Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 30: O Vazio

— Comecemos, então, o rito preparatório — declamou o Imperador das Rosas, sob os holofotes do tribunal. — Desafiantes, respondam de coração: juram seguir, defender e preservar as leis deste Anfiteatro, ainda que tuas vidas dependam disto?
— Nós juramos.
— Juram lutar para alcançar Messias, tendo isto como propósito singular?
— Em nome da Correnteza Eterna; a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens.

De um único beijo irrompeu a luz de um Sol, e o meu medalhão tomou a forma de um caduceu.

Em sintonia com minha pulsação, um líquido cintilava no interior de um ovo. Ele se partiu, e ouro fervente despejou sobre o meu anjo, dando forma às peças da armadura consagrada.

Tendo a máscara materializada em seu rosto, brandiu a espada elegantemente.

Pelos desígnios da Correnteza Eterna, Hector seria obrigado a lutar todas as vezes em que Castor fosse ao campo de batalha sem a presença irmã gêmea. Nisso, eu bolei uma contra-estratégia, e estávamos prestes a botá-la em prática.

A senhorita Pollux não mentiu. Ela confiou em nós quando propomos a trégua, pedindo-me para pararmos seu irmão, e isso me deu o palpite de que ela pretendia interferir no combate, o tornando vulnerável para nós.

Mas, por compartilharem do mesmo corpo, ela também pagaria o preço das ações dele. No dia em que a consultei, era quase como se ela estivesse... pedindo socorro, por trás da abnegação. Ela, também, foi uma vítima.

Eu me sentia péssimo. Eu tinha plena ideia do tipo de pessoa em que eu estava me transformando a cada segundo passado naquela torre infernal. Ainda assim, eu tive que fazer a minha escolha. Eram eles, ou nós.

— Hector — o chamei, segurando sua mão —, lembre-se: o senhor Castor vai te desgastar até quebrar. Siga com o plano e vire os termos de resistência contra ele, mas não se precipite. Na primeira oportunidade, tire-lhe a máscara.
— Entendido.
— Force ele ao limite. Não dê a ele outra escolha a não ser trazer Pollux ao campo. E se não der certo, use do último recurso.
— ...
— Não se preocupe comigo. Eu não vou ter medo de você. Não vou te odiar. Faça o que precisa fazer. Você consegue?

Assentiu.

— Ótimo. Preste atenção nas suas asas. Ele tentará te incapacitar de novo.
— Ele não vai triscar nelas — Virou-se, posicionando a espada à frente.
— Eu estou com você. 
— Obrigado, Terumichi.
— Filho de Trismegistus, um minuto sua atenção! — Uma voz orgulhosa ecoou a partir das caixas de som. — Se importaria se eu tivesse um momento a sós com o comprometido?
— Não pretendemos nos render, senhor Castor. Nós lutaremos, até o fim! Mostre-se!

O vento forte bateu, vindo com a descida de Castor ao palco.

Havia algo de diferente em sua silhueta. Asas do tamanho das de Hector, com penas brancas e pretas. Os holofotes as iluminaram por trás, dando a impressão de uma auréola rodeando a cabeça do portador.

Desembainhando os sabres gêmeos, exclamou:

— Eu, Júpiter, venho na forma de uma águia! Raptar-te-ei, ó, criatura de preciosidade, e tua solidão brilhará no alto dos céus! Imperador das Rosas, faça as honras!
— Abram-se as cortinas para o quinto combate da Corte dos Heróis. A condição para a vitória é derrubar a máscara do adversário. Vença aquele que prevalece em glória e dignidade!

Com a cenografia desértica, alçou-se ao fundo uma réplica da Pirâmide de Quéops, também conhecida como a Grande Pirâmide da Necrópole de Gizé. Mais uma localidade da Terra. Mais especificamente, do Egito.

Os combatentes pisavam sobre a Esfinge, um sobre a cabeça, e outro sobre as costas.

Na atroada dos músicos estatuários, iniciaram. Os ataques do senhor Castor eram velozes, mas Hector, que lia bem o estilo de luta de seus oponentes, conseguia prevê-los melhor do que antes, e captar seus padrões.

Uma hora, esquivou com a mesma cambalhota de quando treinara com Theseus e a senhorita Circe, no período preparatório para a luta. Me remetia aos alertas da nova mentora, logo depois de ela derrubá-lo.

— Ainda está lento! — exclamou ela, naquele dia. — Não confie só no impulso de suas asas. Jogue o corpo todo para trás, ou elas ficarão expostas!!

Ele era forte e habilidoso, mas dependia muito das asas para lutar. Sua confiança se tornava descuido.

A tutoria o favoreceu nisso. Depois que ele parou de se distrair zombando dos oponentes e se arriscando com o desnecessário, era quase como se eu visse outra pessoa duelar. Sem falar que, dessa vez, a cambalhota foi perfeita.

— Ahahaha! Eu sinto, meu Ícaro, a sua força renascida! — o dióscuro esgazeava, em frenesi. — Eu quero ver mais do seu novo poder! Vamos, brilhe para mim!
— Tsc--!

Aterrissando no plano vertical da nuca da esfinge, tomou propulsão e avançou. Num estalo, a máscara voou...! Foi surpreendente. Ele não deu nem uma abertura sequer, e finalizou com sagacidade.

Mas esse estava longe de ser o fim. Uma nova máscara apareceu no rosto de Castor, e o cenário se metamorfoseou para o Farol de Alexandria, arquitetado por Sóstrato de Cnido. Mais uma das maravilhas do mundo antigo.

— Hora do Round 2.
— Acha que aguentará para sempre?
— Você já sabe as regras da brincadeira. Eu e você, de novo e de novo, até que o primeiro caia morto! — Ele bateu os sabres cruzados contra a espada. — Esse é um momento só meu e seu, um momento que eu quero que dure para sempre! E quer saber?! Eu nunca estive tão feliz em toda minha vida!!

Às gargalhadas alucinantes, as luzes trocavam de cores em um efeito caleidoscópico, e máscaras caíam uma atrás da outra.

Batalharam sobre a grama dos Jardins Suspensos da Babilônia, e depois à sombra do Colosso de Rodes. Com a queda do titã-deus, a tocha da liberdade instigou um incêndio no então revelado Templo de Ártemis, e a fumaça subiu.

A cada round, eles paginavam um livro ilustrando as mais majestosas obras arquitetônicas do homem. Tinha o Alhambra, os Jardins de Bomarzo e o Palácio de Versalhes. O Castelo de Neushwastein, e até a Catedral de Santa Maria della Concezione dei Capuccini.

Um ciclo infinito.

— Seu comprometido não vencerá se não lutar para matar. — A serena voz de Pollux fluía em minha mente, por intermédio do Amaranto. — Vocês têm medo de tirar uma vida se não for através do ouro? É porque sentirão mais culpa se suas mãos estiverem manchadas com sangue?
— ...
— Eu garanto que, seja pelo ouro ou pela carne, a culpa é a mesma.
— Por que o senhor Castor está fazendo isso? — indaguei. — O que Hector fez para ele?
— Ele vê a si em Hector de Vertumnus. Uma alma vazia aprisionada pela dominação de deus. Mas ele não conseguirá se libertar desse deus, tampouco se tornar um ser que domina. Ainda que passe séculos desejando, caçando e devorando o amor, nada preencherá o vazio que ele sente.

Franzi o cenho.

— Não tem nada que possamos fazer? Nada?!
— Esperar por um milagre. É o que sempre fiz.
— Um milagre não vai acontecer, senhorita Pollux. Milagres só acontecem com um sacrifício equivalente, e esses sacrifícios só nos trarão mais arrependimentos.
— ... Tem razão. Nesse caso, eu tomarei uma decisão por mim mesma, ao menos dessa vez.
— Huh?
— Eu gostaria de ter te conhecido mais, Terumichi Kinjō. Adeus.

Todo cortado e ralado, o dióscuro rolou até o Monumento de Zeus de Olímpia.

Antes que reagisse, o comprometido apontou a ponta de Cálice para sua garganta. Se a única saída era matar, a águia-pescadora daria cabo da águia-imperial, ali mesmo.

— Acabou, Castor de Carmenta — asseverou, ofegante.
— É, nós brincamos bastante. Haha. Vá em frente. Só acaba quando você derramar meu sangue nos pés do meu pai.
— Que assim seja.

Desferiu o golpe, mas este não acertou a carne, e sim a superfície da ombreira dourada.

— O quê?!
— Não pode ser. Pollux?!

Ela apanhou a lâmina prateada com tanta força que sua mão sangrou. Desarmando seu adversário, aplicou-lhe, como um raio, um chute que o arremessou contra uma coluna de pedra.

A poeira se dissipou, e a espada foi derrapando de volta até a ponta dos dedos dormentes de Hector. Devido ao baque, não conseguia nem a segurar com firmeza.

— Você veio cedo demais — comentou o dióscuro, limpando a bochecha.
— Realmente não consegue pensar em outra coisa além de si, meu irmão. Eu salvei a nossa vida.
— Vida. A casca feia e inútil de um ovo destinado a quebrar.
— Farei o que deseja pela última vez. Após isso, apagarei a mim mesma. Você estará por sua conta nesse mundo repulsivo.

Com os olhos arregalados, o peso de meu corpo quase se revirou para o outro lado da cerca. Ela quebrou o ciclo repetitivo de duelos, tomando o partido de Castor.

Era agora ou nunca. Se perdessem a máscara, seriam derrotados. Nessa hora, senti um poder incompreensível ressoar comigo e causar pontadas a cada batida do meu coração.

Ugh...! O que era isso? Seria uma reação alquímica do Amaranto?

EMBLEMA XL
Das duas águas, faça uma, e esta será a água da Santidade.

"Depara-te com duas fontes de água fluente,
uma jorra água quente, e a outra, fria.
Uma é a do Menino, e a outra, a da Virgem.
Misture-as para que sejam uma,
e tenham as qualidades de uma e da outra.
Isto é, assim como a fonte de Júpiter e Amon,
que é tanto quente quanto fria."

Os tetos se abriram, e um céu nublado por onde passavam frágeis feixes luminosos clareou a arena.

Ergueu-se um templo de dois, três andares, com o brasão da cidade de Vertumnus sobre os portões. Rodeavam-no camadas de pilastras imensas, cujas partes superiores ligavam-nas umas às outras feito pontes.

— A-Aquele é o... Arcabouço das Profecias de Vertumnus — completou Kosmo, desnorteado. — ... O favor do Anfiteatro mudou? Como isso é possível?
— Kosmo? O que está havendo? — Theseus perguntou, sendo ignorado pelo mais alto, que deixou o pulvinar às pressas. — K-Kosmo!!

Plumas de bronze e obsidiana esvoaçaram. A senhorita Pollux, na voz de uma deusa justiceira, proclamou:

— Comprometido, os dióscuros de Carmenta juram tomar tua vida! Hoje, cearás na mesa de deus! Que cantem os pássaros!

O legítimo quinto combate da Corte dos Heróis se iniciava. Os anjos dançavam ao bater de espadas e ao brilho do impacto entre elas. Fagulhas caíam como estrelas cadentes, brilhando e desaparecendo. 

Era uma visão magnífica, e desesperadora. Uma guerra entre seres celestiais, às entradas de um paraíso dourado que resplandecia por trás das nuvens. Eu quase chorei, por jamais ter presenciado nada nem remotamente semelhante.

A habilidade da gêmea mais nova com as asas era extraordinária, um ponto que a distinguia do primogênito. Em verdade, o poder dela superava o dos outros dois. Ela era como uma Lua de prata prevalecendo sobre o Sol dourado.

Com um voo rasante sobre os elevados dos pilares, Hector inseriu uma investida. Porém, num simples salto, os dióscuros o pegaram pelos trajes brancos, desequilibrando-o e o arremessando de volta para a superfície, onde se formou uma cratera.

O baque foi forte demais. Ele se levantou, tossindo sangue. O dano às costelas devia ter ferido os pulmões. Seus movimentos desanimavam, e devido à dor irradiando pelo corpo inteiro, custou até se reposicionar.

— Meu Ícaro, você pertence a mim! — Um clamor das alturas. — E só a mim!!

O tempo de respirar foi curto.

O mergulho relâmpago dos oponentes o forçou a se defender em falso com a espada, cuja lâmina se rompeu. Uma rajada de vento o perpassou. Aquele ataque criou uma rachadura que cresceu até cortar a estrutura do templo cenográfico no meio.

Com a arma destruída, sem ter como revidar, o comprometido deu passos atrás, amedrontado. Contudo, seus oponentes não recuaram. Lhe infligiram o pulso direito, fazendo-a soltar o cabo da espada. A apunhalada seguinte foi no ombro esquerdo.

Àquela altura, Hector havia parado de reagir. Era como se ele tivesse aceitado que estava prestes a morrer. Diante disso, os dióscuros o aplicaram um rápido corte que atingiu os dois joelhos, rendendo-o imóvel no solo.

Eu tremia e suava, sem cessar. Mexa-se, Terumichi. Mexa-se de uma vez e vá ajudá-lo. Até quando você vai ser um inútil que só fica olhando os outros sofrerem? Você não cansou disso? Se você não se mexer neste exato momento, Hector vai-...

Vá, use do seu poder para tirá-lo de lá, mesmo que isso custe a sobrevivência da humanidade em Arcadia. Não interessa se todos vão te odiar, ou te culpar por isso. Ninguém mais fará isso por ele a não ser você...! Está me ouvindo? Ninguém!

— Olhe só, Pollux. Ele é meu. Todinho meu. Nós conseguimos...! Agora, dê-me da carne dele para comer e beber! É uma ordem!
— Sim, meu irmão.

O caído tentou se arrastar, mas foi fútil. Escorregou com o cotovelo no sangue espalhado. Suas asas e pernas não respondiam, e tampouco sua voz saía.

— Você não tem chances. Resigne-se e será menos doloroso — disse a mulher. — Você entende a agonia de ter aberto essas asas sob a escuridão sem fim. Esse foi o dia em que nascemos, e o dia em que morremos.
— Não enrole, Pollux! Está esperando o quê?!

Impetuosa, ela pregou a mão dele ao chão com uma das cimitarras. Um grito foi arrancado do fundo de sua garganta, o fazendo queimar o resto de fôlego. A próxima fincada o finalizaria.

— Hector!!! — eu gritava, correndo até o campo. O poder que armazenei na joia pulsava para além do controle, e eu estava prestes a expeli-lo. Eu daria um fim a esse jogo que nunca deveria ter começado.

Foi quando longas correntes douradas me envolveram, prendendo-me onde estava. Elas não vinham do sistema de segurança, e sim de um mangual de ouro sustido pelo gêmeo mais novo de Vertumnus.

— Kosmo...?! Não, não vá! — Sem me dar ouvidos, ele seguiu em frente. — Você não pode! Pare!!!

A restrição não afrouxava. Se um desafiante interferisse em um duelo, seria desclassificado. No entanto, Kosmo estava convicto de usar disso como último recurso e salvar a vida do irmão em troca da própria.

Até que algo aconteceu, e ele não deu mais um passo.

— ... Por que parou? — Castor interpelou. — O que pensa que está fazendo?!

Ele tentava tomar controle da mão, mas era dura demais.

— Uugh! Pollux, mate Hector de Vertumnus, agora!
— Não posso fazer isso. — Trêmula, ela largou o sabre e caiu de joelhos, abraçando o próprio corpo instável.
— Está maluca? Desgraçada!! Me dê essa espada! Devolva o meu corpo, impostora maldita! Ele é meu, eu sou o original! Eu vim primeiro!
— Já basta, Castor!

Contra debatidas e grunhidos, a senhorita Pollux desatou a corda da própria máscara e a atirou para longe. Lágrimas percorreram os dois lados do rosto exposto.

— O que foi que você fez, sua-...?! Aaahh, aaarghh!! Aaaaaahh!!!
— Eu não posso te sacrificar! Jamais aceitarei te perder para o papai!
— Do que está falando?! Sua vadia! Logo quando eu estava prestes a ter ele em minhas mãos! N-Não, eu não quero morrer... Eu não posso morrer agora, não quando eu estava tão perto!!
— Você só queria viver e ser amado como um humano, não é? — Ela acariciou a outra bochecha. — Eu procurei uma forma de provar que, ao menos para mim, você significava mais do que aquele caixão de ouro. Me perdoe se isso te trouxe mais infelicidade.
— Infelicidade?! Você é um peso! A merda de um obstáculo! Uma maldição! Você sempre arruína tudo, Polluuuux!!!
— Eu te amo, meu irmão. Você e eu somos seres humanos. Vai ficar tudo bem agora.

Cristais de topázio imperial brilharam dos olhos do Imperador, emitindo clarões amarelos piscantes incômodos à vista. Em pouco, os dióscuros foram transformados uma peça banhada em ouro; a estátua de um anjo de duas faces.

A pluma solitária pousou sobre uma poça que mais parecia vinho esparramado. Era um vinho morno, extravasando do corpo do herói que ainda era composto de carne e osso. Seu peito mal se movia para respirar.

— O quinto combate termina em rendição! — o Imperador das Rosas bradou. — Os desafiantes Castor e Pollux de Carmenta estão oficialmente desclassificados! Pela autoridade da Correnteza Eterna, esta Corte entra agora em Reavaliação de Dignidade!

Reavaliação de... Dignidade?

O caduceu e o pingente com a pedra vermelha cintilaram, emitindo uma aura quente.

Lembro-me de Theseus e Circe correndo na minha direção, e de eu tentando dizê-los para trazer Hector até mim, mas minha voz não saía. Minha visão turvou, e minha mente flutuava para longe.

Repentinamente, meu corpo evaporou no ar. Do que uma vez foi Terumichi Kinjō, restaram as vestes acorrentadas do Filho de Trismegistus e um único fruto de romãzeira, partido pela metade.

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Abri os olhos, de supetão.

Vi-me em um interminável salão sem paredes. O ar era seco e abafado, e tinha um cheiro forte de metal misturado com umidade. ... Que tipo de lugar era esse? O que aconteceu comigo?

Algo me preocupava. Alguém necessitava da minha ajuda. Eu tinha certeza disso. Mas, o que, ou quem quer que fosse, eu não conseguia me recordar com exatidão.

Eu era rodeado por estátuas de ouro pertencentes a jovens heróis que, anteriormente, tentaram subir a Torre dos Filósofos e alcançar o Anfiteatro da Eterna Sabedoria.

Havia dezenas delas, cujas identidades eu desconhecia. Assim como eu, estavam nuas. O que não era carne tornada em ouro — o que lhes trazia impureza — foi removido.

Mais adiante, passei por um altar onde foram postas em exposição as de Patroclus, Achilles, Ganymede e uma recém-chegada, dos dióscuros. No entanto, aqui não era um museu.

A senhorita Circe me explicou que, em Arcadia, cadáveres de ouro eram armazenados em construtos majestosos chamados mausoléus, ou necrópoles, do mesmo jeito que aqui.

Era como mostravam apreço pelos falecidos; mantendo-os em um ambiente digno até que fossem trazidos de volta por Messias. A poucos era negado esse tipo de tratamento.

Na Terra, alguns heróis tiveram um destino similar.

O monumento de Odisseu do porto de Ítaca. Perseu segurando a cabeça da Medusa, por Antonio Canova. Orfeu com a lira e cercado por feras, do Museu Bizantino e Cristão de Atenas.

Embora como humanos esses heróis tenham perecido, seus mitos continuaram a ser contados ao longo das eras. Eles foram eternizados através da arte, se convertendo em história.

A história nem sempre é absoluta. Não havia provas sólidas de que Odisseu, Perseu e Orfeu existiram como os conhecemos, nem de que não existiram. Eles eram enigmas. Contradições. Conhecidos por não serem conhecidos.

Mas, com os restos mortais, ou imortais, das pessoas ao meu redor, era diferente. Muitos deles tinham a minha idade na hora em que morreram. Eu me perguntava se, no futuro, eles seriam lembrados por quem de fato foram.

... Não, eu duvido. De uma forma ou de outra, acharão mentiras para pintar sobre suas vidas e deturparão tudo. A dor que o coração de carne deles sentiu será esquecida. É o que sempre acontece.

Descendo as escadarias, me deparei com uma seção isolada do mortuário, coberta por neblina. Lá, jazia a estátua do anjo do Museu Nacional de Tóquio, virada de costas para mim.

Eu reconhecia esse torso esguio. A espessura do pescoço, e o jeito que os cabelos cresciam na nuca. A curvatura das orelhas vistas de trás. Os resquícios das cicatrizes na pele de onde saíam as asas.

Era Hector, sem sombra de dúvida.

Minha memória vivia retornando a essa estátua, como um presságio de que eu já o tinha perdido, antes mesmo de conhecê-lo. Esse medo acompanhava cada passo meu.

A angústia constante, e o vazio corrosivo que crescia a cada dia. Mesmo tentando me refugiar no amor das pessoas que me eram queridas, havia a inegável ameaça de elas serem separadas de mim.

Eu não queria pensar nisso. Eu não ia aguentar perder mais alguém que eu amava. Quero dizer, no fim, todos que eu tinha antes se foram para longe de mim. O Tsubasa. O Teruki, os meus pais, o vovô e... e?

... Quem mais?

Num piscar de olhos, o anjo foi substituído pelo memorial do chefe executivo das Metalúrgicas Kinjō, um monumento altíssimo cuja face era ofuscada pela escuridão opressiva. É como sempre a enxerguei.

Por mais que eu sentisse saudades, eu não conseguia me forçar a ver o meu avô, Teruhito, ali. Para mim, essa peça de ouro simbolizava a morte. E, para ser honesto, eu a odiava com toda a minha alma.

Faíscas soltas de recordações me vinham. Eram muitas delas, atropelando umas às outras junto às emoções que senti antes de me transformar em uma romã. Devido a isso, uma dor aguda se espalhou pela minha cabeça.

Eu mantinha os meus olhos abertos com dificuldade. Testemunhei o memorial derretendo, como se fundido à alta temperatura. E, conforme perdia a forma sólida, um caminho se formava adiante.

Eram grandes portões amadeirados, sem paredes, sem nada atrás. No emblema acima, que mais soava como o epitáfio de uma lápide, lia-se: “KUNSTKAMMER, O ABISMO ONDE O SOL NÃO ALCANÇA”.

A fisgada amenizou. Meu uniforme escolar, meu suéter verde estampado e meus óculos retornaram ao meu corpo num passe de mágica. Eu era o mesmo Terumichi do dia da excursão ao Museu Nacional de Tóquio.

No entanto, havia algo diferente dentro de mim.

— Visita Interiora Terrae, Rectificando, Invenies Occultum Lapidem — exclamei o abre-te sésamo, por impulso. Eu não fazia nem ideia de quando, onde ou como o descobri.

Os portões se abriram. Me deparei com um lugar que parecia ter vindo direto de um sonho. Mecanismos mirabolantes. Terrários experimentais em funcionamento. Lâmpadas a óleo, e cheiro de incenso.

À direita, telas de computadores com filmagens em tempo real da cidadela. Elas reproduziam as filmagens de Hector sendo resgatado por máquinas enfermeiras e passando por operações de primeiros socorros.

Kosmo e a senhorita Circe rasgaram pedaços das próprias vestimentas para tentar estancar os sangramentos até elas chegarem. Thes, acuado, quedou segurando minha camisa e a fruta que deixei para trás.

Nenhum tratamento médico seria tão eficaz quanto o meu Amaranto. Para garantir que Hector fosse curado o mais rápido possível, eu precisava achar uma saída desse gabinete e retornar aos meus amigos.

Vi aparatos de teatro idênticos aos da arena de duelos. Controles para regulação de luminosidade, temperatura da água, motores liberadores de oxigênio e outros gases essenciais. Viveiros adaptados para pássaros.

À frente, fábricas que organizavam centenas de peças de armaduras, roupas, joias e armas em um extenso ateliê. Havia também uma ala similar a um armazém de arte que guardava pinturas de diferentes épocas.

Por fim, encontrei. Sobre uma porta moderna de prédios executivos, era escrito em uma placa fotoluminescente: “saída de emergência”, mas, para a minha decepção, ela me levou a um espaço adicional do ateliê.

Este era mais rústico. Devia fazer um tempo desde a última vez que alguém passou por ali, ou que o limpou. A maioria das obras era coberta com um pano branco para evitar a poeira.

Um ruído muito alto foi emitido de um objeto gigantesco, proeminente em relação aos outros. O tecido que o cobria foi se desprendendo, e em pouco revelou-se a natureza do trabalho.

Era um díptico retratando um par de gêmeos siameses nus. Duas cabeças, ambas ruivas. Quatro braços, duas pernas e uma pélvis. Intitulava-se “Kush’padme, as Crianças-Dragão”.

Descrevia-o: “Uma aberração; um dragão capturado no Reno, que viveu até a idade de vinte e oito anos na corte de Jaime IV da Escócia”. ... Um dragão? O que diabos isso significava?

— O mundo — respondeu uma voz familiar. — O Ovum Philosophicum, cuja casca há de ser quebrada pela espada ardente.

De relance, me virei em direção a um espelho, a origem da voz. No reflexo, onde eu deveria enxergar apenas a mim mesmo, havia outra pessoa, cujo olhar gélido se fixava no meu.

... Por quê? Por que você está aqui?

Outro pássaro disse à Poupa:

“Tenho o coração alvoroçado de felicidade porque moro num sítio tranquilo. Possuo um castelo de ouro, tão belo que toda gente o admira, e ali vivo num mundo de contentamento. Como esperar que eu abandone tudo isso? Nesse castelo sou como um rei entre pássaros; por que, então, me exporia às agruras dos vales de que falas? Devo renunciar, de um golpe só, ao meu castelo e à minha realeza? Nenhuma criatura sensata abandonaria o jardim para sair em uma viagem tão penosa e tão árdua!”

A Poupa replicou:

“Ó tu que careces de inspiração e energia! És um cão ou desejas ser atendente do hammam? Este mundo inferior em que vives não passa de uma sauna, e teu castelo faz parte dela. Ainda que seja um paraíso em mundo, a morte, um dia, o converterá numa prisão de sofrimento. Só se a morte deixasse de exercer seu domínio sobre as criaturas poderias permanecer contente no teu castelo de ouro.”

A Conferência dos Pássaros, “As desculpas do oitavo pássaro”
Farid ud-Din Attar, meados de 1177.

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Hey, aqui é o Rafa! Este capítulo encerra o segundo arco, “Coniunctio”, concluindo assim o primeiro volume de Os Prelúdios de Ícaro. Na próxima semana, se iniciará o segundo volume com o terceiro arco, “Sublimatio”.

Muito obrigado por me acompanhar até aqui!

 



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