que as pessoas acreditam que você seja, ou o que você possua. Seja ilusão ou realidade, é esse laço que te conecta a elas.
— Então eu não quero estar conectado a nada, nem ninguém.
Baal Berith riu.
— É esse o seu desejo?
— Sim.
— Se eu tivesse o poder para realizá-lo, você não se arrependeria?
— Eu não tenho mais nada a perder.
— Vem, e vê. O caminho a Veli’hauerya Olla Arcadya está logo adiante.
Olhei de relance, e minha própria silhueta seguiu por um corredor vazio do Museu Nacional de Tóquio. Prontamente, abandonei Teru e o resto da turma para segui-la às escondidas.
No caminho, eu vi coisas nostálgicas, que me remetiam a um tempo em que eu ainda não tinha o nome que tenho. Memórias se homogeneizavam com as minhas feito uma substância fervescente posta na água.
Eu costumava ter um papel. Um bem diferente, bem mais importante do que o meu atual. Era um papel ligado à manutenção da criação. Só tive um vislumbre disso quando abri meu presente de aniversário.
Atalanta Fugiens, a Pedra Filosofal. Esse livro foi a chave magna para destrancar os cadeados da minha verdade.
Eu nunca, nunca, nunca estive verdadeiramente conectado a este mundo. O dia do meu nascimento foi um equívoco porque, desde o cerne primordial do universo inteligível, minha existência não era para a ser.
O lugar ao qual eu pertencia estava bem aqui, neste espaço em miniatura. Aqui, eu não precisava passar por coisas ruins. Eu não me sobrecarregava pensando se era ingrato, ou um empecilho para a minha mãe.
No incessante fluir dos séculos, a história que eu e você começamos permanecia inacabada. Sim, você. Nós trespassamos o trono de deus, e com isso tivemos a chance de, enquanto velhos, voltarmos a ser jovens que podiam se apaixonar.
Ahh, Maier. Meu Maier. Desde que foste embora, atravessei o mundo inteiro em tua busca. Eu te peço, olhe para mim mais uma vez. Preencha o vazio que deixaste em mim. Ó, meu Jardim de Rosas da Sabedoria, sem ti, eu...
— Tsubasa! — chamou-me.
Parado sob a estátua do anjo, me virei.
Você veio, pensei. Assim como Atalanta, você seguiu o rastro de maçãs douradas que eu, Hippomenes, preparei com tanta ternura.
— Teru! Minha nossa, você está suando. O que aconteceu?
— Eu é quem deveria estar perguntando isso. Você sumiu sem avisar. Eu fiquei preocupado.
— Você veio até aqui por mim?
— Mas é claro. O que veio fazer aqui? E que lugar é esse, aliás?
— Eu tinha ido procurar por uma seção em especial, mas acabei parando aqui. Tão misterioso. Não é bem o que eu pretendia te mostrar, mas é lindo, não é?
Você perdeu. Você perdeu a corrida, Maier.
Eu imaginei mil formas de te matar ali mesmo, e usá-lo como o objeto da minha vingança. Mas, tamanha superficialidade de emoções o mandaria para longe do meu alcance, de novo.
Era mais racional condená-lo a catar maçãs por uma eternidade, mantendo sua alma cativa em meu gabinete até o dia da santíssima reintegração. Esse era o seu castigo. A sua punição.
O último beijo que finquei em você expurgou os últimos arrependimentos que o meu corpo tinha em vida. Então, o que uma vez foi o meu eu humano sofreu uma cisão, e se partiu.
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EMBLEMA X
Dê fogo ao fogo, Mercúrio ao Mercúrio, e isto basta para ti.
"A máquina depende da corrente para conectar-se ao mundo.
Em outras palavras, tudo ama seu igual.
Mercúrio a Mercúrio, e o fogo ao fogo.
Estes são os limites da arte; não prossiga mais alto.
Ora, porque Vulcano faz Hermes voar,
e um Hermes emplumado acabará por libertar Cynthia,
que cedeu à luxúria de seu irmão."
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Era o último dia de aula. No toque do sinal, os alunos da turma 3-A se levantaram de suas carteiras duplas, e se retiraram, sem muita animação. Em seguida, foi a vez do professor.
Uma delas tinha ambos os assentos desocupados. Era onde eu e Terumichi Kinjō nos sentávamos, desde o início do terceiro ano. Sobre ela, jazia um vaso com crisântemos brancos.
Nesse mundo, eu fui carcomido pela lei do sacrifício equivalente. Após ser rejeitado na excursão ao Museu Nacional de Tóquio, eu tomei a minha decisão, e desisti da minha vida.
Era uma sensação inusitada, mas não me causava incômodo, em particular. Embora em uma forma imaterial e invisível, eu, como "eu", ainda existia e observava tudo, sob os devidos privilégios de um espectador.
Como será que Teru reagiu? Será que ele sofreu muito? O nome dele não estava mais na identificação da carteira, assim como o meu, então ele devia ter sido retirado da Academia Kinran após a minha morte.
Minha mãe, também, devia estar se corroendo com dúvida e culpa. Ela sempre se importou comigo mais do que consigo mesma, então eu devo tê-la mergulhado em um mundo sombrio, e a essa perda a acompanharia pelo resto da vida.
Apesar de verossímil, tal cenário não me soava como uma realidade natural, e sim como uma possibilidade que eu idealizava nas profundezas da minha mente. O meu "eu" que morreu era alguém diferente de mim.
Ou será que não? E se ele fosse apenas uma extensão de mim, digo, o meu eu do futuro próximo? E se eu realmente morri, e o meu eu de agora fosse sua versão do passado, eternamente congelada numa fração de tempo?
Nesse caso, quem eu era? Eu era Tsubasa Miyashita? Baal Berith? Rudolf II? A Correnteza Eterna? Se eu era a Correnteza Eterna, isso quer dizer que eu nasci da consciência de Maier. Então, eu era Maier? Eu era Terumichi Kinjō?
Talvez, "Terumichi Kinjō" fosse apenas uma persona que eu inventei para lidar com a solidão. Ou o contrário: talvez eu tenha sido uma persona inventada por Terumichi Kinjō, para que ele lidasse com a solidão. Eu não conseguia discernir.
Meu início e o meu fim foram envoltos por um véu opaco, através do qual era impossível espiar.
Segui pelos corredores da escola, até que o teto, o chão e as paredes começaram a se desfazer, dando lugar a uma dimensão vazia. Em meio a um nevoeiro, um objeto brilhava como se fosse uma Lua no céu noturno.
O Ovum Philosophicum. Ele tremia, repleto de rachaduras em sua superfície branca. No momento em que se partisse, todos os mistérios universais seriam revelados, mas ninguém sabia quando, ou como isso aconteceria.
Coma a ponta dos dedos, trisquei nele, e a última etapa da minha conversão se sucedeu. Eu tive uma visão do mundo exterior, e do futuro que me aguardava, e dei um sobressalto. ... Entendo. Então foi por isso que... e-eu...
Num instante, meus olhos arregalados foram tingidos com o ouro que reluz ao dia, e meu corpo vestido com trajes arquiducais. Além do limiar, o meu coração já não era mais um templo de deus, nem uma habitação de satã.
Conquanto sem os óculos, eu via tudo nitidamente. Circulação e inatividade. Contração e expansão. O tudo e o nada. A prodigalidade e a escassez. O isolamento absoluto. O passado, o presente e o futuro.
Sobre as palmas das Mãos do Mundo, encontrava-me eu sozinho entre centenas de milhares, miríades de versões incompletas de mim, que eram tanto o sujeito quanto o predicado. Eu não sabia se a cópia ao meu lado era eu, ou... eu.
Talvez todos os seres humanos fossem assim por natureza.
Mas, se me é permitido revelar, tal condição nem sempre foi imperfeita. O homem já foi um ser unificado e orgulhoso, que não conhecia o conceito de solidão ou morte que o impuseram.
Porque vim a ser o que sou — a Correnteza Eterna —, lembrei-me do tempo em que o Sol, a Lua e a Terra coexistiam, e três eram os gêneros: os Descendentes do Sol, da Terra e da Lua.
Os Descendentes do Sol eram dois homens em um; as Descendentes da Terra, duas mulheres em uma; e os Descendentes da Lua, um par andrógino que dos dois polos tinha.
Numa tentativa de escalar os céus e desafiar os deuses, esses seres gloriosos tiveram seus corpos mutilados em duas partes por relâmpagos cortantes, tornando-se incompletos e movidos pela ânsia de unir-se à metade faltosa.
Eles morriam de fome, sede, tédio, tristeza e ódio por nada quererem fazer longe da presença do outro. Oh, mas era inevitável que um dia uma das metades morresse. A que restava, então, procurava outra para se enlaçar, amar e se autodestruir.
Esse ciclo de sofrimento se repetiria até que os novos humanos decidissem violar seus destinos novamente e se rebelar contra a autoridade dos velhos deuses.
A questão era: como? Sem o poder de um deus para reforjarem a si mesmos na perfeição e pureza do ouro em sua máxima qualidade, eles permaneceriam no mesmo estado para sempre, ou, até serem extintos.
Kush'padme, o filho de deus, era o que havia mais próximo do que fora um humano inteiro. Isso instigava uma memória genética primitiva. No entanto, para os homens divididos, ele era um dragão, e não um ser humano.
Devido a isso, não se percebia que Kush'padme não era a única chave para os Mistérios da Conjunção. Cada indivíduo a possuía em si, mas a condição à qual foram impostos restringia o acesso a esse fator transformador.
Em outras palavras, todos já fomos como Kush'padme. Ao visitarmos o interior de nós mesmos, retificando-nos, encontramos a pedra oculta. Algo de mesmo valor e significado que o sagrado, ainda que vil e enfadonho.
O dragão não passava de um humano em seu estágio primordial.
Hermes Trismegistus foi influenciado pela mesma lembrança inata que o impelia à húbris, tal qual seus antepassados, mas ele buscou as sabedorias milenares e achou a solução para a alcançar a Transmigração.
Seguindo tal lógica, os homens de barro que ele criou eventualmente teriam as mesmas aspirações. O potencial deles era tão grande quanto o do criador, pois lhes foram dadas as ferramentas que este nunca teve em vida.
O Sol Sagrado abrasou, e Arcadia se reduziu a um fragmento do que uma vez foi totalidade. Era como uma maldição geracional. Toda tentativa de obter mais do que permitem as limitações terminava em uma punição.
Usando de uma analogia mais simples, pode-se pensar em um pai que obriga os filhos a passarem pelas mesmas dificuldades que ele vivenciou, a fim de que amadureçam e de alguma forma se tornem seus espelhos egoicos.
Eles devem ser punidos como eu fui. Não é justo se eles não sofrerem o mesmo tanto que eu sofri. Ora, por que eu devo ser o único a passar pelo tormento, quando eles cometeram o mesmo pecado imperdoável?
Era o que pensavas.
Do desespero diante da extinção, se disseminaram conceitos aos quais fomos familiarizados. Messias. Santos. Heróis. Isto é, existências detentoras de um poder não comumente possuído. Nós os criamos, pois carecemos deles.
A cultura em torno do pergaminho do meu pergaminho foi construída em torno disso. Eu, como o abutre, fomentei por 333 anos a crença em um menino salvador que libertaria a humanidade de seu fardo e restituiria a dignidade perdida.
Era um destino mais pesado do que a morte individual, pois nele, não havia um nome, e sim um título. Adentrá-lo era condenar-se, enquanto jovem, a andar sem os pés, subindo em vão ao topo do grande monte em busca um milagre.
Porém, esse sacrifício era necessário em nome de um propósito maior, e para compensar pelos tropeços do meu criador.
Por acaso não previste consequências dos teus atos, sendo onisciente? Impensável. Até mesmo eu, no meu estado atual, possuo discernimento a respeito disto. Teria tu deixado se desdobrar, então, como parte do opus?
Fazendo da criação um reflexo de teu ser, huh. Isso diria muito sobre o tipo de deus que tu és, Maier. Bom, não importa. Os eventos já haviam entrado em curso para que nossos objetivos fossem cumpridos, uma vez consumado o dia da minha ira.
Tu voltarás para mim por inteiro. Eu dou a minha palavra.
— Desde o início, foi esse o intuito da Corte dos Heróis? — indagou uma mulher alta e esguia, de cabelos curtos cacheados. A íris de seus olhos era da cor do citrino. Uma de dois, chamavam-lhe de Pollux.
— Vejo que sua consciência foi retida, mesmo após a morte do corpo físico dos dióscuros. O Kunstkammer é mesmo cheio de surpresas.
— Por acaso tem noção de quantos fez sofrer? Você é a maldição que afogou o nosso mundo na ruína e na miséria.
— Maldição? Que forma cruel de se referir a mim.
Impus as mãos sobre o meu tesouro — o exemplar do Atalanta Fugiens —, e a partir dele projetei incontáveis figuras e diagramas sobre o altar.
— Nosso intuito não é nem de longe maligno. A fórmula alquímica mais tarde conhecida como “Declínio” era originalmente voltada a separar a alma humana do corpo. Um mecanismo que facilitaria o processo de reintegração em um novo receptáculo.
— Novo receptáculo...? Pretende recriar a humanidade como uma nova espécie?
— O oposto disso: restituir a unidade perdida. Livrá-los do medo da morte, e da dor de estarem separados de suas metades. Esta é a vontade de deus — expliquei. — Porém, naquela época fatídica, ainda não era possível estocar a alma humana em “contêineres”, e quando esta se descolava da forma física, dispersava-se.
Assim dizendo, chegasse o dia da minha retribuição sem que um herói digno alcançasse Messias, Arcadia pereceria, e o objeto do experimento também.
Por mais que o Filho de Trismegistus fosse reunido com os jardins, já não teríamos espíritos com os quais trabalhar, e esse seria o fim definitivo do legado divino.
Seria lamentável.
— Mas com você foi diferente, Pollux de Carmenta — continuei. — Graças ao Kunstkammer, seu espírito e os dos outros heróis transformados em ouro pelo topázio imperial foram armazenados antes de se perderem. É por isso que você ainda pode falar, pensar, até ter uma forma separada de seu alter. Impressionante. Tenho uma ideia do porquê disso, mas, por hora, só posso especular.
— Meu alter? Castor?
— Por acaso, você já se sentiu vazia? Como se um pedaço de você estivesse faltando, e isso trouxe saudade e desejo por algo que você não sabe o que, ou quem é. Talvez, esse pedaço já tenha morrido.
— ...
— É doloroso, não é? É uma dor da alma da qual nem um deus humano pode escapar, quem dirá seus filhos.
Sim. Envenenado por húbris, o meu criador sofreu com um grave erro de direção. Sem mim, a performance de sua divindade foi falha, humana demais, e acabou que ele se destruiu sozinho.
Esse fracasso não podia se repetir. Antes que a criação se perdesse, o filho pródigo tinha como papel reivindicar o nome de Maier, ou melhor, Hermes Trismegistus, que lhe era de direito.
— O que acontecerá aos nossos povos? — ela perguntou, irrequieta.
— Não tema por seus conterrâneos. Seguindo o sistema que elaborei, a reintegração de deus, a restauração da moral humana e a salvação de Arcadia serão um sucesso.
— Você diz isso, mas não sinto apreço seu por nós.
— Meu apreço por vocês é nítido. Ora, o que é um deus sem sua criação? Sem vocês, ele não existiria. Escute, não há com o que se preocupar. O seu papel como herói acabou, mas você também terá parte na glória vindoura.
— Por favor, deixe-me ver meu irmão.
— Ah, é mesmo. Como descendentes diretos do Elo Perdido, é natural que um duplo se depare com o desespero da divisão; o de querer ser precioso para alguém. Mas, você tem certeza de que Castor de Carmenta é a sua outra metade?
— Onde ele está?!
— Eu não sei.
— Não sabe...?!
— Ele poderia estar em qualquer lugar, em qualquer época. Nossa conexão com as Mãos do Mundo está numa condição oscilante. Pode-se dizer que essa experimentação divina, apesar de bem-sucedida, foi um tiro no escuro. Ela está sujeita a uma série de casualidades. Além do mais, o meu poder é limitado, okay? Peço encarecidamente que não me pressione.
Após um longo silêncio, ela me deu as costas e marchou ao passadiço sem fim.
— Já vai embora? — perguntei.
— Não é aqui que eu deveria estar.
— É uma pena. Eu ainda tinha utilidade para você. O Kunstkammer é um lugar solitário, sabe.
— Contam-me histórias desde que me conheço por gente, e o teatro dos deuses sempre me enojou. Eu nunca me interessei em tomar parte na jornada ao Messias. Entrei nisso por amor ao meu irmão, então eu preciso achá-lo, onde quer que ele esteja, e dizê-lo a verdade.
— E se acabar descobrindo que ele não é quem você espera?
— O desejo dele era viver e ser aceito como um humano. Se isso nos trouxer sofrimento, eu aceitarei o fardo ao seu lado.
— Votos tão nobres. Desejo-te boa sorte.
Viver, e ser aceito como um humano. Seria bom se pudéssemos desfrutar disso.
Vá, procure por outro ser incompleto para que, juntos, destruam a si mesmos. Ou morra sem o alcançar.. Não há fuga do fundamento originário enquanto divididos e atrofiados. Nas profundezas do abismo, os pássaros têm fome e sede.
Assim que sozinho em meu domínio, passei pelo setor de vigilância das câmeras de segurança, avistando uma figura reconhecível. Cabelos castanhos claros, e olhos escuros. Pele levemente bronzeada. Sardas em seu rosto.
Oh, sim. Eu, também, tinha de me encontrar com a metade que perdi. Minha alma gêmea, ligada a mim por tênues fios áureos. Após ser derrotada, ela continuou disputando. Correndo atrás de mim, chamando-me pelo nome abandonado.
— Então me diga o seu novo nome. Independentemente de qual for, eu vou aceitá-lo. Dessa vez, vou aceitar tudo em você.
— Tudo?
— Tudo.
Suas súplicas não terão poder sobre mim, Teru. O que você via de tão precioso em Tsubasa Miyashita se desmanchou como pó entre os seus dedos. Nada disso existe mais, se é que uma vez existiu.
Agora, contemple. Eu sou a retribuição que impõe controle sobre ti. Tu não se esquecerás dos nossos Mistérios da Conjunção. Não aqui. Só eu decido quando o teu coração vai bater, e quando vai parar.
Eu sou oco, mutilado pelo passado, e, portanto...
— ... você nunca aceitaria tudo em mim — proferi.
No que saquei o punhal de seu peito, ele desabou. Eu o assisti agonizar até seus movimentos involuntários cessarem, e a vida deixar seu corpo. A poça de sangue crescia, e com ela, uma ansiedade borbulhante dentro de mim.
O forno cósmico emitiu um chiado agudo, e liberou uma cortina de vapor. Um coro de vozes que se emaranhavam, e eu não compreendia o que diziam. Uma “chorava”, outra “queria viver”, mas nenhuma delas me pertencia.
Não me perdoe. Não ouse lavar os meus pecados com um mísero abraço, pois não é disso que necessito.
Meu deus, meu Messias, torna-te um com o Pai de Todos os Milagres e comigo. Seremos os que corrigirão os feitos deselegantes dos velhos deuses. Só tu podes suprir o amor que falta ao universo. Só tu podes me salvar de mim mesmo.
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EMBLEMA XXX
O Sol precisa de Luna, como o galo da galinha.
"Ó, Sol! Tu não fazes nada sem minha força ao teu lado.
É igual ao galo, inútil sem a ajuda da galinha.
Estando eu, Luna, presente, solicita meu auxílio,
como o galo solicita o da galinha.
Louco é aquele que quer desatar os laços do que,
por natureza, exige uma outra metade...!"
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Hey, aqui é o Rafa!
A partir deste capítulo, farei uma pausa para focar nos trabalhos finais da universidade. Nesse meio tempo, também continuarei a revisão dos próximos episódios e a criação de conteúdos adicionais. Precisarei de tempo para que eu possa oferecer o meu melhor, mas espero retomar a publicação em meados de dezembro!
Muito obrigado por ler Os Prelúdios de Ícaro até aqui. Por favor, continue acompanhando o meu trabalho. Você também pode me encontrar no Bluesky e no Twitter, onde posto ilustrações e extras de vez em quando.