Volume II – Arco III
Capítulo 35: A Asa
Neste mundo, existem erros considerados imperdoáveis.
Eles podem ser crimes perante a justiça, atos que violam a integridade social, traição, violência. São muitas as possibilidades. O que é ou não perdoável pode depender de uma legislação, até de pontos de vista culturais e pessoais.
No passado, houve um erro que cometi apenas por existir. Eu murmurei pedidos de desculpas várias e várias vezes, mas fui punido do mesmo jeito. Sendo assim, talvez esse erro em específico não merecesse ser perdoado.
— Beija! Beija! Beija! — Eles batiam palmas, aos risos e cochichos do público.
— Vai, Miyashita! Você não é gay? Então não faz mal!
— É, não precisa ser tímido! Se você vai beijar outro cara, a galera tem que ver!
Os alunos riam e cochichavam pelo refeitório. Outros observavam de uma distância segura. Eu via os tutores, os adultos que supostamente deveriam ser responsáveis por nós, nos ignorando, mexendo nos celulares pelos cantos.
Seria melhor se pessoas como ele não estivessem aqui. Se ele não fosse assim, não passaria por isso. Se não todos, ao menos uma parte das pessoas ali pensavam isso. Talvez até o meu melhor amigo, que se escondia na multidão.
Existe um círculo invisível que divide os que estão do lado de dentro e os que estão do lado de fora. No meu primeiro ano do ensino secundário alto da Academia Kinran, eu fui expulso para fora desse círculo.
Eu me tornei alguém "errado" aos olhos das outras pessoas. Um empecilho, ao mesmo tempo que invisível.
✤ Fugiens VI, “AS MÃOS DO MUNDO” ✤
Minha mãe me teve quando ainda era muito nova. Ela era uma jovem impulsiva, que fugiu da casa dos pais para se envolver com gente perigosa antes de me dar à luz. Coisas envolvendo organizações criminosas transnacionais.
O homem com quem me teve se separou dela após a descoberta da gravidez. Ele não aceitava ter filhos, pois isso o prejudicaria. No entanto, ele até que mantinha contato ocasional, e nos mandava umas quantias de dinheiro.
Menos mal, eu disse a ela, quando fui contado sobre isso. Eu era uma criança muito sincera.
Nós vivíamos bem. Não éramos ricos, mas não nos faltou nada, e a mim foi dada uma infância decente. Eu era grato por isso, e nunca dei a ela outra preocupação além de ser “calado demais”, “tímido demais” na escola.
— Como pode ver, senhora Miyashita, Tsubasa possui habilidades extraordinárias quando trabalhando com conceitos e imagens — disse um homem de óculos e jaleco branco.
— Conceitos e imagens?
— Sim. O motivo de ele não interagir pode estar atrelado às diferenças entre interesses. O que chama a atenção dele não é brincar, como é para as outras crianças na faixa dos oito anos, então ele acaba um pouco... deslocado, principalmente durante as atividades recreativas. Os gostos dele são muito maduros para a idade.
— Tem algo que possamos fazer sobre isso?
— Se suas potencialidades forem exploradas em um ambiente propício, Tsubasa poderia desenvolver habilidades interpessoais tão surpreendentes que ele cresceria para ser um grande líder! — Ele tirou da gaveta um panfleto e deu nas mãos da mamãe. — Tome, este é um folheto com o contato da Academia Kinran.
— Academia Kinran? Não é essa a escola de prodígios?
— Eles oferecem educação integral para crianças com altas habilidades, contando com escola média e secundária alta. É atualmente o melhor lugar para que pessoas como ele encontrem o suporte necessário. Tenho certeza de que ele se encontrará lá.
— Ohhh! Não é ótimo, Tsubasa?
Um grande líder, como os reis e imperadores dos livros.
Eu não entendia bem o que eles queriam dizer. Para mim, tudo o que fiz naquele dia foi preencher alguns testes com figuras estranhas e responder questionários de lógica matemática.
Eles pareciam fáceis, mas me disseram que a maioria das crianças não chegava nem na metade e desistia de completá-los. E, pelo visto, isso me fazia mais inteligente do que elas.
Mesmo no projeto de educação integral, meus resultados se destacavam. Eu era civilizado e impassível. Aprendi a tocar piano, compor músicas, e me especializei em matemática e física.
Por meu jeito elegante, fui apelidado de “pequeno príncipe”.
Isso também se devia ao fato de eu ser baixinho. Desde meus quatorze ou quinze anos, eu não mudei muito, nem em aparência, nem nos meus modos.
Ao término da minha formação da escola média, a mentoria confiou a mim o dever de continuar o legado das ciências. Me foi oferecida uma lista de bolsas de estudo, e vagas gratuitas em diferentes universidades.
Isso estava longe de ser o que eu queria fazer da minha vida. O meu sonho era ingressar na Faculdade de Música de Tóquio, em Meguro, e estudar para me tornar um bom compositor e pianista. Trabalhar com o que eu amava.
Contudo, eu segui à deriva.
Assim que seguimos para o ensino secundário, mesmo com as baixas de alunos e a mudança drástica de cenário, eu acreditava que o meu reinado continuaria. Isto é, até que surgiu um garoto tão brilhante quanto o Sol de meio-dia.
Rapidamente, ele me impeliu para o segundo lugar, e a competitividade entre os outros alunos inflamou. Os rankings eram tudo. Estar no topo era uma obrigação, e um novato chegar até lá era considerado um absurdo.
Eu era um dos poucos que não estava nem aí para isso, talvez pelo primeiro lugar ter sido meu ao longo de várias séries consecutivas.
Digo, tudo bem que fomos inscritos lá porque disseram que éramos gênios e que tínhamos muito potencial, mas precisávamos aceitar que não chegaríamos no patamar dele, não importa o quanto tentássemos.
Além de ser inteligente, ele era comunicativo e sociável. Em aparência, ele chamava bem mais atenção do que eu. Um garoto bonito. Era um pouco ingênuo, mas só de existir, as pessoas já o percebiam, e o amavam.
O meu amigo mais próximo na época, Makoto Kaneshiro, era uma exceção. Dada a confusão entre seus sobrenomes, ele se sentia diminuído, e desde a chegada triunfal do rival, teve o nome removido do valioso Top 3.
Eu o dizia para não ligar, mas era inútil. O crescente complexo de inferioridade batia mais forte.
— Não ligar? — rebateu. — Como diabos eu não vou ligar para o panaca que chamam pelo meu sobrenome todos os dias?! Ele roubou o meu lugar, Miyashita!!
— Roubou? Makoto, você sempre esteve em terceiro. É óbvio que se qualquer um viesse e passasse de mim ou da Amemiya, você sairia do Top 3.
— Não importa! — Deu com o punho na mesa. — Ele já chegou se achando o maioral, mesmo que nós estejamos há muito mais tempo nessa escola do que ele! Nós batalhamos por isso durante anos, enquanto ele não se esforçou para nada! Acha mesmo que alguém assim merece estar no topo? Acha isso justo?!
Que idiota.
Makoto e eu nos gostávamos, mais do que como amigos. No início foi algo platônico, mas, com o tempo, os sentimentos se intensificaram. Mesmo sendo menores de idade, não era incomum o contato sexual entre nós dois.
Como é de se imaginar, não assumimos isso publicamente. Eu e ele estávamos no armário.
Porém, a situação com o tal do Kinjō acabou por prejudicar ainda mais a condição mental delicada dele, e, consequentemente, respingou na nossa relação. Makoto ficou agressivo, assombrado por paranoia.
Por conta de problemas com o irmão gêmeo — Mikoto Kaneshiro —, a cobrança excessiva e a negligência emocional por parte de sua família, ele odiava o pensamento de estar sendo substituído por alguém.
Pelo menor dos motivos, assumia que eu estivesse tomando o partido do Kinjō sem o levar em consideração. Então, começou a se afastar de mim e a me tratar hostilmente.
Nós estávamos juntos há meses. Eu nunca precisei me confessar, como diziam os boatos. Isso foi uma mentira que Makoto inventou entre seus colegas para, de alguma forma, me punir.
Isso se se alastrou bem depressa, igual a uma praga. Até os professores e coordenadores escolares ficaram sabendo, e o olhar deles para mim deixou de ser um de admiração.
Quando as perturbações começaram, eu não dei a mínima. Me ensinaram que eu não devia me importar com as coisas ruins que falam de mim. Porém, foi questão de tempo até piorar.
Meu rendimento caiu. Eu desci do Top 3 e perdi as bolsas de estudo. Parei de tocar piano. Eu já não sabia como me explicar para minha mãe. Ela sacrificou muito para me botar ali.
Mesmo se eu saísse, segundo o contrato de fidelidade, ela continuaria a pagar até o fim do meu terceiro ano. Já haviam investido dinheiro demais em mim para pular do barco.
Eu não sei. Eu não sei. Para que ela parasse de fazer perguntas sobre o meu estado, eu mentia.
Caso eu tivesse contado tudo, eu tenho certeza de que ela teria me tirado de lá. Eu conhecia a mãe que eu tinha. Mas, a minha boca não se mexia. Eu não conseguia tirar isso do meu peito.
Eu estava perdendo a motivação para ser o pequeno príncipe. A despeito de tudo o que idealizavam em mim, eu quedei para trás. Minhas notas altas não valiam mais nada.
O que eu deveria fazer? Mudar? ... Não. Já era tarde demais para isso. Uma coisa dessas só seria possível se eu fosse embora para outra escola, e começasse do zero como uma pessoa diferente. Ou, nem assim.
Eu desisti. Se o fato de eu ser assim era ruim aos olhos de todos, independentemente do que eu fizesse, por que me dar o trabalho de tentar ser bom? Por que me desgastar para ser alguém que eu não era?
ᛜᛜᛜ
Liguei o reprodutor de música. Prelúdio, Op. 28, nº 4. Frédéric Chopin.
Minha família era católica. A mamãe não era praticante, mas tentou me ensinar algumas virtudes desde bem cedo. Dizer a verdade. Ser gentil e compassivo. Fazer o bem para as pessoas. Esse tipo de coisa.
Eu era ateu. Ao longo da minha adolescência, me interessei por ocultismo, misticismo e alquimia como um hobby, e, ao longo do suplício que eu vivia na Academia Kinran, me afundei nisso como uma forma de escapismo.
Corpus Hermeticum.
O Caibalion.
Finis Gloriae Mundi.
O Tratado Sobre a Grande Arte dos Sábios.
Rosarium Philosophorum.
O Tratado da Natureza do Ovo dos Filósofos.
Turris Babel.
Arca Noë.
A Entrada Aberta ao Palácio Fechado do Rei.
Amphitheatrum Sapientia Aeternae.
Atalanta Fugiens.
Nestes textos seculares, eu encontrava coisas que nenhuma daquelas pessoas estúpidas pensaria em conhecer. Era algo só meu, feito apenas para mim. Uma hora só minha, onde minha única companhia era eu mesmo.
Imerso em uma miríade de palavras e conceitos difíceis, eu não precisava me preocupar com ser isso ou aquilo. Ninguém entenderia, de qualquer maneira. Ficariam até acuados em fazer perguntas. Isso me servia bem.
Na minha melodia fantasiosa, eu não era mais um humano. Eu era algo maior. Um deus.
— Quem está tentando enganar? — perguntou uma sombra, mascarada de Tragédia, olhando-me pelo reflexo do espelho do banheiro. — Você só não aguenta mais, não é?
Havia lâminas de gilete ensanguentadas na torneira. Pequenos cortes nos meus pulsos, ombros e coxas. Eu os fazia porque sentia que, assim, a dor era mais suportável.
Transformando-se em Comédia, a sombra abraçou minhas costas, afagando as minhas feridas. Com os olhos esbugalhados, tremendo da cabeça aos pés, eu não movia um músculo.
— Olhe só para isso. Eles fizeram tanto mal a você. Te humilharam e menosprezaram. Ao invés de se rebelar, você prefere perder tempo lendo esses textos inúteis? Vamos, pode dizer. É imperdoável, não é?
— Imperdoável?
— Sim. É imperdoável. Eu sei que é. Mas eu tenho uma ideia, uma melhor do que a sua, diga-se de passagem.
— Nenhuma ideia vinda de um demônio poderia ser boa.
— Para você, eu sou um demônio?
— Você é Berith. O duque Baal Berith, o vigésimo oitavo demônio segundo a Chave Menor de Salomão. O cheiro do meu sangue te chamou. Eu sei tudo sobre você.
— E eu, sobre você.
— Sobre mim?
— Sim, você. E eu também sei de outras coisas mais. Que a sua vida tem girado em torno de uma profecia, e você sente que não tem escolha a não ser cumpri-la até o fim — dizia. — Simplesmente parar de tentar ser bom não vai te ajudar em nada. Vamos trocar de lugar, e então tomaremos uma atitude à altura. Com essas mãos, faremos algo terrível, e seremos os maus da história.
— Algo terrível... tipo o quê?
— Vamos matar alguns deles como sacrifício a mim. Três, de preferência. Com uma faca, perfure o coração de cada um. Até que o sangue deles se esgote, deixe que toquem os prelúdios. No dia prometido, o dia da Correnteza Eterna, só a sua ira deve prevalecer.
Peguei o pote da escova de dente, e o atirei para trás.
Ofegante, me agachei e fechei os olhos. Minha cabeça parecia estar a mil. E-Eu precisava me lavar. Eu exagerei na profundidade dos cortes, sem perceber, mas tudo bem. Depois, era só esconder com a manga comprida.
— Tsubasa? Que barulho foi esse? Está tudo bem aí? — minha mãe perguntou da cozinha. — Venha jantar!
... Como eu me deixaria fazer uma coisa dessas? Vingança não leva a lugar algum. Foi o que ela, a mamãe, me ensinou. Tudo o que eu podia fazer era ficar quieto e suportar, e rezar para um dia acabar.
Mas... os dias eram sempre os mesmos. As pessoas eram as mesmas, e eu já estava cansado de ter que olhar na cara delas. Estava cansado da falsa gentileza, dos olhares de pena. Eu não suportava mais.
Eu continuei a me afastar, e evitar qualquer interação social com as pessoas da minha turma, até que aquele menino parou ao lado da minha carteira. Ele, que tinha o sorriso mais radiante do mundo inteiro.
— Miyashita, vamos fazer o trabalho juntos?
— ... Juntos?
— Sim! Tem algum problema pra você?
— Nenhum.
— Ótimo! — Ele puxou a cadeira, e trouxe seu material para a mesa. — Ah, pode me chamar só de Terumichi.
— Certo. Me chame de Tsubasa.
— Então tá bom! Espero que sejamos bons amigos. É um prazer, Tsubasa!
Terumichi Kinjō era gentil como o chegar da primavera. Ele era o amanhecer dourado por trás das pétalas da cerejeira. Eu me sentia culpado por estar ao seu lado, com medo de sujá-lo com as fofocas que me cercavam.
No começo, eu resisti à tentação de me aproximar, pois temia que as coisas acabassem como foi com Makoto. Com o mesmo kanji se escrevia os sobrenomes de ambos, afinal. Mas eu fui vencido. Não havia como não ter sido.
Alguém como eu jamais conseguiria emitir um brilho tão intenso e caloroso quanto o dele, e eu me sentia confortável e aconchegado ao seu redor. Ele era o Sol, e eu a Lua que ele iluminava.
O tratamento dele para comigo, bem mais íntimo do que para com outros meninos, me dava a entender que meus sentimentos tolos eram recíprocos. Cada carinho, meu e dele, transmitia isso.
Um Clair de Lune, de Debussy, tocava em repetição dentro do meu coração. Os únicos momentos em que me senti amado e especial naquela escola foram quando estávamos juntos.
Na verdade, Teru era como o meu deus.
Ele era um deus humano no qual eu encontrava afago para as minhas feridas. Eu tinha um lugar guardado para mim, em alguém. E, por mais simples que isso parecesse, ser agraciado com isso era quase um... milagre.
Makoto não ficou nada feliz com a nossa proximidade. Ele ainda resguardava sua obsessão por mim, e, mesmo depois do que fez, não aceitava que eu fosse feliz com outro alguém, muito menos com seu nêmesis.
Na visão dele, eu estava me vingando, e voltou a espalhar boatos para me dar o troco.
Eu não deixaria que outra pessoa passasse pelo mesmo que eu por minha culpa, então propus que Teru e eu nos afastássemos, ao menos enquanto estivéssemos dentro da escola.
Era por uma questão de segurança, mas, bem no fundo, eu ainda desejava que ele me dissesse que não se importava, e que estaria comigo, mesmo que também acabasse sendo um alvo.
Uma loucura, né? Quem em sã consciência iria aceitar sofrer bullying?
Eu me sentia sozinho. Tantos outros alunos se divertiam nos intervalos e participavam de clubes, mas para mim era diferente. Para mim, frequentar espaços públicos era um risco.
Onde quer que eu fosse, aqueles alunos estariam lá para revivar minha comida e rasgar meus cadernos. Me dar empurrões, chutes, e sumir com o meu uniforme na volta da educação física.
Gritar comigo, e me chamar por apelidos caso eu andasse sozinho nos corredores. Jogar a minha maleta no vaso sanitário. Encher meu material de papéis amassados, mandando me matar.
Eles faziam chacota quando eu apresentava trabalhos, criticando a minha voz baixa. Criavam páginas e contas falsas para me humilhar nas redes sociais. Nos comentários, as risadas dos nossos colegas de classe.
A secretaria, os professores, a diretoria, todos sabiam. Para não manchar o status da escola, varriam o problema para debaixo do tapete, e o mesmo era com as vítimas de outras turmas e séries.
Uma ou duas vezes por semana, Makoto me convidava para sua casa ou me puxava até cantos mais escondidos da escola para transarmos. Era como aliviávamos a tensão, nós dois.
Eu tinha ciência de que o que eu estava fazendo era errado. Quer fosse mentira ou verdade, eu só queria fugir. Ouvir alguém dizer que me amava, e me embriagar com estímulos sensoriais.
Por medo, eu me sentia incapaz de rejeitá-lo, mas uma hora o meu corpo começou a reagir involuntariamente. Meus cortes reabertos doíam. Isso machucava. Eu não queria mais.
Uma vez, ele me agrediu e me trancou dentro de seu quarto até eu tirar minhas roupas e me submeter. Me disse que se eu recusasse, ele me mataria estrangulado, e se mataria depois.
Eu obedeci.
Comecei a alegar doença para evitar a escola. Minhas notas voltaram a despencar. Eu não lia mensagens, nem atendia ligações. O limite de faltas estava quase sendo atingido. Se eu continuasse escondido, seria reprovado.
Ao meu retorno, Makoto fingia não me conhecer, o que me convinha, já que eu não queria mais vê-lo e nem ouvir sua voz irritante. Ergueu-se uma muralha de silêncio entre nós dois, e seria melhor se ela continuasse assim, de pé.
Na primeira semana após as avaliações, conheci um calouro de uma série atrás. Hifumi Itō. Um menino fofo, de um pouco mais da minha altura. Bochechas grandes, olhos redondos. Ele era gay, e sofria perseguição em sua sala.
Como as postagens maldosas na internet chegaram em diferentes grupos, ele já deve ter vindo com segundas intenções. Tanto é que, em uma semana, já se derretia por mim. Eu me aproveitei de seu interesse para me satisfazer.
Por um infortúnio, fomos pegos trocando carícias.
Levaram-nos até o refeitório, onde nos forçaram a um beijo público. Gravações, e flashes de câmera. Sabe-se lá quantos mais veriam isso nos grupos da escola, e tirariam sarro de nós.
Era um destino premeditado, inevitável. Por não ter um lugar para onde fugir, nem ninguém para me defender, eu optei por arrastar uma alma qualquer para arder no inferno comigo.
Teru não faria nada por mim. A única vez em que ele se levantou contra meus agressores foi para defender a si, quando acusado de ser homossexual por andar comigo, e de ser meu amante.
Ele não se pôs nem remotamente em meu favor. Era óbvio que quando eu mais precisasse de socorro, a única pessoa que eu esperava ser a minha voz — a minha luz — ficaria calada.
Nada do que fazíamos juntos valia o suficiente para ele tomar uma atitude por mim. Ninguém tinha o poder para me tirar dessa posição degradante a não ser eu, e somente eu.
— Volte comigo, Miyashita — demandou Makoto, na semana seguinte.
Restávamos nós na sala vazia. O entardecer alaranjado me chamava atenção
— Por quê?
— Eu preciso de você. Não posso me dar ao luxo te perder para o Kinjō.
— Que fofo. Então tudo o que você fez foi por amor a mim.
— O quê?
Levantei-me, e caminhei até ele.
— Eu acho que você está um pouco confuso, então eu vou te dar uma ajudinha. Não importa o quanto você tente, você nunca será Terumichi Kinjō. Ele está além de tudo o que você pode ou poderia ser.
— Miyashita...!! — esbravejou.
— Vá em frente. Infernize minha vida ainda mais. No fim, isso não muda em nada — disse a ele. — Você é uma farsa, Makoto. Um invejoso. Você perdeu pra ele em absolutamente tudo. E quer saber? Até na cama ele é melhor que você.
— O que disse?! — Perdendo a paciência, ele me segurou pelos ombros, quase me espremendo. — Você fez junto com ele? Quando?!
— Eu não me ative às datas. Foram tantas vezes.
— M-Mentiroso, mentiroso!! Sua puta! Se você continuar a me provocar, eu vou fazer coisas que você não gosta. E-Eu vou ser um menino mau, com você, e com ele...!
— Me diz, o que você vai fazer?
— Se você não voltar comigo e fechar esse bico, eu vou te quebrar em mil pedaços. Eu vou cortar essas asinhas caprichosas para que não voem mais.
Subitamente, o puxei pela gravata e o rendi contra a parede.
— As minhas asas já foram arrancadas há muito tempo. O mínimo que você poderia fazer é lamber a ferida que elas deixaram. Faria isso por mim?
Eu o beijei à força, gemendo alto o bastante para envergonhá-lo. Eu permaneci passando minha mão em seu peito, e no volume de sua calça, por vários segundos, até que ele me empurrou.
— Largue-me, aberração!
— Hahahaha! O que foi? Você se acostumou mal com o garotinho submisso que eu era.
— Não tem vergonha de ser assim? O que te tornou tão depravado?! — Abotoava a camisa, transtornado.
— Makoto, vá embora.
— Você não é ninguém para me enxotar.
— Eu gravei tudo. — Tirei o celular do bolso, e dei um clique. — Estou pensando em reproduzir o nosso áudio nos alto-falantes da escola. Uma notícia bombástica: o encontro entre dois amantes secretos no corredor da secretaria. Makoto Kaneshiro e o gay promíscuo Tsubasa Miyashita. Uma programação e tanto.
Ele empalideceu.
— E-Está brincando. ... Só pode estar de sacanagem comigo.
— Naquela vez, você disse que me mataria e se mataria depois. Sendo assim, creio que você não se importe de vir para o inferno, contanto que seja comigo. O que acha?
— Seu demônio! Você se aproximou do Kinjō apenas para me-...!
— A culpa é sua por ser tão burro. Você devia ter me deixado em paz. Agora, Makoto, vá embora dessa escola. Se voltar a aparecer na minha frente, eu vou devolver em dobro o que você me causou.
No dia seguinte, ele não veio. Nem no outro, e nem no outro.
Era mentira que gravei. Foi só um blefe. Mas ele era do tipo que acreditaria em qualquer coisa se a imagem de perfeitinho que mostrava para as pessoas estivesse em jogo.
Isso também provou que ele não tinha coragem de me matar de verdade, tampouco de se matar. Ele teve medo de mim. Valeu o risco, pois percebi o quão ridículo e insignificante ele era.
Além disso, ele deve ter arrumado uma bela desculpa para seus pais o tirarem de uma escola tão cara e prestigiosa. Imagine o drama e a cara de bebê chorão que esse pateta fez.
Não nego que foi uma experiência prazerosa. Eu fantasiava torturá-lo, estuprá-lo, humilhá-lo de todas as formas, e depois matá-lo do jeito que o demônio sugeriu, mas assim também era bom.
Quando seu nome na chamada foi marcado com “saída voluntária”, não pude segurar o riso.
— O que foi, Tsubasa? Viu algo engraçado?
— Não foi nada, Teru. Eu lembrei de um meme que vi ontem.
— Me manda!
Eu finalmente cheguei na resposta que procurava.
Esvaziando o meu interior e vestindo uma máscara, eu não sentiria dor. Pelo contrário, eu me aproveitaria disso para encontrar um prazer e me embebedar disso até não querer mais.
Envolvi-me com rapazes de todas as séries do secundário alto, até com alguns que ainda estavam na escola média, e incorporei uma miríade de versões distintas de mim.
Eu não era eu. Eu era quem quisessem que eu fosse. Eu podia ser tanto o Tsubasa promíscuo dos boatos quanto o que viesse na minha imaginação. Bastava uma performance.
Sendo assim, nem o nome “Tsubasa Miyashita” me cabia mais. Ele não passava de uma crisálida que abandonei após me metamorfosear. Eu jamais voltaria a me esconder dentro dela.
O único feixe de luz que ainda me conectava ao meu antigo eu era o que vinha do meu Sol que não se punha. Um Sol Sagrado que fazia minha pele borbulhar com um fogo afável.
— Tsubasa.
— Sim?
— Obrigado por ser meu amigo.
— ... P-Por que está me agradecendo, Teru?
— Eu não sei. É só que... você é o melhor amigo que eu poderia ter pedido na minha vida.
Por “Tsubasa”, a que versão de mim ele se referia? Seria o meu eu doce e inocente, levemente brincalhão, que eu encenava para ele dia após dia?
— Acho que você está querendo me pedir alguma coisa — comentei, em um tom sarcástico. — O que será, hein? O que será?
— Não...! Eu só queria agradecer!
— Estou brincando, bobo! Como foi na entrega das medalhas da Olimpíada Nacional de Ciências?
— Foi bom. Eu senti sua falta lá — ele disse, pondo-me em alerta. — Mas eu entendo. É porque todo mundo lê o meu nome errado, né? Não quero que você vá só para se sentir mal, Tsubasa.
Você não entende. Você não entendeu nada, Teru. Hahaha. Que coisa. Você dificilmente prestava atenção em mim de verdade, não é? Tive essa impressão, em uns momentos.
Àquela altura, eu não podia me importar menos com Makoto Kaneshiro. Eu não ia aos eventos era porque, em todos, as pessoas que me importunavam estavam presentes, e você não os repreenderia por me isolarem, me tratarem com entojo.
O período letivo passava e eu percebia que minha situação caía no esquecimento durante nossas conversas. Você preferia maquiar nossa relação, tratando-a como a amizade dos seus sonhos do que aceitar que eu estava no fundo do poço.
Onde quer que eu me metesse, você procurava por mim apenas para que se sentisse melhor consigo mesmo e com o seu luto. Era a razão pela qual você ainda me chamava por aquele nome. Pela qual você me enchia de agrados.
— Oh. Isso é...!
— É uma edição colorida do livro que você queria, o “Atalanta Fugiens”. Do Michael Maier, certo? — Ele ajustou os óculos. — Demorou para chegar. Ainda bem que deu tempo. Feliz aniversário, Tsubasa. Espero que goste.
Nesse momento, tive uma sensação que nunca experimentei antes. Algo retornava para mim, como uma lembrança longínqua se misturando com um fluxo instável de pensamentos.
As minhas mãos ficavam dormentes, e eu não mais as sentia tocando a capa do livro. Eu não sabia dizer se minhas lágrimas eram de felicidade, ou por me sentir tão inferior e impotente.
Eu tentei te fazer ver em mim algo que te decepcionasse, mas você insistiu em me enganar e me forçar a acreditar que o meu cavaleiro de armadura brilhante me resgataria e encontraria o meu verdadeiro eu.
Isto é, o meu eu fraco e patético que dependia da proteção de alguém, ou pior, que tolamente almejava isso. Um coitado que não tinha coragem para retaliar as agressões, e esperava que a salvação viesse na forma de um milagre.
Isso nunca aconteceria. Eu nunca seria encontrado nessa escuridão.
Por mais que me doesse dizer, você nunca me veria por quem eu era, Teru. Eu não passava de um cadáver apodrecendo dentro de você, cheirando mal, coberto por moscas, como uma fruta largada à luz do Sol.
Naquela noite, uma tempestade estava à espreita. Me acerquei das cobertas, inclinando meu corpo sobre o seu. Assolado pelo parecia ser uma mistura de terror e agonia, eu fixava meus olhos em sua face adormecida.
Eu queria que você percebesse a minha dor. Queria te machucar, como eu fui machucado. Por isso, antes que a romã que era o seu coração se tornasse completamente contaminada, eu a quebrei, e comi seus bagos espalhados.
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EMBLEMA XXIV
O lobo devorou o Rei e, quando queimado, o devolveu à vida.
"Ocupe-se de capturar o lobo devorador,
jogando o corpo do rei nele para saciar seu apetite.
Coloque-o, peço-lhe, onde Vulcano dá à luz o fogo
com o qual a besta se transforma em cinzas.
Faça isso de novo e de novo: assim ele ressuscitará dos mortos,
e será o rei orgulhoso e leonino de coração."
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