Volume II – Arco III
Capítulo 32: O Epitáfio, ato I
Esta é uma história de tempos remotos, quando os dois mundos constituíam um único organismo vivo.
Abaixo do céu, havia um vasto oceano de turmalina negra. A escuridão reinou em suas águas por 333 milênios, até que, após 333 noites tempestuosas, se formou em uma gruta rochosa um brilho vermelho de rubi.
Ninguém sabe como, ou de onde ele surgiu. Diz-se que foi um fragmento divino — um com origem no Barbelo — que caiu por acidente em um ramo desolado do cosmos, mas isso era apenas especulação dos sofistas.
O que é certo, esse brilho metamorfoseou no verde abençoado. O verde de toda a criação. A misteriosa aura esmeraldina oriunda de deus.
Ao longo de 333 dias, o verde carregou consigo o rubi e ascendeu para além da superfície do oceano. Nisso, se fez dragão. Era um dragão alado que flutuava sobre as ondas; o filho de deus. Duas faces, dois gêneros e dois corações.
No destrinchar das eras, ele recebeu diferentes nomes. Viveu como diferentes pessoas, com diferentes corpos. Nasceu, morreu, e nasceu de novo, sem cessar. Estando sua metade em par com a outra, ele era imperecível.
No entanto, ele se tornou história. Em um dado momento, um rei mago o capturou e o aprisionou em seu castelo, sob o pretexto de proteger sua preciosidade de uma entidade insidiosa conhecida como as Mãos do Mundo.
No entanto, sem sequer ter consciência disso, o rei já era parte do que se conhecia como as Mãos do Mundo. O dragão andrógino tentou fugir com seus braços que se esticavam como asas, mas derreteu ao Sol forte que o feria.
Em húbris, o rei usou do forno da quintessência — o Atanor — para dividir o dragão em dois e mantê-lo vivo como um só ser.
"Ícaro, agora, tu és uno. O meu filho pródigo. E do sangue de rubi que escorre do teu lado costurado, farei a Pedra Filosofal que os alquimistas buscaram por séculos!", disse, abraçando sua nova criação.
O rei ansiava por ser um criador. Ele acreditava que seu resplandecente Ícaro viveria para sempre como um produto de sua divindade, mas na precariedade sanitária em que se encontrava, não durou nem uma semana.
Não se via o menor remorso por parte do monarca. Seu objetivo, obter a Pedra Filosofal, havia sido atingido. O rubi realizaria até o milagre de viver eternamente, ou de voar livremente pelos céus como os passarinhos do campo.
Após experimentações na oficina, um de seus alquimistas tentou voar da janela do castelo, mas caiu e morreu. Frustrado, o rei se fechou para encontrar o que explicasse a Pedra Filosofal não ter proporcionado o efeito desejado.
Talvez a verdadeira pedra não nascesse da unidade da existência, mas da eficácia reativa da conjunção dinâmica entre os polos opostos. ... Se isso era verdade, ao descartar a outra metade do dragão, descartou a solução da fórmula.
Ainda que tivesse ordenado uma busca pela vastidão das terras, em países vizinhos e países distantes, um dragão da mesma qualidade nunca foi encontrado.
Kush’padme, como veio a ser conhecida a união entre as crianças dragão Koshmayah e Padomektah, era uma existência especial. Kosmaye e Padmektor. Kaeshmayh e Patmekteh. Da Grécia à Índia, seus títulos se multiplicaram.
No fim, o rei mago foi tomado por delírios dos quais ninguém mais sabia, e sucumbiu em guerra. Com o legado que sua busca deixou, alquimistas de continentes vizinhos reconheceram a importância de existir um dragão.
Se havia uma possibilidade de criar a Pedra, era através dele.
Alguns acreditavam que um segundo dragão não apareceria, eis que suas origens datavam dos primórdios da criação. Outros que, durante as viagens desse estranho deus pelos tecidos do tempo, ele deixou herdeiros com sua mesma condição.
Eles poderiam aparecer em um futuro distante. Em anos, décadas, séculos, em qualquer lugar do planeta, até mesmo nos mais profundos e assustadores oceanos. Uma probabilidade de um em bilhões de bilhões — a definição do impossível.
Ou, não tão impossível. Afinal, não era zero.
Como poderia Nicolas Flamel ter produzido uma Pedra Filosofal no passado, a não ser que seus relatos contivessem inverdades? Um alquimista genuíno mentira de tão vil maneira? Façamos uma pesquisa, e pensemos um tanto.
E se, em segredo de todos, ele de fato encontrou o dragão ou um de seus descendentes, e usou dele para fabricá-la? Teria sido esse o ingrediente secreto para replicar uma chama sagrada que brilha além das limitações humanas?
Estiquei-me para alcançar um livro no topo de uma estante. Como é incômodo ser baixinho.
Deixe-me ver... Ahá. Aqui está. Eis o trecho que eu procurava:
“Na primeira ocasião, foi feita uma projeção sobre Mercúrio, do qual transmutei mais ou menos meia libra em prata pura, melhor do que a das minas, como eu e outros provamos por meio de vários ensaios. Depois disso, ainda seguindo — palavra por palavra — às instruções do meu livro, por volta das cinco horas da tarde do dia vinte e cinco do mês de abril, fiz a projeção da pedra vermelha na mesma quantidade de Mercúrio, ainda em minha casa, ao lado de Pernelle e mais ninguém, e foi devidamente transmutado na mesma quantidade de ouro puro, muito melhor do que o dos metais comuns; mais macio e maleável. Falo com toda a verdade. O fiz três vezes, com a ajuda de Pernelle, pois ela... compreendia o assunto tão bem quanto eu.”
A Alquimia Redescoberta e Restaurada, “A História de Nicolas Flamel”
Archibald Cockren, 1941.
Se a minha hipótese estiver correta, ninguém além de Flamel e Pernelle poderia testemunhar o procedimento, pois ninguém jamais entenderia o verdadeiro propósito por trás de manipular o corpo transfigurado de um dragão.
O erro do rei mago foi por confundir uma metade com a outra. Ele trocou os papéis, e o sacrifício equivalente, que valia zero, resultou em zero. Ora, todo número multiplicado por zero é zero. Um erro de cálculo deveras patético.
Um ato de matar com Sol e Luna o que para a prole comum era considerados ou um monstro, ou um deus, espalharia temor confusões desnecessárias. Interferir na vontade das Mãos do Mundo era algo perigoso.
Ainda assim, obteve sucesso. Ao menos, é o que constava nos documentos.
Será que houve um equívoco? Teríamos entendido algo errado? Não há como certificar, mas também não cabe mais ninguém escolher no que você acredita. Além do mais, a Pedra Filosofal existe, aceitemos ou não.
Oh, perdoe-me. Eu não pretendia me prolongar demais nesse assunto. Não foi para isso que convidei você para vir até um lugar como esse. Mas, um presente sem a influência do passado não cria movimento, se é que me entende.
Eu, e você também, somos meras memórias. Desejos do passado que tomaram a forma de carne no presente, e que se encaminham para as miríades de possibilidades impalpáveis do futuro. Chamam isso de "expectativa".
O estive acompanhando por um tempo. É dubitável que você se lembre com clareza, mas espero que as informações que deixei durante as visitas ao Museu dos Mistérios da Natureza lhe tenham sido úteis.
Agora, peço que me acompanhe. Temos um longo caminho pela frente. O que estou prestes a mostrar é algo que pode ser considerado um “milagre”. A luz do ontem, e a escuridão inevitável do amanhã.
Portanto, preste bem atenção.
✤ Fugiens V, “OS MISTÉRIOS DA CONJUNÇÃO” ✤
Era uma vez, um jovem arquiduque chamado Rudolf. Filho mais velho e sucessor de Maximilian II, imperador do Sacro Império Romano, Rei da Boêmia, Hungria e Croácia.
Em sua formação, viveu na Espanha aos cuidados de seu tio materno, aprendendo os costumes corteses e refinados da corte espanhola. Chique, né? Um berço de ouro, em todos os aspectos.
Desde muito cedo, Rudolf foi tido como um prodígio; inteligente e talentoso na fala e escrita em várias línguas diferentes. Amava arte e se interessava pelas matemáticas e ciências.
No entanto, era um menino muito sério e reservado, inclinado a fantasias perigosas, e tinha um humor para lá de obscuro.
Ele foi usado como um prêmio em inúmeras negociações diplomáticas envolvendo casamentos, mas nunca casou de fato. Era baixinho, e perdeu vários dentes quando ainda era criança, então não o consideravam atraente.
Mas isso não o impedia que, em seus íntimos, sonhasse ser tão desejado que seus pretendentes duelariam com espadas para tê-lo.
É claro que isso nunca aconteceria, pois ele era um homem. Para que sua mão fosse oficialmente disputada dessa forma, só sendo uma mulher, não é? Por acaso ele se achava a nova donzela em apuros do pedaço?
Devido aos crescentes problemas de saúde do pai, foi coroado como Rei da Hungria aos vinte anos de idade. Em três anos, foi oficializado rei da Boêmia e do Sacro Império Romano, e, no que se seguiu, se deu a morte de Maximilian II.
Semanas mais tarde, Rudolf foi nomeado novo imperador.
Ele teve de assumir as responsabilidades de um monarca relativamente cedo, mas... ao invés de se ocupar com tais assuntos, preferia viver uma vida isolada e distante, em decorrência do que caracterizavam como um "colapso emocional".
Algum tempo depois, não viu outra escolha a não ser mudar a corte para Praga, fugindo das pressões populacionais de Viena.
Foi quando seus estudos de astronomia, magia e alquimia se intensificaram, e passou a colecionar objetos bonitos e curiosos. Ele reuniu na corte astrônomos, humanistas, médicos, artistas, artesãos e antiquários.
Ele não poupava os gastos para se cercar com as artes e as ciências; suas principais válvulas de escape. Em virtude disso, lhe foi preparado um retrato como o deus romano Vertumno; todo o seu corpo formado por frutas, legumes e vegetais.
“É uma piada”, apontou, de primeira. Mais tarde, passou a vê-lo não só como uma alusão a seu governo extravagante, mas ao poder e riqueza que se distinguia de todo e qualquer reino que já existiu no continente europeu. Ele, em si, era Vertumno.
Profundo, não é? Mas ainda que tivesse pendurado o quadro no salão principal do palácio, dificilmente andava por lá. O mesmo era com seus laboratórios e corredores infestados de animais exóticos. Ele nem dava as caras.
— É um homem louco! — cochichavam. — Para não precisar se preocupar com nada, ele contrata quantas pessoas forem necessárias para cuidar da bagunça neste lugar.
— Shhhh. Toma cuidado com o que diz, ou perderá a língua. Ao menos ele nos paga bem, e temos brioches para comer todos os dias. Ah, feche aqueles portões, ou os pavões vão fugir pela cozinha! Você checou a comida dos leões?!
— Maldição...!
Jaulas com gorilas, águias e zebras. Um fedor terrível emanava do zoológico improvisado. A maior parte do tempo, o imperador Rudolf II passava trancado em seu Kunstkammer, o famoso “Gabinete de Curiosidades”.
Era um recanto que supostamente refletia a riqueza e a diversidade do universo no microcosmo. Ao menos, assim o descrevia.
Por horas apreciava pinturas e brincava com suas coleções valiosas de itens decorativos, dispositivos mecânicos de movimento, autômatos, armas cerimoniais e relógios com globos celestiais feitos pelos maiores artesãos da Europa.
Havia outra finalidade para o gabinete: manter em segredo encomendas de quadros eróticos e esdrúxulos. Rudolf possuía interesses peculiares em todo tipo de arte de teor erótico, um deles sendo o seu predileto.
Kush’padme. em uma língua desconhecida da antiguidade, “Hermafrodito”. Era intrigante, até incômodo ao olhar comum. A nudez dos jovens gêmeos siameses era crua, e o formato de díptico ressaltava a natureza dualista da peça.
Poucas pessoas chegaram a testemunhá-lo, já que o contato do imperador com o mundo exterior se estreitou tanto suas relações diplomáticas já eram quase inexistentes. Viver a vida como um sapo no fundo de um poço é confortável.
No que diz respeito a seus laços com pessoas reais, Rudolf se envolvia amorosamente com homens e mulheres de sua corte, desde camareiros, valetes e até a filha de um de seus antiquários. Chegou a ter filhos ilegítimos, o que prejudicou ainda mais seus laços familiares já conturbados.
Seus parentes espanhóis continuaram a persegui-lo, criticando o fato de não lutar contra o avanço do protestantismo no império, tampouco arrebatar os turcos do terreno húngaro, e toda essa pressão o estava deixando insano.
A idade avançava, e seu estado mental degradava rapidamente. Rudolf nunca esteve tão doente. Chegou a ser assombrado pela paranoia de que planejavam assassiná-lo, e escondia seu ouro em baús trancados à oito chaves.
O povo se revoltava com os escândalos envolvendo seu reinado. As decisões políticas desastrosas traziam consequências.
Num idealismo desvairado, quis unificar a cristandade através de uma cruzada, iniciando assim uma guerra contra o Império Otomano para obter pedaços de terra. Dá para acreditar num negócio desses?
Esse conflito sem sentido se estendeu até que o povo húngaro se exauriu, e a coroa da Hungria, Áustria e Morávia foi cedida ao irmão mais novo do imperador, Matthias, que conspirava com os parentes espanhóis e políticos católicos.
Quedando apenas com a coroa imperial, Rudolf se isolou de tudo e de todos, recusando-se a tomar decisões governamentais. Tão frustrado, já não aparecia em público e passou a fazer refeições sozinho, nos mesmos horários, na mesma sala.
Num dado ponto, já estava farto do catolicismo, do protestantismo, do clero e de quaisquer tipos de orações. O único ser que tolerava como sendo sua companhia era seu confidente e fiel conselheiro, Michael Maier.
Maier era um médico, filósofo e alquimista alemão. Tinha um jeito rebuscado de falar, e era um homem de muita cultura. Seus estudos esotéricos, ao contrário dos sermões dos sacerdotes, traziam prazer aos ouvidos.
Com esse homem tão diferente dos outros, o imperador sentia que sua existência retinha um pouco do significado grandioso que uma vez teve.
As poucas vezes que saíra do castelo era quando se encontravam nos jardins maneiristas. Após ser introduzido aos epigramas e composições musicais esboçadas por Maier, passou a se referir a ele carinhosamente como seu “Jardim de Rosas da Sabedoria”.
— Se eu sou o Jardim de Rosas da Sabedoria, então tu não és só Rudolf II do Sacro Império Romano, mas o Imperador que rege tais Rosas — disse, com a seriedade de sempre em sua expressão. — Você é o Imperador das Rosas.
O Imperador das... Rosas. Desse título nunca se esqueceu, mesmo sendo um tão vazio quanto o que lhe restava.
Logo sua rotina passou a girar em torno de Maier e do desenvolvimento do livro que ele idealizava: o “Atalanta Fugiens, isto é, os Novos Emblemas Alquímicos a Respeito dos Segredos da Natureza”.
A obra reunia discursos em prosa, versos epigramáticos, gravuras e cânones musicais. As famosas Fugas, ou Fugiens. Era uma palavra com um duplo sentido, pois se referia tanto à forma musical quanto ao mito de Atalanta.
Como se deve imaginar, este seria o primeiro ou um dos primeiros trabalhos multimídia publicados na história humana. Ele continha o cerne dos conhecimentos alquímicos. Mas, fora isso, o que mais tinha de tão importante nesse livro?
A resposta é: nada. Ao menos para Rudolf. Para ele, o livro era só... a promessa de um futuro além de sua decadência inevitável. Era uma mísera memória compartilhada com uma pessoa especial que apareceu na pior fase de sua vida.
Um conceito de salvação deveras adequado para o riquinho que ele era, não? É óbvio que ele jamais sonharia com nada que existia fora daquelas muralhas do castelo, pois nasceu e cresceu com os luxos de herdeiro.
Um dia morreria e deixaria tudo para trás, então quis que esses curtos momentos de privilégio existencial durassem eternamente.
Um homem como esse nunca entenderia a verdadeira importância do trabalho de Michael Maier que, ao contrário do imperador, não possuía sangue real. Era o filho de um bordador que, após ter passado dificuldades, estudou filosofia e medicina.
Como um médico, tinha a esperança de sua arte salvar vidas. Mas... o corpo humano era falho, limitado e cheio de fragilidades. Tudo o que era vivo morria. Nada morto voltava à vida. Era o princípio básico da natureza.
Sua medicina ainda não tinha o poder para curar as doenças e a peste, e viu ricos e pobres morrerem. Não importa o quanto estudasse, ou renegasse a conformidade, não era o suficiente.
Por isso que foi além, pendendo para o oculto, sintetizando vertentes de autores de diferentes regiões do mundo em uma única concordância que lhe fazia mais sentido. Seu desejo era encontrar o caminho à “Transmigração”.
Atingir a Transmigração quer dizer abandonar o patamar atual da existência e rumar a um superior, desafiando a condição mortal da humanidade e encontrando saúde plena e longevidade.
É o Magnum Opus. O trabalho que possibilitaria o impossível. A Pedra Filosofal para esse processo seria o Atalanta Fugiens; uma fabricação, um substituto artificial para o rubi de Kush’padme.
Você deve estar pensando o sentido de um livro tão inútil, como eu o considero, substituir o filho de deus. Digo-lhe, pois, que algo maior do que um objeto reside nas significações.
Um poder inimaginável se esconde por trás dos mitos e figuras que permeiam um fragmento da mente humana incompreendido em totalidade. Não verbal. Instável em expressão.
Na contemporaneidade, é chamado de "inconsciente coletivo".
Assim como se concede preciosidade a um objeto sem valor, o mesmo é com significados. Através deles, o universo e seus componentes foram criados. Deuses, diabos e homens.
Contudo, os velhos deuses se tornaram grosseiros, e seus tronos cobertos de porcarias. A incompetência deles se proliferou como doença, e medidas haviam de ser tomadas para conter tamanha devastação.
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Atalanta. A criança que os oráculos previram que se tornaria um animal no momento em que perdesse sua virgindade. Foi abandonada e criada por uma ursa, e, mais tarde, adotada por caçadores.
A jovem cresceu dedicando sua força e habilidade à deusa da Lua e da caça. Ela venceu inúmeras criaturas assustadoras, inclusive o temível javali calidônio, e se provou um herói.
Por sua beleza e coragem, foi cercada por pretendentes, mas não tinha o menor interesse em casar-se. Impôs, então, um desafio: casar-se-ia com ela aquele que a vencesse em uma corrida. No entanto, se o tal homem perdesse, seria morto.
Foram muitos os que tentaram, perderam e morreram. Ela era invencível, e ninguém se comparava. Isso até que um jovem chamado Hippomenes, sob a intercessão da deusa do amor e da beleza, arriscou uma tentativa.
Ele veio amparado por um plano: durante a prova, atiraria na pista três maçãs douradas do Jardim das Hespérides — oferecidas pela deusa — para distrair a desejada, a derrotando e se fazendo seu esposo.
"Atalanta e Hipômenes" de Willem van Herp, meados de 1650.
Assim aconteceu. A donzela, encantada pela preciosidade das frutas que nunca vira, perdeu.
A princípio, Atalanta e Hippomenes se casaram e viveram felizes como hábeis caçadores. No entanto, veio o dia em que fizeram amor em um templo proibido e foram transformados em leões, sendo sentenciados a puxar uma carruagem até o fim dos tempos.
Para uns, o templo era, em verdade, uma gruta de leões. Os jovens, que adentraram sem saber disso, teriam sido mortos e devorados. Assim que os leões deixaram o esconderijo, as pessoas assumiram que ambos haviam se metamorfoseado em animais.
Qualquer que seja a verdadeira versão, o mito ilustrava a coagulação do mercúrio filosófico através do enxofre dourado. A base química da lei do sacrifício equivalente.
A Pedra Filosofal é a chama sagrada que se rouba do eu interior, tão radiante quanto um deus ou o mais sagrado dos sóis. Quando Maier concluiu o Atalanta Fugiens, sua arte ganhou vida própria, e ele entrou em contato com esse deus.
O enigma de Jaime IV e Nicolas Flamel foi desvendado. Deus era o homem, e o homem era deus. Um deus é um significado atribuído a um homem. O elemento essencial da Pedra Filosofal sempre esteve... dentro de nós, batendo, pulsando.
O coração do homem era, portanto, o receptáculo de toda a transformação.
— Tornar-me-ei como Atalanta, perseguida pelo apaixonado Hippomenes! — declamou o médico à tempestade e ao reverberar dos trovões — Eu serei a virtude idealizada para o homem que dela tinha fome e sede, e o levarei comigo até os confins do outro lado onde não mais seremos humanos! Nem as Mãos do Mundo nos alcançarão! Eu serei o Pai de Todos dos Milagres, e criarei Arcadia!!
Longas gargalhadas ressoaram. Os ventos adentravam o estúdio, as janelas se debatiam e folhas de papel com textos e partituras eram varridas.
Sua tese se provou correta. Dali em diante, a frágil mente do Imperador Rudolf II seria a peça a ser descartada, em benefício de encenar o fundamento da alquimia primordial: os Mistérios da Conjunção. Ou, Mysterium Coniunctionis.
Nomeadamente, a síntese e divisão dos fundamentos opostos. O meio pelo qual se desconstrói, reutiliza, cria e recria um novo conceito; desde uma simples forma de vida a um mundo dotado das mais complexas características.
É verdade, sem falsidade alguma, verdade absoluta, que através desse procedimento, se obterá a glória do mundo. Nisso consiste o cume do ser, as três partes da filosofia universal e a completude da Obra Solar.
— O que é Arcadia, Maier? — indagou o imperador, à luz de velas.
— É um continente que existe além das montanhas do leste da Ásia, cercado por um oceano tão grande quanto aquele que divide a Europa e as Américas. Em tempos remotos, despencou nesse oceano o filho de deus, um fragmento do Barbelo, e assim surgiu Arcadia. Eu nunca o visitei, mas dizem que, lá, tudo é possível.
— Tudo? Até viver eternamente?
— Tudo, inclusive tornar este presente momento eterno. Fazê-lo durar semanas, meses, anos, décadas, séculos, milênios. Um dia, eu viajarei até lá, e me tornarei o criador.
— Leve-me contigo — suplicou. — Eu rejeito os sacramentos. Só tu, Maier, é o meu deus. Meu Messias. Eu te peço, livra-me do meu tormento. Leve-me até tua Arcadia.
Prometendo a Rudolf a salvação, Maier se deixou vencer pelo desejo de Hippomenes, como prescrito em sua própria profecia, e entregou-se à cama de realeza. Os sussurros de amor se estenderam por toda a noite.
— O Atalanta Fugiens iluminará o caminho — respondeu. — O Shangri-La da Paixão e o El Dorado do Prazer pertencerão a nós.
EMBLEMA XXXI
O Rei, nanando no mar, gritou em alta voz: "quem me salvar terá uma grande recompensa!"
"Um Rei nada no vasto mar, e, sobrecarregado pelo
peso da coroa, grita em voz alta:
Por que você não me ajuda? Por que não vêm todos,
já que posso enriquecer quem me tirar da água?
Leve-me de volta ao meu reino se souberes como,
e não serás oprimido pela pobreza
nem qualquer calamidade do corpo."
ATENÇÃO:
As representações das figuras históricas contidas neste capítulo são pura e convenientemente adaptadas à ficção, e não devem ser entendidas, de forma alguma, como leituras acuradas de suas versões reais.
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Hey, aqui é o Rafa! Muito obrigado por ler Os Prelúdios de Ícaro até aqui. Considere deixar um favorito e um comentário, pois seu feedback me ajudará bastante!