Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume II – Arco III

Capítulo 34: A Reunião

Continuei a caminhar pelos espaços inóspitos do Kunstkammer e seus corredores que nunca acabavam. Um rastro de gotas vermelhas era deixado no caminho. Minha mão sangrava, e suor frio descia minhas bochechas.

Não tenho dúvidas sobre a quem pertencia aquela voz. Mas, a pessoa no espelho... não era eu, e não era ele. Só podia ser um truque, ou uma alucinação. Essas memórias se infundindo com as minhas eram as culpadas.

Eu sou Terumichi. Terumichi Kinjō. Sim, esse foi o meu nome desde que nasci. Não havia como eu ter outro nome, ou outro passado, porque eu ainda era eu. Apesar de tudo, eu não queria ser outra pessoa além de mim.

Senti, então, uma fisgada de dor.

— Ugh...!

F-Ficava pior a cada minuto. O lenço com o qual contive o sangramento estava encharcado. Eu precisava trocá-lo, e-... e achar um lugar com água corrente para lavar a ferida e tirar os resíduos de vidro. S-Sim.

De onde estava, fui parar em um lugar que se assemelhava a uma espécie de estacionamento, repleto de colunas com placas de trânsito grudadas. Elas me guiaram até uma pia, esta posicionada no meio do nada.

Rápido desfiz a faixa sob a torneira, tentando encurtar o ardor que viria, e, nisso, tive uma surpresa: o ferimento havia sido fechado como mágica. Confuso, vesti o meu manguito rasgado e segui, não sei por quanto tempo mais.

Eu não fazia ideia de que direção tomar. Às vezes, eu tinha a impressão de escutar o som da sirene de uma ambulância, e o que pareciam ser pessoas falando. Eu já estava com as pernas cansadas demais, e meus passos afrouxavam.

— Tsubasa, está me ouvindo? — interpelei, ao silêncio opressivo. — Está tudo bem se não quiser mais me ver. Eu te machuquei. Eu não fui diferente das outras pessoas que te maltrataram, mas eu quero pedir desculpas.

Ei, isso não está certo, Terumichi.

Tsubasa abusou sexualmente de você. Ele não só te beijou, como te tocou naquele lugar enquanto você dormia. Na manhã seguinte, ele agiu como se nada tivesse acontecido.

Ele também cometeu um erro pelo qual ele te deve explicações, então por que você é o único a pedir desculpas? Por que você não consegue dizer isso a ele, nesse exato momento? Hein?

— ... Eu não sei. Não sei mais de nada. — Desabei de joelhos, sem forças para continuar. — Só saiba que... eu me importava com você de verdade. A dor que você sentia, eu também sentia. Eu tinha medo de todos, dos nossos colegas de classe, dos superiores, até dos meus pais. Eu tinha medo de passar pelo mesmo, e de me verem diferente, m-mas eu te amava! Eu te amava demais! ... Por favor, Tsubasa, me perdoe. Me perdoe...!!
— Te perdoar?

Num piscar de olhos, abriu-se um espaço majestoso, como o salão de entrada de um castelo.

O vi descer as escadarias vestido como um aristocrata vitoriano. Colarinho de cravat e capa. Em sua boina, havia plumas — uma vermelha, uma branca, uma amarela e duas pretas, estas menores do que as outras —, além de um broche com um símbolo esculpido.

A aura que emanava era opressiva, algo que só poderia vir de uma existência superior a um ser humano. Uma força soberana, avassaladora. Os estalos da sola de seus sapatos lembravam os tiques de um relógio, a cada segundo mais intensos.

— Tsubasa...! Eu--...
— Após te mandar embora de Praga, para evitar que fosses perseguido, passei o último ano de minha vida definhando naquele maldito castelo. Não que isso te importe, já que não sentiste minha falta. Tu nem sequer mandaste uma carta. Afinal, eu não significava nada para ti — ele asseverou. — Me usaste como uma peça, Maier. Como pudeste dizer que me amavas, após me manipular?!
— Do que está falando? Quem é Maier? — questionei, levantando-me. — Tsubasa, me escute. Eu não devia ter abandonado você. Nós devíamos ter sido honestos um com o outro. Pode ser tarde para isso, mas eu quero fazer diferente. Eu quero aceitar o mundo onde nos conhecemos.
— Não há mais um mundo para aceitares. O jardim maneirista por onde caminhávamos desapareceu há séculos.

O quê...?

Eu não compreendia o que ele queria dizer, e ele também não parecia me compreender. Era quase como se estivéssemos falando em línguas diferentes, captando apenas informações soltas. Ou, atuando. Sim, como o recitar das falas de uma peça.

— Você é realmente Tsubasa? Quem é você?
— Que pergunta boba. Olhe bem para mim. Você sabe muito, muito, muito bem quem eu sou, Teru.
— ...!

Como pensei, era atuação. De um momento para o outro, seu vocabulário mudou para um menos arcaico, e seu tom de voz para o do Tsubasa que eu conhecia.

— Não consegue senti-las? — indagou. — As lembranças de um tempo diferente do nosso, empilhando-se como a areia de uma ampulheta. Lembranças de quando eu e você éramos um. De quando tínhamos nomes diferentes dos que nos foram dados.
— Não! — exclamei. — O meu nome sempre foi Terumichi, e o seu sempre foi Tsubasa! Nós não somos mais ninguém!
— Por que se importa tanto? Esse nome é tão relevante assim?
— É claro que é! Tsubasa é... o nome pelo qual eu te chamo. Como não me importaria?
— Esqueça esse nome. Eu o deixei para trás quando nos separamos.
— Então me diga o seu novo nome. Independentemente de qual for, eu vou aceitá-lo. Dessa vez, vou aceitar tudo em você.
— Tudo?

Ele soltou o seu bastão real, e tirou do cinto uma adaga de ouro. Eu me assustei, quase dando um passo para trás, mas engoli a saliva e me mantive ali. Em seguida, abri os braços, para ele vir até mim.

— Tudo.

Ele se aproximou, parando bem à minha frente. Calmamente, o abracei. Seu perfume, o aspecto de seus cabelos e seus ombros franzinos. Os ossos salientes de suas costas. Era ele mesmo. O meu Tsubasa, em carne e osso.

Foi quando senti um fogo gelado entrando no meu peito, atravessando fundo, e me agitei. A dor era tanta que eu queria gritar, mas mordi os lábios, tentando ao máximo me equilibrar, e o abracei mais forte.

Está tudo bem. Isso é retaliação, não é? Por eu ter sido um amigo desprezível. ... Tudo bem, de verdade. Continue. Se isso é necessário para aliviar seu rancor, eu vou suportar até você sentir que é o suficiente.

Minha visão turvava. Minha pulsação, antes acelerada, ia divagando. A cada batida, uma pontada latejante. No afrouxar do meu abraço, quedei apoiando meu queixo em seu ombro, e sujando sua capa.

No violento puxar da adaga, desabei de joelhos, pressionando o ponto atingido. Quanto mais eu tossia, mais sangue saía da ferida e da minha boca. Eu sufocava como se tivesse me engasgado ao beber água.

Tsubasa se agachou, trazendo sua face para perto do meu ouvido, e deu seu ultimato:

— Você nunca aceitaria tudo em mim.

Caí de bruços, trêmulo, e com a respiração quase sumindo. Debaixo da minha bochecha, crescia uma poça vermelha.

— Retorne ao Anfiteatro. Ainda tens um papel a cumprir.

Eu queria fazer perguntas, mas a voz não saía.

Eu lacrimejava, e tinha muito frio. Meu corpo inteiro estava ficando dormente, como se desligasse. A minha hora devia estar chegando. ... Que estranho. Eu aceitei esse fim, mas isso ainda me assustava. Me desesperava.

Me desculpa. Me desculpa por tudo. Não vá, Tsubasa. Não vá. Fique comigo, só mais um pouco. Essas foram as últimas coisas que consegui pensar, antes que minha consciência se esvaísse e eu parasse de me mover.

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Mergulhado na escuridão, eu sonhava.

A maioria dos sonhos retratava coisas que aconteceram no passado, repetindo-se várias vezes, feito um disco arranhado. Coisas boas e ruins. Felizes e tristes. Era como se a minha vida inteira passasse diante dos meus olhos.

De um ponto em diante, seguiu-se um futuro alternativo ao que eu vivia. Era um em que não cheguei a conhecer Hector, Theseus, nem os meus outros amigos. O meu calendário continuou para além do dia 1 de março desse ano.

Ao entardecer, Tsubasa e eu voltávamos para casa, de mãos dadas. Falávamos de algo engraçado, como de costume. Um meme que vimos nas redes sociais, e um daqueles vídeos absurdos cuja graça era ninguém entender.

Foi o nosso último dia de aula no ensino secundário alto.

Os cursos que faríamos eram diferentes, mas planejamos com cuidado, e nos inscrevemos na mesma universidade. Assim, poderíamos almoçar na companhia um do outro e ir passear depois das aulas. Não seria tão diferente de antes.

Nas férias de verão, viajamos às praias de Nagoya, só nós dois. Corremos pela areia até a água, onde brincamos de molhar um ao outro. Reunimos uma porção de conchas. Uma delas era bem grande, branca e laranja, coberta de pontas.

— Escute, Tsubasa — Eu a aproximei de sua orelha.
— É o som do mar?
— Quase isso. Na verdade, é o som da ressonância do ar correndo dentro dela. É uma mistura dos muitos sons ao nosso redor, inclusive o da sua circulação.
— Parece uma música.
— Uma... música?
— Sim.

Ele cantarolava sua composição favorita, Prelúdios, Op. 28, nº 4, de Chopin.

— Desse jeito, você realmente ouvirá a música ecoando aí! — disse, dando uma risadinha.
— Você também quer ouvir?
— Sim.

O Sol se punha para além do mar. Nós permanecemos escutando a canção, lado a lado. Se me fosse permitido, eu passaria um dia inteiro, até uma eternidade, apenas o apreciando.

Ouvindo a música que ele produzia para sempre, seja a de sua respiração, e a do bater de seu coração. Tendo ela reverberando dentro de mim, tomando conta de tudo o que eu sou.

— Tsubasa.
— Hm? — Ele parou de cantarolar, e me deu ouvidos.
— Obrigado por estar comigo. Eu te amo. Eu te amo, de verdade.

Diante de sua feição atônita, um pouco avermelhada, eu pousei a concha sobre a areia em que nos sentávamos, e o beijei. Foi um beijo quase sagrado, um do qual eu nunca teria me esquecido.

Assim que tudo escureceu, os dias começaram a correr como se fosse uma sequência de vídeos e fotografias capturadas por câmera, cada um representando um momento importante que compartilhamos.

Nossas cerimônias de formatura. Os bichinhos de estimação que adotamos. O sucesso em nossas entrevistas de emprego. O dia em que começamos a morar juntos. A viagem que fizemos ao exterior.

Tantos eram os eventos eu projetava no meu futuro, embora soubesse que nenhum deles era, sequer se tornaria realidade.

O que fiz já aconteceu. O mundo de agora era um só. Foi isso que ele quis dizer. Não havia uma forma de voltar no tempo a fim de obter um resultado diferente, por mais que eu almejasse isso feito um tolo.

O nosso terceiro ano de escola havia acabado. Eu não tinha como compensar pelas minhas faltas, muito menos curar as cicatrizes que a escola deixou nele, e em mim. Para isso, seria necessário um milagre.

Eu precisaria ser mais poderoso do que um deus para realizar esse feito. Isso era húbris. Eu, como um mero humano, seria castigado por tamanha expressão de arrogância. Ainda assim, eu... aceitaria essa punição.

Como o homem que sou agora, eu ofereceria qualquer coisa em troca, até minha vida, para providenciar felicidade a ele. Mesmo que fosse egoísmo. Mesmo se fosse pecado. Foi por isso que aceitei a ponta de sua adaga.

No entanto, eu não sou um deus, nem um milagreiro.

Tsubasa não me enojava. Ele foi o meu melhor amigo, e a minha alma gêmea. Aquele pesadelo sem fim foi o pesadelo em que eu e ele vivemos. E se ele cometeu um erro, eu vou encontrá-lo mais uma vez, e dizer como me sinto.

Talvez eu não possa reverter a nossa história, mas eu vou provar que ela não acabou. Que eu o amei, ainda o amo, e que nada nunca apagará os frágeis momentos felizes que dividimos. Eu carregarei essas memórias para sempre.

Com os braços bambos, fiz força para me reerguer. Pouco a pouco, me pus de pé, cambaleante. As águas do oceano de turmalina negra preenchiam minha boca e minhas narinas, oxigenando meus pulmões, devolvendo-me à vida.

Quando prestes a caminhar contra o fluxo, eu ouvi a voz de uma criança apelar por mim:

— Não vá. Fique comigo.

Olhei para trás. Vi-me soltando a mão grande do vovô, no dia em que fiz oito anos.

Além do ouro líquido que descia da superfície longínqua, havia um menino encolhido no chão, de frente para uma vela acesa. Asas de verdade, meladas de sangue e fleuma, cavavam para fora de suas costas, o fazendo gemer de tanta dor.

— Eu não quero ficar aqui — murmurava, com a voz chorosa. — Eu não quero morrer sozinho.
— Morrer? Você vai morrer?! Calma, eu vou avisar o vovô!
— N-Não! Não vai embora. Se você for, eu nunca vou ser-- a-aargh!!
— Então, o que eu faço? O que eu faço pra te tirar daí?!
— Não me deixe. Apenas olhe para mim, e... mesmo se eu morrer, eu vou ficar bem.

Uma lágrima desceu as bochechas do meu eu criança.

— M-Mas eu não quero que você morra... — gaguejou.
— Não tem jeito. Os nomos não virão. Eu não consegui me tornar precioso pra eles.
— Precioso?
— Se eu não for precioso, eu não vou ganhar amor em troca. M-Me deixa ser precioso, pelo menos pra você. Do jeito que eu estou, quando amanhecer, eu já vou ter-...
— Eu vou te salvar!
— Salvar? A mim? Mas como?
— Espere por mim. Eu estou indo até você!

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EMBLEMA VIII
Pegue o ovo e golpeie-o com uma espada flamejante.

"Há um pássaro no mundo, maior do que todos os outros,
cujo ovo tu obter e chocar por mérito próprio.
A clara desse ovo envolve uma gema mole.
Com a brilhante espada, (como sempre) seja cuidadoso.
Peça pela ajuda de Marte e Vulcano,
e o que resultar de lá será o vencedor do ferro e do fogo."

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