Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 28: A Conjunção

Ao anoitecer, a febre de Hector diminuiu, permitindo que ele dormisse sossegado. Theseus e Kosmo nos trouxeram comida, mas eu não tinha apetite. Belisquei uma coisinha ou outra, e guardei o restante.

Mais tarde, os dois se cobriram com mantos e cochilaram um no ombro do outro, enquanto eu e a senhorita Circe ficamos de dormir em cantos separados do quarto, sentados com as costas para a parede.

Apitos do monitor cardíaco. Coaxos, e som de água corrente.

Eu estava pregando. Os últimos dois dias me drenaram por completo. A despeito disso, minha cabeça não parava de pensar, e com esse corpo tenso e dolorido, eu não tinha como relaxar.

Sempre que prestes a cair no sono, a visão de Hector ensanguentado, ou gritando de dor na cama, me despertava. Eu suava frio e meu coração acelerava, quase por sair pela boca.

Se me lembro bem, no dia da excursão ao Museu, foi por um sentimento igual a esse que fui procurar por Tsubasa.

Eu continuei correndo até o reencontrar sob a estátua do anjo. O anjo cujas asas cavavam para fora das costas, como se fossem duas árvores se esticando para arranhar o céu.

"Teru! Minha nossa, você está suando. O que aconteceu?"

Nada de mais. Eu só senti sua falta e queria te ver.

"Você veio até aqui por mim?"

Eu não sei. Talvez fosse porque eu tinha medo de te perder, como perdi o vovô.

Durante as aulas de educação física, você ficava distante para não perceberem as marcas de pequenos cortes nos seus braços, ombros e atrás do seu pescoço. Quando te perguntei, a sós, você falou para não me preocupar.

Não era nada. Você se lembra?

Um dia, eu abri a porta da sala e avistei sobre nossa carteira um vaso com crisântemos, bem no lado em que você se sentava. Meus olhos se arregalaram. O meu corpo ficou pesado, e a maleta caiu da minha mão.

Todos me fitaram, silentes. Bem devagar, eu me virei, e refiz os meus passos em direção à saída da escola. Minha visão ficava cada vez mais turva. Os risos dos alunos ecoavam nos meus ouvidos. Eu não sabia para onde ia.

A cada passo, era como se partes de mim de estivessem se desprendendo e ficando para trás. Meus pés pisavam no chão, mas eu não os sentia. O ar estava fugindo dos meus pulmões. Eu... não conseguia respirar.

Foi aí que te vi chegar.

Com um sorriso doce, você me cumprimentou e perguntou o porquê de eu estar pálido. Só aí me dei conta do que realmente aconteceu. Foi tudo uma brincadeira de mau gosto que nossos colegas iam fazer com você.

Não, eu não chamaria isso de brincadeira de mau gosto, e aquelas pessoas não eram colegas. Eram monstros. O vazio dentro de mim entornou em raiva. Eu engoli o choro, e te contei a primeira mentira que imaginei.

Falei para irmos à lanchonete, porque eu não havia tomado café da manhã. Ah, mas eu precisava passar na sala para buscar a carteira. Eu disse a você que havia a esquecido, mas ela estava no meu bolso esse tempo todo.

Camuflado entre nossos colegas, eu peguei o vaso e o joguei pela janela. Ninguém me viu. Os monitores avisaram que uma pessoa quase foi atingida, mas como as salas não tinham câmeras, eu não fui exposto.

A pessoa a receber a culpa foi quem trouxe o vaso de casa.

De noite, recebi uma ligação da sua mãe. Ela contou que te percebia mais triste e distante a cada dia, e que você não queria mais ir para a escola. Pediu para que eu cuidasse de você, o que quer que acontecesse.

Eu quase revelei tudo, porque fui me dando conta de que ela era inocente para o que se passava. Mas eu não o fiz. Eu temia a reação dela, e a sua. E se ela descobrisse sobre sua sexualidade e as coisas piorassem em casa?

Eu não sei por que me lembrei disso agora.

Todos os dias eu tinha tanto, tanto medo de que, devido ao que acontecia na escola, você fosse embora para um lugar onde eu não podia mais te ver, nem ouvir sua voz. Seria ainda pior se eu não pudesse me despedir.

Eu tinha que ter certeza de que você ainda estava comigo. Eu não suportaria viver em um mundo que não tivesse você. Não iria mais querer saber da minha reputação, ou dos monstros. Eu preferiria morrer junto.

Eu sou egocêntrico, não sou? Sempre foi você, e só você, Tsubasa. Nunca houve ninguém naquela maldita escola em quem eu confiasse de verdade a não ser você. Só você aceitaria tudo em mim, e eu sei disso porque...

Porque, de todas as pessoas, você era o meu único e verdadeiro amigo. A minha alma só estava em paz quando em contato com a sua.

Depois que nos separamos, o mundo pareceu errado para mim. Eu queria ao menos entender o porquê de você ter feito o que fez àquela noite. Se foi vingança por eu desistir de você.

Por favor, ao menos me dê uma explicação. Vamos conversar, nem que seja uma última vez. ... Tsubasa? Está chorando? ... Tem algo errado?

Num sobressalto, fui arrebatado do turvar da minha consciência, e arregalei os olhos. Um barulho estranho me acordou. Era Hector, tomando apoio na parede para deixar o quarto.

Apesar de seu estado, ele conseguiu se uniformizar sozinho. Na mesma hora, larguei o cetro e o segui.

Eu estava sempre um passo atrás. Não me preocupei em disfarçar minha presença ou omitir meus passos, mas ele não me percebia. Seguia mancando, com a respiração ofegante.

Descemos as escadarias que levavam a um sítio remoto entre o depósito subterrâneo e a arena. Mais especificamente, o espaço vago abaixo dos assentos do Coliseu do Anfiteatro.

Era um lugar escuro, tão escuro que eu quase não me enxergava. A única luz vinha de uma pequena abertura em uma cortina distante, remetendo a uma chama de vela.

Hector tombou de bruços, dando um ganido. Algo se remexia por baixo da pele de suas costas. Os músculos se contraíam, e os ossos da escápula e das costelas eram empurrados.

... Não, agora não. Se ele as abrisse agora, sua recuperação demoraria mais. Não delonguei em reagir. Fui até lá e o contive, agarrando-o por trás, mas ele resistia e tentava me afastar.

— Hector! Pare! Deixe-as guardadas!
— Ugh--!
— Você me prometeu que só faríamos isso juntos! A-Ah!!

O violento abrir de suas asas me empurrou, e eu caí em meio aos respingos de sangue e plumas.

Elas estavam fortes, com um aspecto renovado. O desobstrutor alquímico desinibiu a eficácia da fórmula da segunda geração e as curou. Dei um tropeço, mas tornei a abraçá-lo com força.

— Afaste-se! Me deixe sozinho! — ele gritava.
— Não, eu não vou! Você não precisa lutar, não agora!!
— Se eu não continuar até o fim, eu nunca... eu nunca vou--...!
— Por favor, Hector! Eu não quero perder você também...!!!

Não contive mais as lágrimas.

Havia mais alguém a quem eu temia perder. Ele nobre, valente, e abdicou de tudo para ser o herói ideal do seu povo. Sua teimosia me tirava do sério. Mas ele também tinha um coração sensível, cheio de remendos.

A cada duelo por ele enfrentado, o meu temor só crescia. Tudo o que eu queria era que ele pudesse ser livre disso, mas eu não conseguia mudar nada. Eu não tinha mais onde esconder esse sentimento, e o deixei extravasar para fora de mim.

Vendo isso, Hector fez força para se controlar. Ele se virou na minha direção e me aconchegou com seus braços e asas, como se eu fosse um filhote de passarinho. Por alguma razão, isso me fez chorar ainda mais.

Talvez porque eu nunca esperei um afeto desse tipo. Era eu quem costumava oferecê-lo.

— Não faça isso. Não derrame lágrimas por minha causa — disse-me. — Terumichi, eu estou além do que pode ser salvo. Não há como escapar dessa batalha. Eu nasci sob o destino de ser vazio. ... Você precisa desistir de mim, porque senão-...
— É impossível. É impossível ser vazio. — o cortei, secando o rosto com o manguito. — Se sentir feliz, triste, ou com medo. Amar alguém, e ser amado por alguém. Mesmo se você negar que essas emoções existem, você não será vazio!

Eu conhecia bem a sensação de não ser ninguém além do "Menino de Ouro". De ser uma farsa. Um impostor. E eu sei o quão difícil é arrancar nossas máscaras, mas você não está mais sozinho.

Eu não vou te deixar sozinho, Hector.

— Se eu não sou vazio, quem eu sou?
— Você é Hector. Apenas Hector.
— Hector? Mas...
— Se você só pode lutar, eu vou lutar ao seu lado. Nós enfrentaremos esse destino mais tarde. — Pus-me de pé, segurando sua mão o ajudando a fazer o mesmo. — Por agora, você só tem que descansar.
— E quanto aos dióscuros? — perguntou.
— Eu tenho um assunto pendente com eles.
— N-Não! Não se aproxime deles! Aqueles dois são perigosos. Você não sabe do que eles são capazes!
— Eles não me farão mal. O senhor Castor precisa de mim vivo, até te vencer. Além disso, ele me deve explicações.

Segundo a lei da Corte dos Heróis, o Anfiteatro entra em ressonância com a alma dos desafiantes, criando um espetáculo visual a partir do conteúdo que os preenche. Mas o quarto combate se passava em um lugar que não existia em Arcadia.

No dia da confraternização, quando os mostrei fotografias, nenhuma delas retratava um parque de diversões. Se o senhor Castor tinha conhecimentos prévios da Terra, ele só podia ter aprendido com alguém que veio de lá.

Foi quando senti algo pressionar meu pulso.

— Não vá.

Por uma fração de segundo, tive a impressão de estar em um tempo diferente. Em uma memória efêmera, que se desfez na figura de Hector.

— Fica comigo. Não me abandona.
— E pensar que você me disse para desistir de você, ainda agorinha.
— I-Isso já é decisão sua.
— Bobão. Desistir de você? Não diga um negócio desses, nem brincando. Eu fico até ofendido.
— Você não vai, né?
— É claro que não — disse, acariciando sua bochecha. — Nunca na minha vida. Como eu poderia? Agora vamos voltar para o quarto. O meu herói alado precisa de repouso, comida, e muita água. Se ele não se recuperar, como vão ficar esses lindos músculos?

Suas asas bloquearam minha passagem, e fui puxado de volta para perto dele. Estávamos muito próximos um do outro. As plumas de bronze pareciam aninhar-nos, e nossos olhares não se desvencilhavam.

Ele era muito tímido para isso, então tomei a iniciativa em aproximar meu rosto do dele. Teríamos consumado um beijo, se ele não tivesse esquivado no último momento.

— Eu vi você com Theseus de Salacia, no hammam — confessou, pegando-me desprevenido. — Eu não ligo. Ele te faz bem. Além disso, você e eu só estamos comprometidos pela Corte, e isso te dá a liberdade para fazer o que quiser, com quem quiser. Mas o beijo que quero te dar não é um beijo de duelo. Se você sente isso por ele e não por mim, então... não se force. Eu ia me odiar por isso.
— Ei, está admitindo que sente algo por mim?
— Não. Sim. Quero dizer, você entendeu. Não era óbvio?
— Eu entendi. Está tudo bem. — Dando uma risadinha, enlacei seus dedos nos meus. — É recíproco. Eu também sinto por você.
— Verdade?
— Verdade verdadeira. Eu amo você, Hector.
— ... E-Eu também. Eu também te amo, Terumichi.
— Então considere esse beijo um dos seus presentes de aniversário super-mega atrasados! Mas haverá outros!
— Hã?! Aquele maldito do Kosmo! — enrubesceu. — Ele não fecha o bico!
— Tarde demais! Tá vendo só? Eu também guardo surpresinhas na manga!
— No dia da confraternização, você já me deu um presente.
— Eu dei?
— Sim.

A claridade vinda da fresta das cortinas abrandou. Com a câmara já não tão escura quanto antes, a cor da pele, dos lábios e a dos olhos cristalinos de Hector se tornaram vívidas.

Eu queria que ele me chamasse pelo meu primeiro nome mais vezes, muitas mais. E também que, enquanto estivéssemos lado a lado, esse pudesse ser um porto seguro para nós dois.

De repente, a luz tomou tonalidade vermelha, reduzindo-nos a silhuetas sombrias. Não mais parecíamos estar ali, ao menos não em carne e osso.

Escutei as vozes daquelas duas máscaras gregas — Tragédia e Comédia — que sempre tratavam de me preparar uma história diferente a cada dia. Tão sarcásticas, deram início a um show.

— Abram alas! Eu, o grande herói, derrotei o senhor das trevas e resgatei a princesa! — exclamava Tragédia, alteando uma espada. — Ufa, isso foi cansativo pra caramba. Mas tenho certeza que valeu a pena, pois agora terei o esplêndido, incomparável “Beijo Prometido”!
— Ai, ai. Já estava demorando, hein — disse Comédia, nos trajes de uma princesa libertina, se espreguiçando em sua cama sedutoramente. — E aí, você trouxe os preservativos?

A plateia arfou, chocada.

— Quê?! Está louca, minha princesa? O Beijo Prometido é algo puro! É puro, okay? Não é como essas... essas... imundícies...!!
— Acho que você está confundindo as coisas. O seu irmão gêmeo era mais perspicaz. E minha nossa, não me diga que vocês são menores de idade!
— Quem foi que te disse isso? Eu recém fiz dezoito anos, ok? Eu sou legalmente um adulto, um a-dul-to! E pera lá, como é que você sabe do meu irmão gêmeo?!
— Detalhes. Só vem pra cima, gatão. Miaaaau!
— Não posso acreditar. Todo o meu esforço em me tornar um guerreiro da justiça e derrotar as forças do mal, para conquistar uma princesa-sapo! — Dando uma conferida no roteiro, se corrigiu. — Digo, uma princesa-rã! Arrgh, tá, tá! Eu já entendi! Eu vou à farmácia comprar os preservativos. Me espere aqui!

Ele tomou um saco de ouro que caiu do senhor das trevas e deu no pé, sem se dar conta do que realmente era a princesa: o troféu de primeiro colocado de uma competição escolar.

... Até onde me lembro, troféus não falam, então com quem ele esteve conversando esse tempo todo? Com uma visagem? Um espírito obsessor?! Oh, céus, a quem pertencia aquela voz?!

— Passion. Sexy. Yaba-daba-doo.

Boatos que o herói nunca mais voltou. O porquê, ninguém sabe.

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✤ Museu dos Mistérios da Natureza ✤
Musaeum Mysterium Naturae

Saudações. Faz um tempo desde sua última visita ao Museu dos Mistérios da Natureza. Bem, considerando os recentes acontecimentos, eu não diria ser culpa sua. Está cansado? Se for do seu agrado, eu posso servi-lo chá. Sente-se, e sinta-se à vontade.

Hoje apresentarei as armas consagradas dos desafiantes da Corte dos Heróis. Você já deve ter conhecido a maioria, mas cada uma delas tem um nome e uma funcionalidade particular, então talvez os dados que coletei despertem o seu interesse.

A espada do comprometido, "Cálice", se assemelha a uma rapieira ou sabre. É exímia tanto para perfuração quanto para corte, e o fato de ser leve favorece a agilidade de seu usuário. O copo fornece proteção para a mão que a segura. Embora frágil e sem muitas qualidades defensivas, é versátil e difícil de prever.

A clava do gêmeo mais novo de Hector de Vertumnus, por sua vez, é mais pesada, exigindo um domínio e força física maior por parte de quem empunha. "Urano" é uma ferramenta sacerdotal, e seu potencial destrutivo é proporcional à dificuldade de manuseá-la. Uma pancada dela pode ser tão perigosa quanto o corte de uma lâmina.

O representante de Salacia traz um gládio, "Orfeu", e um escudo redondo, "Eurídice". Enquanto básicos, dentro dos padrões, eles concedem um equilíbrio entre ataque e defesa, tornando o usuário incrivelmente resistente. O escudo também pode servir como arma de impacto, possuindo quatro protuberâncias contundentes.

Já o punhal da bruxa de Apollodorus recebe o nome de "Odyssea" em referência ao gênero botânico do mesmo nome. Possui um dispositivo para alongar a lâmina, o transformando em um espadim veloz e preciso. Essa característica única pode ser aproveitada em benefício da imprevisibilidade do portador.

Os herdeiros da coroa de Carmenta carregam um par de cimitarras gêmeas, onde, em circunstâncias ideais, o mais velho controlaria uma, e a mais nova a outra. A curvatura das lâminas faz dos cortes ágeis e profundos. Foram batizadas de "Andros" e "Gynous", simbolizando o princípio feminino e masculino.

No que diz respeito ao aio da família real, ele era o possuidor da arma mais inusitada dentre as apresentadas: um largo chakram chamado "Baco", com três pontas de dois gumes em sua lâmina. Além de ser um estrumento de retalhadura, seu porte ressaltava o estilo de batalha coreográfico de Ganymede.

A espada longa de duas mãos pertencente ao príncipe de Angerona é dotada de um peso maior, tornando-a mais lenta caso o usuário não seja forte e experiente o suficiente para manejá-la. Em contrapartida, seus ataques são poderosos e avassaladores, capazes até de quebrar ou atravessar as armaduras adversárias. Seu nome é "Mitéra".

Patroclus de Angerona detinha a posse de "Pátera", uma berdiche. Esta arma de haste corto-perfurante é voltada para combate de média distância, mantendo o usuário mais seguro contra oponentes de curto alcance. A lâmina pode não só cortar e pungir, como enganchar ou desarmar oponentes, fazendo dela versátil em combate físico.

Oh, parece que nosso tempo está acabando. Justo quando eu ia mostrar alguns exemplares coletados na Torre.

Encerraremos por hoje. Da próxima vez, prometo entretê-lo com algo de seu agrado. Certamente nos veremos de novo. Afinal, você é o Filho de Hermes Trismegistus. É fundamental que eu te forneça toda a tutela necessária.

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