Volume II – Arco III
Capítulo 33: O Epitáfio, ato II
Os sinos da igreja tocaram, e o clamor de uma população indignada era ouvido.
Foi convocada uma aliança para destronar o Imperador Rudolf II, uma vez que ele já não era mais digno de exercer seu papel. Um monarca sem rumo, sem o menor interesse em algo que não fosse suas fantasias.
Sua prisão se deu na mesma manhã, no castelo onde passaria o resto da vida confinado e doente. E, no decorrer desse intenso isolamento, encontrou-se uma última vez com seu estimado Michael Maier.
O pediu para deixar a cidade enquanto possível. Caso contrário, ele também sofreria com as consequências. E assim fez o médico, relutantemente.
As plantas dos jardins maneiristas murcharam. Os animais exóticos morreram um por um. Não demorou muito, e o ex-imperador teve uma morte solitária, marcando o fim da Idade de Ouro da cidade de Praga.
Alguns anos depois, Maier se afiliou a um doutor de direito de Mühlhausen. Foi ele a quem dedicou a publicação de seu Atalanta Fugiens, em 1617. Uma noite fria e sem Lua. O céu havia sido coberto por nuvens.
As memórias do tempo que passou com Rudolf pareciam ter perdido a relevância. O que era compreensível, tendo elas sido o sacrifício equivalente para os Mistérios da Conjunção. Foi por um bem maior, reafirmava a si.
No entanto, na mesma noite, a Pedra Filosofal contida na obra reagiu com um brilho vermelho de rubi.
No momento em que abriu a porta de seu estúdio, se deparou com algo nunca visto. Coçou os olhos, temendo que o enganassem. Eram portões que se abriam para um jardim maravilhoso, cuja terra manava leite e mel.
O ferro, o seixo e o jardim de deus. Ou, como bem dizia o falecido amante, o Jardim de Rosas da Sabedoria. O canal que o ligaria à Transmigração, a condição sobre-humana pela qual tanto ansiara.
Assim Maier atingiu seu objetivo final, rejeitando a concepção natural do eu, e abraçando seu verdadeiro eu. Do lado de fora do estúdio, não havia mais nada. Aquele lugar era uma extensão de seu ser; seu novo corpo.
O nada era tudo. O tudo era nada. A morte era a vida, e a vida era a morte. O vazio era preenchido, e o preenchido se esvaziava. Era como estar em um ciclo infinito de vidas, ao mesmo tempo que alheio a elas.
Os princípios do mundo cognoscível eram reestruturados. Suas vontades mais inconscientes eram atendidas sem a necessidade do verbo, na forma de sensações, visões, possibilidades, até memórias do passado e do futuro.
Era como sonhar, ainda que essas múltiplas camadas de realidade não se tratassem de meros sonhos. Elas eram criações, fabricações semiconscientes originadas da expressão do demiurgo que se tornou.
Da maneira em que estava, ele podia fazer de tudo, sem se preocupar com emoções complexas como culpa e remorso. Essas coisas não mais existiam. Era como... a experiência de escrever uma peça de ficção.
De seu dedo sobre as águas, a recém-nascida “Arcadia” surgiu no centro do Oceano Pacífico. Um continente quase do tamanho da Austrália, provido de um coração subterrâneo que o aqueceria nas águas frias.
Em 3 dias, tudo foi criado, inclusive povos humanos para habitarem as terras. A eles foi concedida uma história e um passado, além de culturas que se assemelhavam às que seu deus conhecia.
Mas essas pessoas, para ele, eram melhores, pois eram baseados nos povos pastoris das poesias árcades do renascimento. Sem influência externa, mantidos em sintonia com a natureza; um belo tubo de ensaio para observação.
No entanto, mesmo com um viveiro de humanos para apreciar e se entreter, acabou entediado. Diz-se que esse deus morreu de tédio e depois reviveu, porque só assistir era chato. Ser um deus, em si, era chaaaato. Super chato.
Não era esse o prazer que buscava. O que tinha agora não bastava. Que sentimentos mais desprezíveis...! Os pedaços de carne e barro que criou ainda eram mortais, ignorantes, além de extremamente simples!
Foi por isso que, após o padecimento de seu corpo mortal em 1622, decidiu visitar sua criação, unir-se a ela, abandonando o posto de observador e iniciando o que seria sua maior experimentação divina.
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No princípio, havia deuses, e homens que se autodenominavam deuses. Mas nenhum deles era tão brilhante quanto o que desceu até Arcadia com asas de luz, sendo conhecido como o três vezes grande Hermes Trismegistus.
Com a chama roubada do Sol Sagrado em mãos, ele ensinou suas práticas à humanidade, mas decepcionou-se com sua húbris e deu à luz um filho cuja responsabilidade era glorificar seu nome e trazer os povos de volta à obediência.
Declamou ele:
Eu sou Atalanta. Eu sou o tesouro mais especial do mundo, resmungava. Como se atrevem, meros mortais, a desobedecer meus mandamentos e sequer sonharem em ser tão grandes quanto eu?! Depois dos milagres que realizei, ousam violar minha fórmula e afundar este paraíso na deselegância? Ao quebrar meus mandamentos, vocês ficaram feios. Vocês são belos, mas, ao mesmo tempo, as criaturas mais horríveis e grotescas, e me arrependo do que vos dei!
Levando seus conhecimentos aos mortais, eles eventualmente tentariam sobrepujá-lo, assim como fizera a seu deus interior. Eles cresceram e cresceram, até saírem do controle e o induzirem a um colapso.
Sua tentativa de encerrar o experimento ocasionou a desintegração de seu eu divino. Ora, um criador separado de sua obra de arte desaparece e é esquecido pelo tempo.
O combustível que criou a nova terra e o novo ser humano advinha de suas memórias. Levando em conta a lei do sacrifício equivalente, para condená-los, o preço a ser pago era condenar a si mesmo.
O Sol Sagrado dizimou o continente com um olhar flamejante, e da falta de um estado consciente que se responsabilizasse pela manutenção do experimento, ou um “Ego”, nasceu a vontade de retribuição.
Era a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens.
O Filho de Trismegistus foi sacrificado a um tormento perpétuo nas profundezas do abismo, permitindo que os humanos dotados de asas voassem para a Arcadia suspensa nos céus.
A chama se homogeneizou com o líquido derretido de suas asas deslumbrantes, criando o Amaranto, um resíduo da Pedra Filosofal, e nunca mais se ouviu do filho pródigo.
No fim, a humanidade passou a padecer com o alastramento da maldição do ouro e iniciou a busca pela salvação. Isso foi há 333 anos, no ano 1685 do calendário cristão.
Que risível. Até em seu trágico fim, Hermes Trismegistus, ou melhor, Michael Maier, não foi capaz de se dar conta do que era ou não parte de seu delírio de grandeza.
Como uma forma de negar o arrependimento carnal que sentia por usar o imperador Rudolf II até o último suspiro, abandonou a capacidade de experimentar tais emoções e enlouqueceu.
O temido Sol Sagrado não era apenas um reflexo de seu deus inconsciente, ou “Id”, mas uma projeção da natureza onipotente que ansiava por conquistar ao enfrentar suas limitações.
Em suma, ele sentiu tanto remorso em vida que preferiu se desfazer da própria humanidade.
Mesmo agora, a voz desse deus egoísta e arrogante reverbera em mim. Ela pede por uma chance de refazer a história e se redimir pelos erros cometidos. E, enquanto ela perdurasse, haveria resquícios da influência divina.
No entanto, nem deuses podem mudar o passado. Cada palavra escrita é uma lembrança, e sem lembranças não há o presente, tampouco o fluxo interminável do tempo que empilham. Isso define a Correnteza Eterna, ou seja, eu.
Eu sou um agente que adquiriu vontade própria, a fim de impedir o desmoronamento completo do Opus. Eu não sou muitos, mas um só. Eu construí a Torre dos Filósofos que interligava os dois mundos, e reinaugurei sua fé.
Na forma de um abutre, levei a mensagem de salvação à Terra Santa. O Coração do Imperador. Em outras palavras, a cidade de Vertumnus. Vez ou outra, ainda desço, mas sempre retorno à minha habitação: o Kunstkammer.
Eu sou clemente e misericordioso. Exterminar o povo arcadiano por seus pecados não é bem o meu intuito.
Sem eles, nenhuma outra sociedade serviria como tubo de ensaio isolado para exercer a divindade. Seria difícil demais refazer o processo do zero, quando eu não tinha nem a certeza de que as falhas que Maier cometeu seriam corrigidas.
Sem a restauração da consciência dele para se fundir com a minha, os Mistérios da Conjunção não se cumpririam. A reação química que me rege permaneceria inacabada. Eu precisava trazê-lo de volta ao trono, querendo ele ou não.
Foi a partir de tal intuito — preencher o vazio deixado na criação —, que vim a existir e agir como agi.
Ainda é muito complicado, não é? Eu só posso imaginar como é absorver essa quantidade de informações sem o aparato que possuo, mas, permita-me explicar minha metodologia de forma que você possa entender.
Meu plano se baseou no uso de um mecanismo psicoalquímico de ressurreição. Não, talvez “reencarnação” seja o termo mais adequado, ainda que se distingua do conceito humano de reencarnação.
Prenda um homem velho em uma casa banhada em orvalho junto a uma árvore de maçãs douradas e, voilà, o velho se tornará jovem. Lembra-se disso? Foi o primeiro emblema que lhe mostrei.
Significa usar de uma alma correspondente como receptáculo, tirando proveito máximo de seu estado de maturação. A forma esvaída de um ser divino pode reaver o estado sólido e vitalidade se implantada em um recipiente adequado.
Nisso, atraí terráqueos que eu julgava dignos para Arcadia, esperando que fossem se desenvolver satisfatoriamente. Porém, nenhum cumpriu todos os pré-requisitos mínimos para abrigar a alma de Maier.
Se eu pudesse descrever o processo com uma palavra, seria “exaustivo”. Foram gerações e gerações de desperdícios, até que no início do segundo milênio, os sinalizadores apitaram para uma reação inesperada no arquipélago japonês, em 2008.
O acontecimento envolvia um alquimista e seu neto, ambos ligados pelo luto.
O medalhão com o qual o pequeno foi presenteado aos oito anos de idade, que em circunstâncias usuais não passaria de um objeto comum, foi concebido com valor similar ao do Amaranto. Melhor dizendo, ele era o verdadeiro Amaranto, manifestado fisicamente.
Nenhuma das minhas ferramentas conseguia formular uma explicação convincente para isso. A Pedra Filosofal era o Atalanta Fugiens. O livro foi queimado até virar uma chama santíssima. Do sacrifício do filho pródigo se deu à luz a chave.
Mas eu nunca a deixei cair, então, como...?
Sem ter como avaliar a situação com mais zelo, assumi que o menino era um tesouro que encontrei por acidente.
Seu interior era instável. A morte da avó o levou a temer o mundo onde a perda existia, então ele passou pela "noite escura da alma", retificando-se, querendo ser mais do que um mero humano e durar para sempre, como o ouro.
Esse ideal se assemelhava aos de seu avô, que estudou a alquimia e o ocultismo a fundo com o intuito de encontrar uma maneira de trazer a esposa de volta à vida. Sem ela, poucos motivos ele tinha para continuar a viver.
A inclinação à negação da finitude e os conhecimentos sobre a alquimia antiga foram cruciais, mas talvez a maior das contribuições tenha se dado na passagem da adolescência do menino para a vida adulta, quando ele conheceu sua alma gêmea.
Seu amor, e o objeto de sua adoração.
Enquanto essa alma gêmea estivesse lá, o menino acreditava ser capaz de suportar a dor. Mesmo após a perda do avô, que se deu de forma tão abrupta e pôs seu mundo em mais uma escuridão, ela continuou ao seu lado. Tudo ficaria bem.
Como forma de agradecimento, a presenteou com um livro especial. Era o Atalanta Fugiens.
Desse momento em diante, o destino incompleto entre Michael Maier e o imperador Rudolf II foi concretizado. As engrenagens enferrujadas por três longos séculos se moveram, e o receptáculo do deus criador foi eleito.
A rocha de sacrifício surgiu nos céus. O grasnar dos pássaros famintos e sedentos ecoou. A trilha perpassando a Árvore da Vida guiou o receptáculo à Torre, e lá conheceu a prole dos povos que o veneraram e sacrificaram.
Com a sobrevivência da espécie em risco, os humanos se desesperaram com a urgência de achar uma cura para a maldição e criaram heróis para serem seus salvadores. Isto é, em um período de espera e planejamento que durou quase três séculos.
Altas expectativas incendiariam as vidas vazias desses jovens. Eles viveram, batalharam e morreram honrosamente. Uns, não tão honrosamente. Você já deve estar cansado de ouvir sobre eles, já que viu a pele de alguns deles sangrar e sofrer.
Apesar de os interesses políticos por parte de algumas cidades terem atrasado o processo, as questões sociais decorrentes da doutrina do abutre reduziram a necessidade da minha intervenção direta. Meu sistema funcionava perfeitamente.
Ao início da sagrada Corte dos Heróis, a mão do Filho de Trismegistus foi dada em compromisso a um desses jovens; um sem pai, nem mãe, nem infância, nem adultez, e que carregava uma imensa solidão no peito.
Seu posto como Padomektah foi profetizado por uma estátua com sua mesma imagem, presente no Museu Nacional de Tóquio. Ela indicava o processo alquímico de putrefação e destilação — análogos ao mito do Ícaro Messiânico.
Que tipo de escultor milagreiro seria capaz de cinzelar uma réplica tão perfeita?
A resposta para o mistério da manifestação mundana do Amaranto estava ali. Tratava-se da influência da vontade de Maier, um deus desejoso por ressuscitar, interferindo nas leis físicas do universo. Era uma mensagem dele para mim.
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Hector de Vertumnus, o meu emissário escolhido, tinha um irmão gêmeo.
Embora um Kush’padme de corpos separados possuísse uma dinâmica válida, é possível que apresentasse complicações mais tarde. Porém, se bem desenvolvido psicologicamente, quem sabe a amostra servisse.
É sabido que, em Arcadia, três desejos foram realizados com a alquimia. Um deles foi obter beleza e saúde. O outro, o de criar asas, ainda que um pecado contra a autoridade de Hermes Trismegistus.
Contudo, o primeiríssimo deles foi o de transformar os metais básicos em ouro, literal e metaforicamente. De um ponto de vista simbólico, era o mesmo que transmutar um homem comum em uma versão absoluta.
Com a alquimia presente em suas células, se extirpado das impurezas, ele irradiaria um valor equivalente ao da metade remanescente do dragão original, tornando-se uma espécie de Pedra Filosofal artificial.
Isso exigia um procedimento gradual e minucioso, igual ao crescer de um pássaro no interior de um ovo.
Cada um dos heróis derrotados serviu ao papel de conduzir o embrião durante sua fase mais primitiva. Era a fase de Nigredo, também nomeada a “noite escura da alma” nos escritos da psicologia analítica.
No primeiro combate, Misericórdia, a chama azul ardia orgulhosamente. Foi sua primeira vez se fazendo valor como um guerreiro alado batizado pelo destino. Nascera para estar ali, sangrando, naquela fração de momento.
Sua vitória foi essencial para incitar o sentimento de “obsessão” em Castor de Carmenta, e “fúria” em Achilles de Angerona.
No segundo combate, Justiça, foi abandonado o desejo de trazer de volta quem se foi. O fardo dos que vestem máscaras de ouro pesa mais que mentiras, e é difícil demais enfrentá-las após uma vida se escondendo atrás delas.
O herói dos heróis, com as mãos manchadas de sangue inocente, nunca seria aceito por quem amava. Patroclus não era o boneco sem autonomia que ele acreditava possuir. Sua visão a respeito dele foi distorcida pelo idealismo.
A felicidade para um não era para o outro.
Nesse estágio, o embrião já se mexia dentro do ovo, mas ainda era bruto. A ressonância de suas emoções com as do Filho de Trismegistus havia acabado de adquirir consistência mínima. Era preciso mais estímulos externos.
Assim como Achilles, Ganymede de Carmenta sofria com sintomas do uso prolongado do Chrysós Lapulia. Até sua morte, ele nunca descobriu que sua posição como o predileto de Amon-Júpiter foi planejada desde o nascimento.
Segundo meus cálculos, a administração do condimento em seu organismo datava de antes de ser raptado. Os homens que o compravam como a joia áurea eram os responsáveis por levar adiante as ordens do governante.
Oh, sim. O rei foi um dos muitos humanos que mandei para Arcadia. Um sujeito de mente doentia e decadente. Dizem por aí que ele morreu pelo ouro, mas é uma mentira descarada. O Declínio não afeta gente da Terra.
Eu não direi onde ele está, ou qual foi o destino dele. Isso não interessa a você.
O que há de relevância aí é que essa mentira amplificou os sentimentos de solidão de Ganymede em relação aos outros heróis. Ele se sentia desprezado, pois ninguém dava valor ao homem que o deu uma vida e um lar, nem mesmo os filhos.
Dissolver o que carregava preciosidade era um desejo ousado. Acreditava que, desta forma, apagaria o sofrimento do mundo, e a si mesmo. Pouco o importava se suas ações afetariam os outros desafiantes em trégua. Foi um ato suicida.
No terceiro combate, Beleza, a percepção do comprometido para o que lhe era de fato precioso se lapidou. Ser derrotado era morrer, estar separado do castelo de ouro que o consolava e atribuía significado a seu espírito ferido.
Defrontado com essa ameaça, a chama pelejou contra o vendaval, e venceu.
Caso Ganymede vencesse e alcançasse Messias, hipoteticamente falando, ele teria uma surpresa. Agradável ou desagradável, depende do ponto de vista. O que eu posso dizer é que ele era um humano. Nem mais, nem menos.
Esses três primeiros duelos foram do proveito de Castor. Coletando informações por câmeras e até invadindo os aposentos dos outros desafiantes, ele não hesitou em usar das peças disponíveis em seu favor para examinar as fraquezas do vitorioso.
Devido às falhas na segurança, quase precisei intervir. Que bom que as coisas se resolveram. ... Bem, em partes. Sendo bem honesto, o carmentino não era tão genioso assim, e cometeu deslizes por pensar que estava no controle.
Na verdade, ele sempre foi o mais temeroso de lidar com os traumas passados. Como forma de fuga, quis ser uma besta que se esquece da dor do antes para viver os impulsos violentos do agora. Consumir para não ser consumido.
O que ele viu de tão deleitante no coração de Hector? Talvez acreditasse que o devorando, atenuaria o sentimento de vazio preenchendo-se com o corpo e o sangue de outro alguém. Bem, o coração é o contêiner do ego.
Dizem os cânticos e escritos antigos que o coração do Filho de Trismegistus era uma romã, mas o de Hector era feito de carne. Fico imaginando qual seria a reação de Castor após o órgão parar de bater em suas mãos, ou melhor, em seus dentes.
Após o quarto combate, Gnose, criou-se uma sequência repetida de duelos que forçou o oponente a lutar até desistir de viver ou, desistir de poupá-lo. Isso até que sua irmã o parou, dando uma conclusão ao quinto combate, Coroa.
Foi impressionante. Castor e Pollux eram a representação mais verossímil de Kush’padme, e a conjunção estabelecida pela presença dos dois sobrepôs facilmente à do meu emissário. É uma lástima eu não os ter estudado mais.
Até me peguei imaginando: qual flor é mais bela, uma que cresce numa estufa, com a terra cheia dos mais ricos nutrientes, ou uma que luta para crescer contra o vento forte, a chuva e o sol escaldante? Quem de nós poderia responder?
Foi uma circunstância deveras preocupante, pois quase resultou na morte de Hector. Mas essa mancha na nobreza e dignidade de sua espada consagrada, ironicamente, o transitou à fase de Albedo, totalizando 50% do progresso total.
Quanto mais maculado e reorganizado, mais suas impurezas eram expurgadas do ovo, tornando-o vazio. De um gato doméstico, fora nutrido para crescer como um leão verde devorador de sóis; um ser assolado pela fome insaciável.
Contudo, regras são regras.
Eu estava curiosíssimo para saber como ele se sairia na Reavaliação de Dignidade. Se falhasse de novo, quem mais seria digno de alcançar meu Messias? Minhas preferências não alteravam o fato de que ele não evoluiria se facilitado demais.
No mundo onde vivemos, só somos recompensados se cumprirmos com o previsto pelas convenções sociais. Sendo assim, ele precisava se esforçar para ser merecedor das minhas contínuas intercessões, e, é claro, do meu prêmio.
É uma troca justa, se parar para pensar. Além de ter direito a um desejo, seu nome seria reconhecido e transcenderia eras. Ele viraria temas de cânticos, lendas e outras superfluidades do gênero. Oh, e se não me engano, ele quis ser amado.
A real vantagem para mim é que, com o Messias dele, a reintegração da consciência do criador com a do filho pródigo seria um sucesso. Meu desígnio estaria cumprido, e um futuro sem a feiura mortal se tornaria possível novamente.
Em uma linguagem química, o enxofre dourado se reuniria com o mercúrio filosofal, firmando assim o coito do Rei e da Rainha; o casamento alquímico que se dá no interior de um único sarcófago adornado. É a reunião do que se partiu.
... Hm? Como assim, “quem é você de verdade”? Eu não lhe disse antes? Eu sou a Correnteza Eterna. O Imperador das Rosas.
Ah, não. Não me confunda com o fantoche, pois não somos o mesmo ser. Eu sou o Anfitrião que recebe os pecadores em meu humilde domínio. Minha existência está ligada a ti, como a de Rudolf a Maier, e a de Hippomenes à Atalanta.
Eu te persigo para vencê-lo em teu próprio jogo. Não importa o quanto corras, eu o encantarei com as maçãs de ouro da deusa, e farei meu o teu coração intocado. Eu não tenho pressa. Já temos do mais fino combustível para alimentar o forno cósmico.
Você já devia ter se lembrado de mim, Teru.
EMBLEMA XXVIII
O Rei está sentado em uma sauna, e assim é libertado da Bílis Negra por Pharut.
“O Rei Duenech, — no qual brilha os braços
do leão verde —, inchado de bile foi atormentado
por um forte desconforto.
Ele chama o médico Pharut, que lhe promete
saúde e prepara vapor para ele da fonte.
Lavou-se sob a abóbada vítrea, até que
toda a bile foi dispersada com o orvalho úmido.”
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