Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 29: O Confinamento

Kush’padme, as crianças-dragão. Um símbolo cujas raízes precediam a alquimia e o evento catastrófico da grande cisão. Era a união entre Koshmayah e Padomektah, dois irmãos que compartilhavam do mesmo corpo.

Koshmayah era a Lua, Padomektah era o Sol. Koshmayah era a carne, Padomektah era o ouro. Koshmayah era um poeta, Padomektah um guerreiro. Eles representavam a comunhão entre os polos opostos da natureza.

Belos e poderosos heróis eram, tanto que se dizia que o Filho de Hermes Trismegistus só veio a ser considerado perfeito pois remetia ao duplo lendário. Um dia, contudo, a crueldade das “Mãos do Mundo” os dividiu.

“De dois, faça-se um, e será digno das mesas dos Deuses! De dois, faça-se um, e será digno do leito das Deusas!" suplicaram, e os atiraram ao fogo primordial.

Assim, Koshmayah foi sacrificado para fazer de Padomektah uma existência singular, completa e duradoura, e derreteu à luz do Sol Sagrado. A chama de Hermes Trismegistus era a chama que consumiu Koshmayah.

Para alguns profetas do magistério, essa lenda era uma profecia que previu a separação entre Arcadia e Agartha; dois mundos que, embora tenham pertencido ao mesmo receptáculo, possuíam espíritos distintos.

Seria a terra onde nascemos, então, o cadáver decomposto de uma metade descartada?

EMBLEMA XXXIII
Hermafrodito, deitado como morto na escuridão, anseia pelo Fogo.

“Hermafrodito, de duas cabeças e dois gêneros,
aparece como um cadáver quando privado de umidade.
Se surgir na noite escura, Fogo é o que ele quer.
Dê a ele e seus espíritos aquecidos reviverão.
Toda a força da Pedra Filosofal é latente no Fogo;
a do Enxofre no Ouro; a do Mercúrio na Prata.”

 Fugiens IV, “MATERIAE POLLUX” 

— Com licença, senhorita Pollux — O jovem rapaz de cabelos castanhos claros, Terumichi Kinjō, me prestou uma visita. Deixei a escova com a qual penteava meus cachos e o cumprimentei.
— Filho de Trismegistus, mas que bela surpresa. O que te traz aqui?
— Se não for incômodo, eu gostaria de conversar com o senhor Castor.
— Poderia voltar em outro momento? As cortinas estão fechadas, e me despojar durante meu autocuidado seria deselegante da sua parte.
— M-Mil perdões — gaguejou, sem graça. — Esqueça o que eu disse. Eu volto depois.
— Fique tranquilo. É um erro que as pessoas cometem com frequência, então te perdoarei. O que quer tratar com meu irmão é algo que eu não tenho o direito de saber?

Ele era tão fácil de se ver através, sua figura quase transparente.

— Não, de forma alguma. Na verdade, podemos falar sobre isso agora mesmo. ... Senhorita Pollux, o quanto vocês conhecem sobre Agartha? Ou melhor, sobre a Terra.
— A Terra? Deixe-me adivinhar. Você pensa que viemos da Terra, por sabermos o que é um parque de diversões? Está enganado — disse, com honestidade. — Mas a Terra é onde nasceu nosso falecido pai, o rei Alom Kih’mara Vamir. Bem, esse foi o nome que ele escolheu quando veio viver entre nós. Desconheço seu verdadeiro nome.

Ele sobressaltou, e dei um leve riso. Levantei-me, prendendo meus cabelos com adereços e joias, e prossegui:

— Deve estar se perguntando se somos descendentes de “Agartha”, e a resposta é não. Mesmo tentando, ele não pôde gerir um filho com um arcadiano por conta das diferenças entre nossos organismos. Aqui, ele era um homem estéril, mas não deixou de ser nosso pai. Ele nos deu livros, fotografias, mostrando-nos como era lá. O dia em que você nos reuniu na biblioteca foi até nostálgico.
— ... Então, outros vieram antes de mim. Isso é insano.
— Ele foi o único agarthiano que conheci. Nossa mãe foi escolhida entre suas múltiplas mulheres para ser Esposa em conúbio quando já tinha uma criança. Ao que parece, ela era algum tipo de cobaia para experimentos humanos. Eu e meu irmão acabamos sendo uma conveniência para a criação da imagem poderosa e fértil da prole real de Carmenta.
— Por que está me contando todos esses detalhes, senhorita Pollux? Não está do lado do senhor Castor?

... Hmm. Por que será?

— Pela felicidade do meu irmão, eu menti a minha vida inteira. Eu fui sua cúmplice mais fiel. Tenho certeza que se ele estivesse nos escutando, me chamaria de traidora e me trancaria em nossos espaços individuais.
Ele é o traidor, e mentiu para todos nós. Até para você. Depois do que ele fez com Patroclus, Achilles e Ganymede, eu não posso mais deixar que ele faça como quer.
— Então você não precisa dos meus conselhos. Antes que ele se destrua, por favor, pare-o.
— Como?
— Não se faça de bobo. Você sabe muito bem como. Em um duelo.

Minha franqueza o paralisou. Imaginei que ele reagiria assim. Apesar da determinação, sua principal preocupação era com Hector de Vertumnus. Um “duelo” não era uma coisa tão simples quanto fiz parecer, não é?

— E quanto a você, senhorita Pollux? — indagou, surpreendendo-me. — O que vai acontecer com você?
— Oh. Não se importe comigo. Desde o início, o meu propósito era ser descartada para dar a ele completude. Mas isso não se realizará. Nunca se realizará. Então, certifique-se de levar o seu campeão à vitória, ouviu bem?

Me pergunto o que Terumichi Kinjō esperava ouvir ao abordar meu irmão. Uma verdade, ou uma mentira. Um punhado de ouro, ou uma pilha de carne. Isso nem mesmo eu tenho como prever.

Ao despedir-se, tinha um semblante infeliz. Ele se compadecia pelos heróis fadados a alcançar Messias, e por mim. Estou certa de que já chegou a sentir remorso pelas mortes deles. Ele tentou o melhor que pode, e não deu certo.

Em partes, eu o compreendia. Se eu tivesse feito algo, talvez Gany ainda estivesse vivo.

Ele me tratava com carinho sem eu pedir por isso, e cuidava bem de mim após o falecimento dos nossos pais. Mais do que qualquer outro, Gany foi para mim o que eu melhor entendia como sendo família.

Lembrava-me de uma noite fria, quando tínhamos apenas doze sóis, em que conversávamos em meu quarto.

— Minha senhora Pollux, o Castor e a senhora sempre estiveram juntos desde que nasceram? — indagava, adornando meus cabelos com flores.
— Sim, e não. Eu despertei quando meu irmão tinha oito sóis. Antes disso, eu estava apenas dormindo. Mas foi ele quem me ensinou boa parte do que sei, desde antes de eu acordar.
— Eeehh, então é por isso que ele é o irmão mais velho. Parece até o contrário.
— Mas, de alguma forma, eu senti que o conhecia desde sempre. Eu ouvia sua voz, e o via em meus sonhos. Ele é brilhante, cavalheiro e doce.
— Perdoe-me a ousadia, minha senhora Pollux, mas me parece ter uma ideia errada de Castor. Ele é um sacana! Se faz de maduro, mas é um malandro e um pirralho pervertido. Ele não merece sua bondade.
— Dê um tempo a ele, e você conhecerá sua faceta sensível.
— Ah, mas eu duvido!

Gany tinha plena razão. O que eu me forçava a ver em Castor era alguém diferente de quem ele realmente era. Eu cometi um erro que jamais poderia ter cometido, e eu repeti esse mesmo erro inúmeras vezes.

Alguém como eu não tinha o menor direito de espalhar salvação a alguém. Os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria não deveriam ser destrancados por nenhum de nós dois. Não merecíamos alcançar Messias.

E por mais que eu quisesse confiar na palavra de Terumichi Kinjō, não havia um espaço para mim na paz que ele buscava. O corpo que eu e Castor habitávamos era um só. Separar-nos era impossível. Tudo o que eu podia fazer era...

— Castor! Pare!!

Naquele dia, eu arranquei nossas mãos do pescoço de Gany e empurrei meu irmão para longe do controle, fechando as cortinas à força. O fiz o mais rápido que eu podia.

— M-Minha senhora Pollux. — Ele soluçava, e eu o abracei, ainda que só isso não fosse o suficiente.
— Me desculpe, Gany. Me desculpe. Não acontecerá de novo. Tudo bem?
— T-Tudo bem. ... Tudo bem.

Me perdoe, Gany. Eu deixei, sim, isso acontecer de novo. Foi tudo culpa minha, não foi?

Por eu ter sido uma observadora, e não ter feito nada até o último momento. Eu acreditava que outra pessoa seria capaz de impedi-lo em meu lugar, por ser impotente para rejeitá-lo. Por favor, me perdoe.

Quando criança, meu irmão foi criado sozinho como “Pollux”. Ele era um gênio e um poeta. Um rapazinho gentil e falante, cheio de carisma.

Enquanto eu dormia em minha cama enfeitada com rosas douradas, posicionada bem ao centro do nosso espaço particular, ele acariciava minha cabeça e me contava mil e um contos e fábulas.

Lembro-me com exatidão de quais ele mesmo escreveu, e de quais aprendeu por livros. Cada uma delas trazia uma mensagem diferente. E, por vezes, sua tristeza ressoava comigo ao lê-las.

Disse-me que gostaria de criar sua própria versão delas. Como, por exemplo, uma em que os dois heróis que desbravaram a floresta das águias sobrevivessem, mesmo após separados, cumprindo com seus respectivos desejos.

Certa vez, ele chorou mais do que nos outros dias. Eu fiz força para abrir os olhos, assolada por uma aflição incompreensível, até que descobri que as lágrimas dele também eram minhas.

Havíamos sido jogados em um abismo, onde fitávamos a chama de uma vela. A dor o fazia se contorcer. Asas pretas e brancas cresciam de suas costas... digo, de nossas costas. Mas eu não sentia.

Ele tomou a contrição para si e sofreu sozinho.

Quando tudo terminou, eu o consolei no jardim imaginário que construímos em nosso ambiente particular. Era um universo repleto das nossas coisas favoritas, e o nosso porto seguro.

“A sua dor, eu quero partilhá-la com você, meu irmão”, disse. “Você não está mais sozinho. Eu nunca mais vou te deixar sozinho.” Após isso, ele retornou com um sorriso, e me abraçou.

O meu cometimento em vida era o de amá-lo e aceitá-lo quando outras pessoas o nutriram com violência. Por isso, prometi a mim mesma que seus pecados também eram meus, e que com ele eu tomaria toda e qualquer punição.

Fui apresentada aos meus pais, a Gany — que tinha oito anos na época —, e aos criados. Eles me ensinaram a ler, escrever e, principalmente, lutar.

Eu me deleitava ao som do bater de espadas e ao brilho do impacto entre elas. Eu sonhava em ser com meu irmão o aspirado guerreiro sagrado, um herói que irradiava honra e justiça, e me esforcei para tal. Esse era o meu desejo.

Recebi o nome “Castor”. O distinto, o brilhante.

Como Pollux e Castor, éramos a encarnação do solene Kush’padme. No que um carecia, o outro se sobressaía, e criávamos perfeita sintonia em nossas palavras e no mover dos nossos membros.

Tínhamos em nós o fruto do Primeiro Andrógino, o embrião da Águia de Deus, e essa foi uma das razões pela qual nosso pai veio a se intitular o rei dos deuses, Amon-Júpiter. As bênçãos dele ungiam a mim e minhas artes da espada.

Pollux, por sua vez, já não tinha a mesma aptidão e ímpeto para lutar, e preferia as linguagens e ciências da humanidade. Embora estas fossem qualidades louváveis, não eram o que se esperava de um que subiria a Torre dos Filósofos.

Para ele receber a mesma apreciação de nosso pai, eu mantinha as cortinas abertas e lutava em seu lugar, aumentando assim sua pontuação perante os testes e provações.

Isso se tornou um costume. Num dado momento, começamos a fazer várias outras atividades simultaneamente, sem que ninguém notasse. Mentíamos e pregávamos peças em todos.

Nossas artimanhas e travessuras chegaram a um ponto em que já não sabíamos o que era verdade e o que era mentira, ou quem era quem. Nós éramos Castor e Pollux ao mesmo tempo.

Foi aí que os sábios nos ensinaram que cada um de nós necessitava de espaço pessoal para construirmos nossas próprias individualidades. Devo dizer que isso foi uma surpresa para mim.

Eu, que fui criada como homem, só me via como o espelho de meu irmão; uma extensão de seu ser. Nesse sentido, eu era um homem. Mas no que passamos a viver individualmente, descobri-me como uma mulher.

Certa vez, ele pediu para que trocássemos de nome permanentemente.

Eu não fui contra. Sendo Pollux, eu não precisaria ser tão bajulada pelo papai. Eu só queria ter o prazer de lutar e derrotar inimigos cada vez mais poderosos com respeito e dignidade. Era o que eu pensava, em minha inocência de infante.

— Não se importa mesmo, minha irmã?
— Até que eu gosto de como soa. Pollux, a coroa. Combina comigo, não é?
— Combina! Combina sim! — afirmou, em êxtase. — Vamos começar! Eu te chamo de Pollux, e você me chama de Castor. Vai ser igual nossas brincadeiras, mas dessa vez vai ser para sempre, hein!

Pollux passou a ser a irmã, e Castor, o irmão. A deusa da guerra e o deus das artes sociais.

Não demorou tanto até que nossos pais e superiores se acostumassem e me reconhecessem como mulher, pois nosso corpo era considerado o epítome do andrógino sagrado.

Ainda assim, tive de aprender a me comportar de forma mais feminina, além de me adequar aos padrões de gênero carmentinos que eu considerava insignificantes e sem sentido.

Embora eu não me importasse em performar feminilidade por aparências e tenha continuado a guerrear na terra e no ar, a clara diferenciação frustrava Castor mais e mais.

Trocando nossos nomes, ele acreditava que algo mudaria, mas as luzes da preciosidade se direcionavam só a mim. E a ele, críticas e condenações por falhar em me acompanhar.

Ele tomava meus prêmios às escondidas, e quando me presenteavam com medalhas, me obrigava a entregá-las. “Eu sou o original! Eu vim primeiro! Sou eu quem merece isso!”, gritava, e eu acatava.

Tudo bem. Tudo bem, de verdade. No princípio, fui protegida da dor torturante. Eu o devia minha vida por isso, e por todas as coisas que fez por mim.

É só que eu não entendia o porquê de ele prezar tanto por algo que para mim era inútil. Até que prestei mais atenção. Eu não esperava por amor, mas ele, sim, e nosso pai nunca nos amou.

O apreço por nós era condicionado ao quão bem preenchíamos os requisitos de um herói ideal. Não passávamos de experimentações que seriam abandonadas caso não atingissem o rendimento esperado.

Éramos facilmente substituíveis.

O meu brilhantismo era estimado pela coroa de Carmenta e pelos sacerdotes que me tinham como o futuro Messias. Eu, Pollux, era o campeão. Foi o único motivo pelo qual não fomos descartados.

Perguntei se não preferia que fizéssemos o mesmo que quando éramos crianças, mas ele insistiu em lutar sozinho. Deu de tudo de si para se tornar um espadachim que orgulhasse o rei dos deuses, e fracassou.

Ele era fraco demais, o menor de nós dois. Minha mão, sempre mais precisa e sutil, o ofuscava.

Nos castigos, ordenavam para que eu me abstivesse e fechasse as cortinas. Eu desobedecia. Ele não era um peso, nem um obstáculo. As coisas horríveis que o diziam, também diriam a mim.

A violência que ele sofreu, eu sofreria em igual intensidade. Afinal, éramos gêmeos, e era essa a nossa promessa. Eu nunca a descumpri, mesmo nas piores e mais assustadoras das contrições.

ᛜᛜᛜ

O papai tinha um ateliê secreto, um lugar trancado à sete chaves onde depositava todas as lembranças de Agartha.

Castor virava as madrugadas lá, lendo, apreciando os diários manuscritos de viagens, livros sobre alquimia milenar, diagramas confusos e imagens realistas demais para serem pinturas.

— O que são essas figuras, meu irmão? — perguntei.
— São fotografias. Como em um truque de luz, é possível capturar um momento específico da realidade e transformá-lo em uma memória eterna.
Memória eterna?
— Veja. É um parque de diversões. É o meu favorito. Ele é brilhante, e incrível. É deslumbrante — dizia, vidrado na foto da roda-gigante.

Ele descrevia nos mínimos detalhes como eram os cemitérios, catedrais, teatros, hospitais e museus. Arranha-céus, meios de transporte e construtos subterrâneos. Comparado a tudo o que havia em Agartha, Carmenta era como um grão de sal no oceano.

— Sabe, eu queria ir embora.
— Para onde?
— Para lá. Agartha. Eu quero voar e ir embora para um lugar distante. Eu sei que tem algo maravilhoso esperando por mim, e eu quero isso para mim. É o meu prêmio, meu mundo! Mas... ainda não dá, porque você existe, e o papai também. Para onde quer que eu vá, vocês estão lá. Enquanto vocês existirem, eu nunca voarei livre.

Que sentimento era esse dentro de mim...? Os olhos tremulantes eram os meus, ou os dele?

— Você será o cálice preenchido por Messias, meu irmão — disse-o. — Alcançando os milagres, será uno. Assim você realizará o seu desejo, e se libertará do que te restringe.
— Você quer desaparecer?
— Por mim, tudo bem. Se for pela sua felicidade, eu não me importo de me doar por inteira. Apenas não se esqueça de que existi.
— Pollux, o que tem mais valor para você, um cálice de água ou vinho?
— Água, ou vinho...? Água.
— Por quê? O papai sempre diz que um cálice de vinho sai bem mais caro quando visitamos os restaurantes da cidade.
— Eu odeio vinho. Prefiro beber água.

Após um silêncio, ele caiu na risada.

— O que houve?
— Eu te odeio, Pollux.
— Huh?
— Temos o mesmo corpo, mas você é tudo o que eu não posso ser. É por isso que o papai te ama mais. — Ele fechava o álbum, colocando-o numa caixa. — Isso é injusto. Por que você tem que existir?
— Já ouvi os sacerdotes dizendo que eu nasci porque você experienciou um trauma mais pesado do que suportaria sozinho, e que a minha função é te proteger disso.
— Um trauma? ... Eu não lembro de experienciar nenhum trauma. Não sei do que você está falando.
— E quanto às nossas asas?
— Você já existia desde antes disso, sua bobona.
— Como era, antes disso, irmão?
— Eu não sei. Não lembro. Mas isso não importa! Eu só quero saber dos sentimentos de agora, e do futuro! Aaahh, quem dirá quando eu partirei para o outro lado do céu, e nunca mais verei você e o papai. Vou “trabalhar”, e até “entrar de férias”. Haha. Não parece divertido?
— Eu sentiria sua falta.
— Você não iria existir para sentir a minha falta.
— ... É, é verdade.
— Diga, Pollux. Você me dará a vitória. Me levará até lá, não é?
— Sim.

Um desejo impossível.

Castor se cegou com uma luz inalcançável. Ele não tinha o poder para chegar ao topo, diferentemente de mim. Mesmo que eu o carregasse até os portões, nossos papéis estabelecidos acabariam sendo invertidos.

Por eu ser Padomektah, ele quedaria como Koshmayah e seria sacrificado.

Foi durante uma viagem perigosa até a cidade de Fortuna que nossos pais padeceram pelo Declínio. O pesar me abateu, apesar de eles serem como eram, mas meu irmão... colapsou. Eu não fazia a menor ideia de como consolá-lo.

Sua dor não era por perder o pai e a mãe, mas porque ele nunca pôde ser precioso e especial o suficiente para nosso pai enquanto ele ainda vivia. A pessoa que o instigava à cólera de ser maior se foi. Toda a pressão que o esmagava se esvaiu como areia.

De pouco em pouco, eu notei sua mudança.

Não tendo encontrado o amor como um ser humano, ele passou a caçá-lo, revestido de algo superior e magnânimo que bebia dos lábios que manassem vulnerabilidades.

Seu amor, o mesmo de nosso pai, era traiçoeiro. Não era um afeto companheiro, muito menos o beijo de um amante. Era como o amor a um alimento. O mesmo amor do nosso pai.

Assim como o rei dos deuses caçou esposas, consortes homens e mulheres, dos mais velhos aos mais jovens, para se alimentar e se embebedar, seu filho o fez com suas muitas presas.

Por trás de sua cordialidade, ele se aproveitava das fraquezas dos adversários para sobrepujá-los e se sentir poderoso. Sob o pretexto de ser algo acidental, assassinou seis dos nossos aliados durante a etapa final de treinamento.

Ele fez a eles coisas que eu... odiava.

Eu não era a original. Eu vim depois, como um espírito intruso, então eu não tinha o direito de querer nada. Eu nasci dele, como Eva de Adão. Esse corpo, essa carne e esses ossos não eram plenamente meus.

Cordas invisíveis amarradas em meus braços mimicavam os movimentos da minha réplica. Fossem desagradáveis ou repugnantes, quisesse eu ou não, tudo o que eu podia fazer era conformar-me.

Em uma das versões da lenda de Kush’padme, os gêmeos eram considerados monstruosidades, aberrações resguardadas na corte de um rei. E para fazê-los um único humano, digno da genialidade característica, foram divididos ao custo da vida de um.

Mas, ao término da história, o que restou encontrou o mesmo fim.

Isso caracterizava o duplo lendário; a ruína absoluta da alma. A incapacidade de existir individualmente. Mesmo pensar em quebrar essa regra é um pecado, uma herança das Mãos do Mundo. Portanto, não se separa o que deveria estar junto.

Nossas vidas eram dois vinhos diferentes preenchendo um único cálice. Duas almas incompletas. Desde o princípio, o nosso passado, presente e futuro como humanos nunca existiu. Nós tivemos tudo, ao mesmo tempo que não tivemos nada.

E, por sermos gêmeos, estou certa de que vimos o mesmo em Hector de Vertumnus. Um brilho que o diferenciava de nós e o impedia de ser derrotado. Ele era nosso fim eminente, e, mais até do que o poder do Messias, desejado por Castor.

Ele queria ter seu vazio preenchido por Ícaro. Ter ele não como um inimigo ou rival, mas como o único objeto que saciaria sua incontrolável fome e sede pelo sagrado.

— Sagrado? Para que serve o sagrado, minha querida irmã? — Uma taça caiu da mesa, despejando vinho no piso incolor. — Apenas para usarmos como um meio para ganhar os olhares de gente sem teto. Só alguém tão superficial e patético quando o velhote defunto daria importância para isso.
— Você abriu as cortinas sem o meu consentimento.
— Está equivocada sobre mim, como sempre. Minha fome e sede não é pelo sagrado. Não, não. É por algo muito melhor do que isso.

O vinho transbordava, inundando aquele mundo pequeno até a altura de nossas canelas, e joelhos. Não demorou muito, e nossas calças brancas eram completamente manchadas de vermelho.

— Quando estive face a face com Hector de Vertumnus, uma fornalha ardeu dentro de mim. Todo o meu desespero cedeu à excitação carnal. Nunca antes me senti tão vivo! Eu vou subjugá-lo. Arrancarei o coração dele e o rasgarei em pedaços, para depois consumi-lo. Eu beberei tudo o que existe nele, e tudo o que é dele será meu, inclusive o Filho de Trismegistus.
— Eu não consigo ouvir o canto dos pássaros.
— Diga, Pollux. Você me dará a vitória. Me levará até lá, não é?
— Sim.

Se é por você, eu não hesitarei mais.

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