Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 27: O Opus

A respeito do protótipo bioalquímico alado, ou "homúnculo", eu percebi que havia uma série de discrepâncias entre os documentos históricos da atualidade e os anteriores à catástrofe.

No passado, nada associava o abrir e guardar das asas com dor. Pelo contrário, a segunda fórmula alquímica inibia respostas nervosas desagradáveis, e as células-tronco eram estimuladas a repor os nutrientes perdidos.

Era uma via de mão dupla. Uma troca equivalente.

Assim sendo, o novo par de membros vinha acompanhado de ferramentas analgésicas, anestésicas, anti-inflamatórias, anti-hemorrágicas e antianêmicas, ou seja, o necessário para fazer dele útil e funcional. Ora, por que os idealistas criariam algo que os prejudicaria?

No entanto, passada a grande cisão, descreveu-se o processo como doloroso, arriscado e fatal. Além disso, se ferido, o corpo parasitário não se recuperaria por si só, nem mesmo com a atuação da chama sagrada e seus derivados.

Isso causou medo, e corroborou com o reconhecimento da práxis alquímica como uma ameaça a ser combatida.

Uma das punições mais comuns para prisioneiros que cometiam heresias contra as leis do estado era a perfuração das asas por estaca de ouro, que resultava em uma chaga incurável e levava a uma morte lamentável em poucos dias.

Mesmo recolhendo-as, haveria uma série de processos hemorrágicos internos ao redor da cavidade torácica, que não cessariam até a morte do hospedeiro. O único tratamento existente se dava por meio de um desobstrutor alquímico.

— Desobstrutor alquímico? — indaguei. — O que seria isso?
— É uma substância capaz de suprimir a eficácia de fórmulas alquímicas.

Era o broto que ele fez Hector ingerir.

Kosmo veio até meu lado com um papel. Em seguida, começou a desenhar círculos e símbolos matemáticos complexos, explicando:

— Considere que fórmulas alquímicas possuem três gerações. A primeira é oriunda da tutela de Hermes Trismegistus, e serve ao fim de fazer dos corpos arcadianos belos e fortes.
— A segunda os permitiu criarem asas, o dito homúnculo. — Eu acompanhava sua linha de raciocínio, e ele assentia.
— Há um porém. O desobstrutor alquímico só possui eficácia sobre as fórmulas alquímicas da primeira geração.
— S-Só da primeira geração?
— Entende aonde quero chegar?
— Deixa eu ver se entendi. Se o desobstrutor é o que permite as asas de se recuperarem, o que ocasionou a mudança pós-cisão só pode ter sido uma... fórmula. Mais especificamente, a fórmula a primeira geração. É isso?
— Seu gênio é como o de Circe — comentou, com um sorriso —, ambos aprendem muito depressa.

Segundo a tese do avô dela, uma suposta alteração na fórmula teria influenciado no funcionamento do sistema nervoso central, afetando a composição das células-tronco presentes na medula óssea do esterno.

Isso não só invalidou os efeitos compensatórios, mas causou reações adversas nas funções de crescimento e regeneração das asas. Em teoria, essa seria a explicação mais viável para o protótipo bioalquímico ser o que é agora.

— Mas de onde esse desobstrutor surgiu? — questionei. — A existência dele não é muito conveniente?

Sim, e não, disse.

O desobstrutor alquímico era um broto de uma só espécie, do qual nasciam flores amarelas de tipos e formatos sortidos quando plantado. Sua variedade era infindável. Batizaram-no de Chrysós Lapulia.

Não se sabia sua origem exata, mas acreditava-se que ele já existia desde antes da grande cisão. Era um item que o homem comum roubou dos jardins suspensos de Hermes Trismegistus, nos primórdios da derrocada.

Mas havia um segredo. No novo mundo, ele possuía outra função além de resgatar a regeneração das asas e impedir processos hemorrágicos, que era tornar os seus usuários imunes ao Declínio.

De cara, vi-me desacreditado.

Uns se perguntariam o porquê de essa semente não ter sido distribuída, então, para “imunizar” as pessoas. A resposta é que não era tão simples, como testemunhamos minutos antes de virmos para a biblioteca.

— Gh-aahh... Aargh...! Aaaaagh!! — Lembrava-me de Hector grunhindo, se debatendo na cama.

Febre altíssima. Pupilas dilatadas e batimentos acelerados. Ele sentia dores e espasmos em todo canto. Tivemos que improvisar uma contenção, e instalar um dispositivo intra-bucal para que ele não mordesse a própria língua.

Os aparelhos de sinais vitais mostravam coisas horríveis. Autômatos enfermeiros o mantinham em observação e injetavam medicações comuns, mas não adiantava. Nem mesmo o poder do Amaranto tinha efeito sobre ele.

Eu não descrevia isso com outra palavra senão “tortura”. Era como se estivessem matando-o lentamente, por horas e horas. Vendo o quão abalado fiquei, Kosmo me tirou de lá, mas eu não conseguia só apagar o que vi.

Um corpo cujos genes foram selecionados e transformados por alquimia não se mantinha firme sem a primeira fórmula. Logo, o uso do desobstrutor em dose pura traria efeitos colaterais fortíssimos após ingerido.

Era como uma reação autoimune, na qual o organismo começava a rejeitar a si para que a fórmula da segunda geração, que continha os princípios regenerativos embutidos em sua inscrição, voltasse a agir.

Em contrapartida, as altas temperaturas desidratavam o organismo do usuário e causava convulsões febris. No pior dos casos, poderia haver danos no músculo cardíaco ou até um choque neurogênico, levando a óbito.

Hector, no entanto, usava do desobstrutor desde criança. Era o que permitia que suas asas fossem abertas e guardadas de forma mais “segura”, e a frequência com a qual era administrado o fez se adaptar à droga.

Ainda assim, minha preocupação não sanava.

Por esse ser o último recurso para salvá-lo, não sobrava outra escolha a não ser agonizar. Eu não podia nem imaginar o quão traumatizante a experiência deve ter sido para ele, ainda mais quando era só uma criança.

— Tanto quanto você, eu odeio vê-lo assim — disse Kosmo, com um semblante inquieto. — Eu tinha medo de que um dia acabaria o levando a morte ao invés de ajudá-lo. Certa vez, eu briguei com os sacerdotes que o instruíam. Até bati no nomo Rhabeh, que cuidava de nós como se fosse nosso pai. Um dia depois, Hector me deu uma surra por isso.
— Você não fez isso pensando no bem dele?
— Ele é durão, ou tenta ser.
— ...
— Se é que isso irá te deixar mais tranquilo, o Chrysós Lapulia é dado em dosagens mínimas aos campeões de cada cidade desde a infância, entre longos intervalos de tempo. Embora isso fosse mantido em segredo da maioria dos heróis, o intuito era prevenir que contraíssem a maldição do ouro.
— Quer dizer que...
— Eu, ele, Circe, Theseus e os outros temos do desobstrutor alquímico correndo nas nossas veias. Por isso não contraímos a maldição.
— Agora tudo faz sentido. O gosto diferente da comida do Anfiteatro deve vir da presença do Chrysós Lapulia, e eu não devo sentir nada porque... meu corpo não possui uma fórmula alquímica. Mas e quanto a vocês? Vocês não sentem os efeitos, mesmo tomando em doses baixas?
— Isso varia de pessoa para pessoa. Uns não apresentam nada, no máximo febres leves e passageiras. Outros já desenvolvem sequelas mentais e neurológicas, das mais leves às mais graves.

Desequilíbrio emocional extremo, explosões de raiva, estresses crônicos e a sensação de queimar como fogo. Prejuízo na tomada de decisões e rebaixamento das noções de autopreservação. Também foram notados padrões obsessivos e fixações com ideias ilógicas.

Era o que diziam as análises de Circe, cujos dados foram adquiridos a partir de observações comportamentais dos heróis da cidade de Apollodorus ao longo de seis meses. O estado mental dos desafiantes de Corte dos Heróis reafirmava cada detalhe dessa hipótese.

— Nunca se passou pela cabeça da maioria deles que éramos... ratos de laboratório. Mas, há sempre um herói em cada caravana encarregado de continuar administrando a medicação em segredo. Suspeito que Patroclus de Angerona tenha sido um desses. No caso dos carmentinos, não tenho certeza.
— E quanto aos danos que isso causaria a longo prazo?
— Bem, é um risco que temos que tomar. Se não fôssemos tratados, teríamos sucumbido durante a viagem. Tome as caravanas de Angerona, Salacia e Carmenta como exemplo.

Com cuidado, ele retirou do bolso de seu robe um saquinho com cerca de dez ou onze sementes dentro, e pôs sobre a mesa.

— Presumo que em todas essas caravanas, a quantidade foi racionada. A prioridade é sempre o campeão e um herói condicionado a protegê-lo. Quando um não apresenta as qualidades necessárias, a responsabilidade é passada para outro.
— Entendo.
— Você conhece sobre a condição com a qual nosso povo sofre?
— O povo de Vertumnus? Bem pouco. Pelo que Hector me falou, parece que a pele deles queima à luz do Sol, e por isso todos andam cobertos.
— Há cerca de 200 anos, uma família de aristocratas eruditos experimentou um “remédio milagroso” nos cidadãos, prometendo imunizá-los do Declínio em troca de dinheiro. Esse remédio era o Chrysós Lapulia. O motivo de eles serem assim agora é pelo uso excessivo e prolongado da droga.

Portanto, eles não queimavam no sentido literal, mas devido a uma sensibilidade adquirida a raios solares nocivos, e isso era irreversível.

Os bebês, ao nascerem, eram mantidos no subterrâneo por terem corpos mais sensíveis. Ao completarem um mês, eram revestidos de mantos, alimentados com utensílios especiais e lavados nas águas das câmaras escuras.

Já que Vertumnus era uma cidade independente e a mais isolada das oito, era difícil de se imaginar que forasteiros soubessem disso. O povo sempre rejeitou gente de fora, por achar se tratar de fugitivos manchando a terra santa.

Kosmo e Hector não partilhavam dessa herança genética. Eles não eram nativos de lá, tampouco sabiam como chegaram às mãos dos sacerdotes nomos, mas era bem provável que tivessem nascido na cidade mais próxima, Quirinus.

— Interessava aos detentores do Chrysós Lapulia, os aristocratas nômades dos quais falei, que os grãos fossem mantidos longe do conhecimento público. Assim, eles venderiam em troca de quantias absurdas de dinheiro. Obviamente, o que fornecem são sementes já estéreis, impedindo a reprodução. Até certo ponto, isso beneficia nossa igreja.
— Como assim?
— Vertumnus é uma teocracia. O sacerdócio nomo é a organização detentora de tudo o que é produzido, e também do que a população conhece o que não deve conhecer. A principal promessa vendida por eles é a profecia da vinda do Messias, o “escolhido pelo Sol”.
— Então, se uma pessoa sobreviver tanto à maldição da queima quanto ao Declínio... sem outra explicação, ela se tornará um escolhido pelo Sol. A profecia terá sido “realizada”.
— Não acha essa uma forma perversa de se aproveitar da fé das pessoas?
— Em Agartha, há quem faça o mesmo.
— Você acredita em deus, Terumichi?
— Não... Minha família não é religiosa.
— Eu também não.
— Ué! Um futuro sacerdote que não acredita em deus?!
— É perfeitamente possível ser um sacerdote sem acreditar em deus.

O som de uma porta abrindo. Era a senhorita Circe, com uma aparência super cansada, vindo até nós. Ela havia se oferecido para vigiar Hector enquanto eu e Kosmo fôssemos estudar a sós.

— E então? Como ele está?!
— Ele estabilizou — disse-nos.

Dei um longo suspiro de alívio, encostando a testa na mesa.

— Graças a deus...
— Theseus está com ele? — questionou o grisalho.
— Sim — ela respondeu. — Nós revezamos. Ele me pediu para acompanhá-lo.
— Eles têm se aproximado.
— Uma amizade inusitada, eu diria.
— Inusitada até demais.
— Está com ciúmes, Kosmo?
— Não — replicou —, eu não sinto ciúmes.
— Que enamorado indiferente. — Ela deu uma risadinha maliciosa.
— Hunf.
— E o que temos aqui? Sobre o que estão discutindo?
— Sobre sua especialidade. Sua colaboração é bem-vinda.

A atmosfera entre esses dois se tornou mais leve de um tempo para cá. Após apaziguarem, eles voltaram a ser menos inibidos um com o outro. Até brincavam e davam flertes. A relação deles era mais bonita dessa forma.

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À luz de velas, seguíamos com as discussões no nosso recanto pessoal da biblioteca.

A senhorita Circe apontou na outra vez que as leis do Anfiteatro não tratavam o uso da alquimia como um crime, mas acometia os perdedores com a maldição de maneira seletiva e diferente da que se via no Declínio comum.

Levando só as sagradas escrituras em consideração, éramos induzidos a crer no Declínio como a consequência do uso irresponsável da alquimia. Porém, quanto mais conhecimento eu adquiria, mais duvidoso isso se tornava.

Na verdade, isso não tinha lógica nenhuma.

— Eu tenho uma dúvida — lancei, espontaneamente. — Foi algo que me veio de repente, mas pensem comigo. Considerando que o Chrysós Lapulia só afeta a fórmula da primeira geração e concede imunidade ao Declínio, não faria mais sentido que a doença também fosse oriunda da fórmula da primeira geração? Ou, de uma alteração dela?
— Você é sagaz. Essa é uma das principais hipótese do meu trabalho — afirmou Circe. — Mas deixe-me ir mais fundo: se considerarmos que o Declínio é um efeito colateral de uma fórmula, por que ele só teria aparecido após a catástrofe, quando a humanidade não mais tinha acesso à chama sagrada?

A primeira e a segunda fórmula tinham como o principal componente a ser transformado o “corpo”; a conjunção entre a pele, carne, sangue e ossos. Só se obtinha um produto com estas a partir da intercessão da chama sagrada.

Quando Hermes Trismegistus sumiu com ela, o ser humano perdeu seu principal instrumento e a única maneira de praticar a alquimia passou a ser por meio das asas ou dos utensílios alquímicos que sobreviveram ao descarte em mercados ilegais.

Mas a terceira fórmula era autossuficiente. Ela foi a resposta da humanidade à dominação de deus. O combustível para fazê-la funcionar foi o sacrifício equivalente do Filho de Trismegistus, e, o alvo de sua ação e reação, o “mundo”.

Em suma...

— O Declínio deve ter sido programado para ativar a partir de um estímulo específico, um gatilho, como você nos explicou durante a audiência. Tanto a alteração do protótipo bioalquímico quanto a maldição são arbitrários, uma forma de controlar a população através do medo. ... É um castigo. Um castigo divino pela húbris.
— Eu não errei em confiar no seu potencial, Terumichi.

No momento em que o filho pródigo foi lançado ao abismo e condenado em nome do pai, a Correnteza Eterna se apossou de sua existência, assim como da chama do cálice. Ou seja, ela a única capaz de usar da primeira fórmula.

Com os dados que reunimos, também pude chegar às seguintes conclusões:

Usando ou não da alquimia, a maldição da qual os arcadianos tentavam se livrar continuaria se alastrando sem parar. E o que quer que fosse a Correnteza Eterna, era a responsável por “criar” o Declínio e reforçar as crenças errôneas da população.

— Embora as provas sejam superficiais — afirmou a senhorita Circe —, pode ser que a Correnteza Eterna não se trate de uma entidade espiritual, mas um conjunto de pessoas que impuseram a narrativa de redenção para punir a desobediência a Hermes Trismegistus. Você ouviu sobre a sociedade que supomos ter vivido no Anfiteatro no passado, não?
— Ir tão longe a ponto de ceifar a vida animal, vegetal e a das pessoas. Isso é terrível. Kosmo, estariam os tais aristocratas eruditos dos quais falamos envolvidos nisso?
— É possível, sim.
— Direta ou indiretamente, a existência desse sistema alimenta o fundamentalismo presente na fé dos Ministérios de Arcadia. Abandonai aos meios pecaminosos e reconhecei a Hermes Trismegistus, seu filho, e à autoridade da Correnteza Eterna. Este é um bordão famoso.
— Mas nem todos eles sabem sobre o “único desejo”, né? Apenas os de Carmenta e Vertumnus.
— Errado — respondeu Kosmo, de súbito. — Embora Carmenta tenha crenças semelhantes, a existência de um único desejo era um conceito exclusivo à associação que detinha a versão original do pergaminho do abutre. Ou seja, o Ministério das Profecias de Vertumnus.
— Então era mais uma mentira do senhor Castor!
— O traste descobriu sobre o conteúdo do pergaminho após lê-lo, e criou um cenário fictício onde ele e a irmã viveram o mesmo que nós. Seu objetivo era ganhar a credibilidade de Circe e colocá-la contra nós. Foi aí que eu e Hector o pegamos na mentira.

O Ministério das Profecias de Vertumnus agia em favor da Correnteza Eterna como um peão oportuno.

Suas ambições alteraram a trajetória da fé das outras cidades ao longo de quase três séculos, o que caracterizava uma conspiração em prol de interesses próprios. Mas, o fato é que havia um poder maior por trás disso.

Kosmo aprendeu os meios do sacerdócio nomo durante a iniciação como acólito. Ele teve acesso aos apócrifos e ao pergaminho original, ambos inclusos no índice dos livros proibidos, o que evidencia suas regalias.

Para mim, era improvável que alguém como ele precisaria roubar para trazer algo ao Anfiteatro.

Passamos alguns instantes em silêncio, paginando folhas aleatórias, até que comecei a coçar os olhos.

— Pessoal, eu vou dar uma parada por hoje — bocejei. — Preciso de um tempo para processar isso tudo, e pensar com calma.
— Sem problemas. Você finalizou a leitura do pergaminho do abutre?
— Sim, mas... digamos que eu perdi o fio da meada. O conteúdo dele é mais confuso do que eu imaginava, mas eu tentarei de novo. — Cocei a nuca. — Ei, obrigado, mais uma vez, Kosmo. Você dispôs tanto do seu tempo pra mim. Obrigado por tudo.
— I-Isso é o que está no meu alcance. Me procure se tiver dúvidas.

Os olhos afiados da senhorita Circe observavam a cada movimento nosso.

— Falando nisso — ela colocou —, enquanto eu lia o pergaminho, um detalhe me chamou a atenção: o vencedor da Corte dos Heróis é associado com o símbolo de Kush’padme, as Crianças-Dragão. O vazio e o preenchido. Poderia me dizer mais sobre isso, Kosmo?
— O que planeja fazer com as informações, caso eu diga?
— Vou julgá-las a partir do meu compasso moral.
— Poupe-se. Se está tão curiosa, bote sua cabeça para pensar — disse, deixando exposto o tom passivo-agressivo em suas palavras.

Foi uma mudança brusca no clima. Ele estava tão relaxado, até agora. Me prontifiquei para cortar a intriga, até que a senhorita Circe supôs:

— Isso, também, é para nos “proteger”?
— Pode ser que sim.
— Uma forma de amor estranha, essa sua. Foi você quem trouxe o pergaminho para usá-lo como arma contra os outros desafiantes.
— Senhorita Circe... Não é--...
— Deixe-a, Terumichi. Ela está certa.

Engoli em seco.

— Eu pretendia atestar a verdade na frente de todos — seguiu —, fazendo com que se sentirem traídos por suas terras e perdessem o propósito como heróis. Isso os induziria a uma derrota desesperada, e haveria uma diminuição da concorrência.
— Isso te colocaria no mesmo nível de Castor de Carmenta!
— E, porque conheci vocês, eu mudei de ideia.
— O que é tão terrível que você não pode falar, nem para mim?
— Se for pelo bem de vocês, eu estou disposto a abandonar a minha confiança em toda e qualquer pessoa. Eu não pedirei por seu perdão, pois não tenho com o que me justificar. Com sua licença.
— Aonde pensa que vai?
— Vou preparar os suplementos do meu irmão. Solicitarei às máquinas que tranquem nossos aposentos quando estivermos fora.
— Deixe o meu como está. Não tenho nada a esconder.
— Como quiser.

Ele espanejou a sobrepeliz, e ausentou-se. 

Tiques dos relógios, e o fluir da água na cascata. Atravessando a ponte que levava ao Arco do Triunfo, zona leste do Anfiteatro da Eterna Sabedoria, eu imitava o ritmo dos passos do grisalho.

— Sei que está me seguindo — disse-me.
— Eu não estou tentando ser furtivo.
— Deu pra perceber.
— A senhorita Circe está sendo cabeça dura. Ela não leva o que você diz em consideração.
— Ela não é obrigada. Circe já teve sua confiança traída por pessoas com quem se importava. O tanto que quer confiar, quer ser confiada. Para ela, se não for assim, é melhor não ter nada.
— É compreensível. ... Tem algo em que eu possa ajudar? Sinto que a minha prioridade é a mesma que a sua, Kosmo. Talvez a gente possa...
— Desista. E não me pressione.
— Está bem, está bem. É por eles, não é? Por ela e Theseus. Você os ama e não quer que eles acabem em risco de jeito nenhum. Entenderei assim.

Ainda de costas para mim, ele deixou suas mãos cerradas se soltarem.

— Você me lembra de como meu irmão costumava ser, quando éramos pequenos. Não há por que suportar martírios comigo. Guarde essa gentileza para ele. Aliás, lembra-se do dia em que tiramos “fotografias” com o seu aparelho?
— Hm? Sim, lembro sim.
— Nesse dia, foi o aniversário dele.
— Não acredito...
— Pois é.
— A gente organizou as datas aproximadas, mas eu não me dei conta disso. Ando tão perdido no tempo.
— É melhor assim. Não gostamos de comemorações. Mas, nesses dezoito anos de vida, eu nunca o vi tão feliz quanto nesse dia. Obrigado por fazê-lo sorrir.
— Kosmo, vocês são gêmeos. O aniversário também foi seu.
— Isso não vem ao caso.
— Parabéns atrasado. — O dei um sorriso, e ele revirou o rosto.
— Agradecido. Fique de olho naqueles três.
— Deixa com o irmãozão Terumichi aqui.

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