Volume II – Arco III
Capítulo 31: A Crisopeia
Nesse dia, eu presenciei.
Dezenas de cata-ventos de papel que giravam e giravam, criando um espetáculo de cores dançantes. Pétalas de cerejeira que caíam do céu. Era uma tarde ensolarada, com muitas pessoas passando pelo Tsuruma Park, em Nagoya.
— Teru, veja! Os cata-ventos! — dizia uma senhorinha, agachada ao lado da criança que eu era.
— Ahhh! Eles têm oito pontas! Vovó, eu posso ter um?!
— É claro! Mas antes disso, quero que você conte comigo, ponta por ponta! Abra suas duas mãos e feche os dois dedões!
— Tá!
— Vou contar até três, e começamos. Um, dois, três!
— Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito!
— Muito bem! Agora de trás para frente!
— Oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, uuum! Hahahaha! — exclamou o pequeno, com toda a alegria do mundo.
— Muito bem, Teru! Agora, você pode escolher um deles para levarmos para casa.
— Esse aqui! — Apontei com o dedo. — Vermelho e branco e amarelo e preto!
— Aqui está!
Ela tirou umas moedas da bolsa e pagou o vendedor, me oferecendo o presente logo em seguida. Então, nós dois continuamos a caminhar pela calçada, de mãos dadas, cercados por árvores cor-de-rosa.
O cata-vento girava e girava. Girava e girava. De relance, eu apreciava a expressão calorosa da vovó. O sorriso dela era o sorriso mais bonito do mundo.
Minha avó, Natsuko Kinjō, morreu quando eu tinha sete anos. Ela não era de origem prestigiosa, e ninguém da família por parte do vovô aprovava o casamento entre um herdeiro de fortuna e uma “escória da sociedade”.
Nunca soube de muitos detalhes, mas ouvi que meus bisavós influenciaram os netos a não gostarem da própria mãe, afirmando terem investigado o passado dela. Acusaram-na de ter sido uma prostituta.
Eu nunca descobri se isso era verdade ou mentira, nem depois de grande. Não acho que teria feito diferença. Ela foi amorosa comigo, e eu só tinha memórias boas de quando ia para a casa dela e do vovô.
Quando eu chorava pela ausência dos meus pais, ela ficava ao meu lado e lia livros para mim. Foi ela quem me apresentou o mito de Eros e Psiquê, pelo qual era fascinada. Acho até que ela se identificava com a história.
Isso porque, quando mais nova, ela era uma gueixa formosa, encantadora, e muita gente a admirava. Era a encarnação de Psiquê. Mesmo ao envelhecer, ainda era possível ver a beleza retida de sua juventude.
Ela sempre me acompanhava nas consultas ao cardiologista, e me ajudava com os meus exames do coração. Eu tinha vergonha de carregar um monte de aparelhos presos em mim por aí, daí ela vinha, me consolava e dizia estar tudo bem.
Quando chegou a vez dela, eu também segurei em sua mão enrugada e disse que ia ficar tudo bem. Que logo ela sairia daquele hospital e voltaria para casa, e então eu mostraria o montão de histórias que aprendi a ler.
Devido à piora progressiva de sua doença, me proibiram de visitá-la, pois achavam que a ver definhando me traumatizaria. Creio que isso causou o efeito contrário. Talvez não ter visto ela uma última vez tenha deixado uma marca mais profunda.
Seu enterro aconteceu em Nagoya. Como ela perdeu o contato com a família há décadas, poucos compareceram ao velório. Se não fosse por mim e pelo vovô, ninguém teria acendido velas e incenso por ela.
Era como se fôssemos os únicos presentes lá.
Todos, tirando eu e ele, pareciam querer apagá-la da nossa história. Meus pais, em especial, fugiam do assunto sempre que eu a citava. O vovô e o papai tiveram uma briga feia uma vez, e eu acredito que foi por minha causa.
Nesse período, eu fiquei deprimido e recluso, o que achavam estranho para a minha pouca idade. Eu, que costumava ser alegre e falante, não tinha mais ânimo para ir para a escola ou interagir com os meus colegas.
Eu me tornei um sapo, como as outras crianças costumavam me chamar. "Não são sapos, são rãs!", eu costumava dizer, mas eu era um sapo. Eu vivia fundo de um poço — a minha nova casa —, e não conseguia sair de lá.
Um dia, eu falei que eu queria morrer para poder ficar com a minha avó. A mamãe me deu um tapa por isso. Fui levado a alguns profissionais, embora não tenha mudado muito. Depressão na infância é algo bem ruim.
Quando um ente querido morre, é possível que um ou mais familiares do círculo próximo vejam o ato de “viver a dor” e “se deixar sentir dor” como algo a ser evitado, achando que estão fazendo isso pelo nosso bem.
Todavia, às vezes bate a sensação de que somos os únicos a reter a recordação, e que o resto do mundo segue com a vida cotidiana como se nada tivesse acontecido. É quase imperdoável. Aquela pessoa era tão pouco importante assim?
O vovô nunca se esqueceu. Quando ele chorava escondido, frente à foto dela, eu também chorava e ia abraçá-lo. Ele me pedia desculpas, várias e várias vezes, sem eu entender o porquê. Hoje, eu entendo.
Ele estava no mesmo poço que eu, e achava que eu estar lá era culpa dele. Ele também era um sapo, e o único amigo que eu tinha. Nós queríamos que a vovó voltasse à vida. A tristeza de viver sem ela era horrível demais.
Talvez só ele, mais de cinquenta anos mais velho que eu, conseguisse compreender o que eu sentia.
Num dado momento, ele começou a se aprofundar mais na alquimia e no significado do metal com o qual trabalhava: o ouro. Um material de validade indeterminada, cuja vida útil era eterna comparada à de uma pessoa.
Do cantinho da poltrona eu decifrava os livros que ele largava. Eu não sabia de nada, mas para mim soava como o assunto mais legal e incrível do mundo, porque, afinal, era o que o meu querido vovô gostava.
Quando fiz oito anos, eu ganhei o meu medalhão, sendo prometido que a beleza e a perfeição contidas nele permaneceriam intocadas às mazelas do tempo.
O ouro é belo, pois ele simboliza o triunfo sobre todas as coisas. Mas, para torná-lo em sua forma mais sublime, é preciso remover as impurezas, disse-me.
Se ao menos eu tivesse noção do que isso significava, lá atrás.
Enquanto o chefe executivo das Metalúrgicas Kinjō, ele era capaz de produzir o metal eterno, e temia o que não o era. Nos meus devaneios de infante, se eu me tornasse como o ouro mais radiante que eu podia, isso faria ele menos triste.
Se eu durasse para sempre, sem nunca morrer, o vovô não precisaria chorar por mim como ele chorou pela perda da vovó. Eu estaria ali por ele, sempre, sempre, sempre. Para isso, eu só precisava ser o Menino de Ouro.
Eu entendia no sentido literal. Bobo, né?
Foi só depois, a partir do que via as outras pessoas considerarem como sendo um legítimo Menino de Ouro, apreciado, respeitado, excepcional, que eu quis adaptar e me tornar o mais próximo que eu podia do ideal.
Havíamos nos mudado para Tóquio. A escola onde estudei até me transferir para a Academia Kinran era um ambiente diferente da tranquilidade costumeira. Ela era enorme, e tinha três vezes o número de alunos da minha escola em Nagoya.
Para me encaixar em algum lugar, eu fiz de tudo. Eu me tornei o melhor, o mais brilhante. Ganhei troféus, medalhas, e até uma bolsa de estudos para ingressar na Academia Kinran. Não havia ninguém acima de mim.
A atenção e aprovação que despejavam me alimentava. Na minha ilusão, isso me fazia bom. Eu era ouro. Precioso, eterno. Me ver radiante era a alegria do vovô, se é que o que eu fazia ainda era pelo puro desejo de o fazer feliz.
Tão inocente eu era que nem se passava pela minha cabeça que ele iria embora antes de mim. A impureza que eu precisava remover para dar lugar a algo considerado belo e perfeito era... a morte, em si, o que era impossível.
Eu fui apanhado pelas Mãos do Mundo. Não, talvez elas tenham tentado me dominar desde os meus sete anos de idade, apertando-me, sufocando-me com a força de milhares de correntes, e fui me entregando conforme eu crescia.
O que são as Mãos do Mundo? Eu não sei explicar. O que ela significa vem naturalmente para mim, por uma razão desconhecida. Eu apenas sei que elas sempre me acompanharam. O "Menino de Ouro" era a minha fuga.
Ser negligenciado pela minha família, como a vovó foi, era o que mais induzia terror em mim. Era a morte. Quero dizer, se eles foram preconceituosos até com ela, por que não seriam com um menino que gosta de outros meninos?
Um que poderia acabar não proporcionando aos pais o orgulho de serem apresentados à futura nora, ou de ganharem um neto. Incontáveis vezes ouvi comentários horrendos vindos deles e dos meus tios.
Eles me abandonariam. Eu tenho certeza que, por trás de suas máscaras, eles teriam nojo de mim.
Eu estava obcecado por tentar me encaixar e seguir o exemplo do que era prezado pela sociedade japonesa, e me dessensibilizei para com a vovó. Me camuflei com as cores deles e me esqueci dela.
Tsubasa me remetia a ela. Ambos me chamavam pelo mesmo apelido, e tinham um jeito muito parecido de se comportar. Delicados, tímidos e atenciosos. Eu devia enxergar nele a pureza que eu enxergava nela.
Até que o peguei se tocando com outro menino. Depois com outro, e com outro. As vozes dos meus parentes se referindo à vovó como “mulher fútil”, “vulgar”, “imunda”, ecoavam nos meus ouvidos.
Da mesma forma que eu estava sendo preconceituoso com Tsubasa, eu estava sendo com a minha avó. Expressando em voz alta ou não, nada mudava o fato de eu estar reproduzindo o pensamento compartilhado pela minha família.
Se os boatos fossem verdade e a vovó tivesse exercido trabalho sexual, o que mudava? Sim, isso já caracterizava um crime perante a lei japonesa na época, mas o que raios eles sabiam sobre a vida dela?
Se a investigaram tanto, deveriam saber os motivos pelos quais ela o faria. E se não levavam isso em consideração, era porque não convinha com o real intuito: pressionar meu avô a desistir do casamento, para não manchar o prestígio do nosso sobrenome.
Ele nunca cedeu a isso.
Porém, quando o vovô partiu, ele foi enterrado em um túmulo distante do da vovó, contra sua vontade. Ele não tinha um testamento escrito, então os encarregados dos preparativos foram os meus padrinhos. Desde então, a forma que eu via o mundo mudou.
As pessoas não eram iguais, não como meus pais me ensinaram. Enquanto uns recebiam tratamentos dignos, outros eram tratados como algo mais vil do que lixo. E depois que morressem, seus desejos ainda não seriam respeitados.
A minha vida era uma ilusão onde eu podia me refugiar do veneno invisível correndo no sangue dos Kinjō. Do mal que esse sobrenome representava, e do remorso que o vovô sentia por herdar os bens contra sua vontade.
A maneira que ele achou de se sentir melhor consigo foi virando um filantropo. O estereótipo do velhinho gentil que ajudava os pobres e necessitados, dando presentes para as crianças que vinham do mesmo lugar que sua falecida esposa.
Se ele não tivesse se apaixonado por uma pessoa dessas, não precisaria ter se importado com nada. Ele poderia ter continuado a viver a ilusão, aproveitando seus privilégios ao máximo, sorrindo, sem sentir nada.
Eu fui o próximo elo da corrente.
Meu castelo de ouro, que deveria em teoria ser eterno, estava desabando, apodrecendo comigo dentro. Manchas de decadência se dispersavam como videiras pelas paredes, pelo piso, e pela minha pele também.
Tsubasa e eu éramos como a vovó e o vovô. O ciclo se repetia, onde quer que tenha começado. O vovô fez o que pôde para quebrá-lo, eu não.
Como pude ser tão idiota de fingir não ver isso? Por que eu desisti e me deixei sucumbir às Mãos do Mundo? ... Por quê? A verdade sempre esteve bem diante dos meus olhos, e ainda assim, tão covardemente, eu-... eu...
Eu continuei tentando tampar o vazio no meu peito com pedras, ao invés de por um fim nessa maldição. Eu me tornei arrogante, um ser preenchido por húbris. A única coisa que esse coração defeituoso bombeava era vaidade.
Me desculpe, vovô. Eu não fiz nada que fosse orgulhá-lo. Eu menti, até para o senhor. O seu menino Terumichi foi um grande mentiroso esse tempo todo.
Eu abri mão das lembranças da vovó de propósito, mesmo que isso te machucasse tanto. Eu o abandonei no fundo do nosso poço. Até o fim, o senhor tentou me lembrar do nome dela, e eu fingia não perceber para fugir do sofrimento.
A minha escola nunca foi incrível, e eu nunca estive cercado de bons amigos, como eu contava por telefone. E como se não bastasse eu ter deixado o senhor sozinho, eu fiz o mesmo ao meu único amigo, que era uma vítima de violência.
Se eu tivesse aceitado o que eu e Tsubasa vivemos, ao invés de me esconder atrás da minha estupidez... Se eu o tivesse tirado daquele inferno, nem que eu fizesse uma loucura e fosse expulso junto... será que nós teríamos um futuro melhor?
Ele ainda teria feito o que fez?
Ninguém respondia. Ninguém responderia, já que, nesse lugar, só havia eu e o meu reflexo distorcido, quebrado em dezenas de pedaços. Um espelho rachado, manchado com o sangue que saiu da ferida latejante em minha mão.
Suor cobria o meu rosto, e eu ofegava. Eu estava agora vestido como o Filho de Trismegistus.
De nada adiantava procurar um motivo que justificasse o que aconteceu, eu sei bem. Só doía muito. Se eu descesse mais fundo na minha própria escuridão, a dor me tiraria a capacidade de discernir o verdadeiro do falso.
Mas, me restava uma certeza: há algo de verdadeiro para mim no mundo, e eu não permitirei que ela se torne falsidade. Esse erro não vai se repetir. Esta é a minha última confissão; o âmago das minhas lamentações.
Vovô, onde quer que o senhor esteja, me dê forças. Se ainda puder perdoar o seu neto, por favor, olhe por mim. Eu estou indo recuperar o que eu perdi.
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EMBLEMA XLII
Na Química, deixe que a Natureza, a Razão, a Experiência e a Leitura sejam guia, cajado e lanterna.
"Que a Natureza te guie e que tu sigas em tua arte,
porque errarás se ela não for tua companheira.
Que a Razão te sirva de cajado e a Experiência
te assegure a luz, para que com ela veja
as coisas distantes, discernindo o bom do mal.
Que a Leitura seja a lâmpada que clareia as trevas,
para que você se proteja com prudência
do acúmulo de coisas e palavras."
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