Volume I – Arco II
Capítulo 24: O Mercúrio
Os dias até o próximo combate estavam contados.
Mesmo após se reconciliar comigo, Hector continuava trocando as horas de comer e dormir por treinos exaustivos. Sem um repouso decente, sua condição só piorava, mas alertá-lo parecia inútil.
Ele estava no limite. Com ou sem as asas, seu corpo e mente estavam exaustos, e sempre que eu o via praticar contra os dummies, sentia como se fosse quebrar a qualquer momento.
Como se não bastasse, os atritos entre Kosmo e a senhorita Circe pioraram. Embora eu compreendesse ambos os lados, tentar ajudá-los era como pisar em ovos. Uma palavra errada e eu causaria uma confusão.
Sendo confidente e enamorada de Kosmo, Circe jamais esperaria que ele omitisse informações tão importantes. Era inevitável não se perguntar o que mais ele e Hector poderiam estar escondendo do restante de nós.
Por outro lado, o “Messias” conceder um único desejo se mostrou, de fato, uma arma perigosa — uma com a qual o senhor Castor instigou conflitos entre nós, quando todas as suas outras peças saíram de cena.
— Eu pretendia contar assim que me certificasse de que vocês não mergulhariam de cabeça num duelo — explicou o grisalho, durante nossa reunião na biblioteca.
— Eu nunca duelaria só por isso. É mais fácil se você assumir que menosprezou nossa credibilidade.
— Certo. Eu assumo.
Ela riu, sem esconder o nervosismo.
— ... É tão fácil pra você? Eu não te reconheço mais, Kosmo. Antes de chegarmos, prometemos que confiaríamos uns nos outros e não esconderíamos nada. Não era muito mais sensato nos deixar a par da situação, para que juntos pensássemos numa outra rota de ação?
— Eu não me disponho a riscos. Minha prioridade não é apenas proteger meu campeão, mas também você e Theseus da derrota.
— Nos proteger...? Do Hector? Justo agora, nesse estado? Não vê que, no ritmo atual, ele acabará perdendo para os Dióscuros? Você fala como se mais ninguém tivesse chance contra ele.
— E ninguém tem — esclareceu, ríspido.
— Como é?
— Não temos a menor chance contra Hector. Nenhum de nós. Jamais o venceremos.
— O que te dá tanta certeza disso?
A ausência de explicações a deixava ainda mais descrente. Mas eu vi no silêncio uma oportunidade.
— Esperem, Kosmo, senhorita Circe. Há mais uma coisa que preciso contar a vocês, sobre o dia da audiência.
Expus tudo: desde a primeira mentira do senhor Castor até a brecha deixada pela senhorita Pollux. Falei também sobre o duelo contra Ganymede ter sido possivelmente consequência do tratado de trégua, e sobre o “réquiem” para Achilles.
Eu suspeitava que Castor fosse o responsável por dar início a um efeito dominó, tendo como origem o combate de abertura. Nós seríamos os próximos, mas como não buscávamos conflito, ele optou por uma intervenção mais direta.
Nos ver brigando e desconfiando uns dos outros era tudo o que ele desejava, e ele conseguiu. Seu objetivo com a audiência era explorar nossas vulnerabilidades, nos fazer duvidar uns dos outros, até que nossos laços se deteriorassem de vez.
Kosmo permaneceu impassível diante da minha exposição, mas Circe foi afetada.
Pode não ter sido o suficiente para que voltassem a ser como antes, mas ao menos concordamos em ser mais razoáveis a partir de agora. Para mim, foi uma pequena vitória.
Eu era um solucionador de problemas, não era? O mínimo que eu podia fazer era usar essa qualidade para algo útil e arrancar pela raiz o mal plantado sob nossos pés.
A senhorita Circe e eu deixamos a biblioteca para visitar Theseus e levar alguns agrados: os pães recheados com geleia que ele tanto amava. Mesmo sem a presença de Kosmo, fomos recebidos com um baita entusiasmo.
— Hmmm... Pensando bem, eu não acho que o Kosmo queira nos enganar — disse ele, com a boca melada. — Deve ter um motivo pra ele não poder contar certas coisas.
— Seria esse tal motivo algo que comprometeria a vitória do comprometido?
— Se fosse isso e você descobrisse como derrotá-lo, o que você faria, Circe?
Ela se calou.
— Tá vendo só? Talvez ele queira, sim, nos proteger — continuou o menor —, porque se a gente souber, pode acabar desistindo do que acredita, pra apostar na morte. Somos nós ou o irmão dele. Pelo menos pra mim, faz muito mais sentido do que ele estar armando algum plano secreto.
— Somos tão indignos de confiança assim?
— Ei, ei, ei! Não é nada disso! — disse, tomando nossas mãos com cuidado. — Como o Teru falou, se a gente continuar pensando assim, vamos estar fazendo exatamente o que o Castor quer.
— E mesmo que o Kosmo não confie isso a nós agora — continuei —, podemos mostrar a ele que pode confiar, sem precisar “proteger” ninguém. Certo?
— É isso aí!
Era bom poder contar com Theseus, apesar de tudo o que ele vinha enfrentando. A Corte dos Heróis, os desentendimentos entre os que ele mais amava... e ainda a perda de seu amigo Pirithous.
Eu me surpreendia com o quanto ele conseguia ser caloroso mesmo assim.
— É melhor eu ir. — Circe se levantou enquanto papeávamos.
— Mas já?
— Vou estudar a versão original do pergaminho do abutre. Kosmo o entregou pra lermos. Você será o próximo, Terumichi.
— Eu?! Por que não o Theseus?
— Não, não, não! Pode ir primeiro, Teru! Eu não gosto muito desse tipo de leitura. Minha cabecinha de vento dói. Hehehe.
— Ah, então tudo bem. Eu leio, eu acho.
Não é que eu não quisesse lê-lo. Eu queria entender mais sobre o sistema regido pelo título de Messias. Eu só temia descobrir mais coisas desagradáveis sobre o medalhão — e sobre mim.
Assim que ela se foi, comecei a embrulhar os pratinhos e me preparar para ir também. Disse a ele que precisava tomar banho e me livrar da sujeira das rãs.
— Posso ir com você, Teru?
— T-Tomar banho?! Sério mesmo? — Na hora, enrubesci. Mas eu realmente não tinha vergonha nenhuma. Ele podia muito bem estar se oferecendo para me ajudar com a limpeza.
— Uhum. Não quero ficar sozinho.
— Se não tiver problema pra você!
Aproveitar o hammam na companhia de alguém podia fazer bem a ele. Sempre encontrávamos assunto, e se o tempo não nos limitasse, nunca pararíamos. Mas, por ser a minha primeira vez com alguém além de Hector, fiquei constrangido.
O esporte que eu menos gostava na escola era natação. Eu não tinha sardas só no rosto, mas também no peito, ombros, costas... e até no bumbum. Quando eu era pequeno, me chamavam de esquisito e nojento.
Diziam que eu tinha a pele porosa, igual à de um sapo, e que era um “nerd com espinhas”. Usar óculos desde sempre também não ajudava. Eu me achava feio por não ter uma pele clara e limpa como a dos outros.
... Nah, como eu era bobo. O Thes nunca me julgaria. E não era como se já não fôssemos íntimos. Eu não tinha nada a esconder dele. Criei coragem para tirar a camisa — e, ao levantar o olhar, tive uma grande surpresa.
Ele não tinha só músculos. Havia cicatrizes por todo o seu corpo. Duas em especial, na parte inferior do peito, chamaram minha atenção. Eram diferentes das outras.
— É desagradável de se ver? — perguntou, escondendo o rosto.
— Não. De jeito nenhum, Thes.
Trocamos sorrisos e partimos para a banheira.
Essas duas cicatrizes de Theseus eram similares às de uma cirurgia de mastectomia. Mais especificamente, aquela realizada por pessoas transgênero — na maioria, homens trans — como parte do processo de reafirmação de gênero.
Elas eram adornadas com arabescos de louros dourados, como se fossem medalhas tatuadas, denotando o quanto eram valiosas.
Minha escola, a Academia Kinran, era destinada à elite tradicional e voltada ao aprimoramento das potencialidades de jovens prodígios japoneses. Por isso, a competitividade e a hierarquia eram valorizadas ao extremo.
Curioso como eu era, lia os termos do contrato antes de assinarem, e um deles me chamou a atenção: não eram aceitos alunos com indícios de transtornos mentais ou deficiências, entre eles, o “transtorno de identidade de gênero”.
Em outras palavras, pessoas no espectro transgênero, inclusive as x-gênero, eram proibidas de ingressar. E, se entrassem, não poderiam se apresentar da maneira que preferissem.
Quando perguntei ao vovô o que achava disso, ele disse que era um absurdo. Ser trans não era um transtorno mental. O gênero e suas expressões são vividos de forma única por cada pessoa, e isso também varia conforme a cultura.
Foi o que ele me disse.
Mas, no Japão, como em outros países, essas pessoas precisavam enfrentar a exclusão e uma série de perrengues apenas por serem quem são. Na maioria das vezes, viviam invisíveis, com direitos limitados. ... Será que em Arcadia era parecido?
— Mercuria — disse-me. — É como chamam as pessoas que transicionam entre homem e mulher em Arcadia. Mas nem todas as cidades têm conhecimento sobre isso. Eu tive sorte de nascer em Salacia, onde isso é até que... comum? O meu tratamento, na verdade, foi o menor dos meus problemas.
— Como assim?
— Eu não sou tão masculino quanto os outros heróis, né? Gosto de bichinhos, comidas doces, e detesto brigas. Sou coração mole, grudento, dramático, meloso. Meus superiores já disseram que eu falo como uma menininha chorona.
— Ser mais sensível não quer dizer nada, Thes. Por que isso te faria menos homem?
— ... Oh. Tem razão.
— A cultura de vocês é estrita quanto a isso, pelo visto.
— A figura do homem ideal e da mulher ideal são muito valorizadas. Andros e Gynous. Nós podemos nos tornar o que quisermos, mas, se não seguirmos o modelo perfeito, nos tratam como se não fôssemos o bastante.
— Sabe... eu acho que em Agartha as coisas são parecidas. Eu também não era considerado o homem mais masculino de todos. Talvez eu tentasse compensar essa tal “falta” sendo o estudante perfeito — disse —, porque eu achava que não tinha mais nada de bom. Morria de medo de não me aceitarem.
— Eu entendo! É isso mesmo! É assim que eu me sinto!
— No outro dia, você disse que o que importava era ser eu mesmo. E eu gosto de você como você é. Não tem nada faltando.
— Acha isso mesmo? Não está falando isso só pra eu me sentir melhor?
— N-Não, não! Quer dizer... é claro que eu quero que você se sinta melhor, mas eu...
Logo em seguida, Theseus deitou a cabeça em meu ombro, e meu coração deu um salto.
Os cabelos dele eram cheios de ondinhas. Tão macios e cheirosos que, quando eu encostava as bochechas, sentia que ia derreter. Dei a ele uma posição melhor para se aconchegar, até que nossos dedos se tocaram.
O canal de água no teto se abriu, e do tanque translúcido desceu uma cascata de água morna, liberando vapor por todos os lados. Pétalas de rosas desidratadas boiavam até nosso reflexo — no qual vi a mim mesmo o beijando.
Foi rápido e muito repentino, mas as bochechas dele ficaram todas vermelhas.
— Desculpe. Não pedi seu consentimento, pedi? — indaguei
— Não tem problema! Eu só podia imaginar como era ter um beijo seu.
— Mesmo?
Em pouco tempo, ele me segurou contra a borda de cerâmica, me dando vários beijinhos no rosto e no peito. Eu não resisti e comecei a rir.
— Hahaha! Thes, isso faz cócegas! Haha!
— É que você é maravilhoso! Dá vontade de beijar cada marquinha sua! — E me deu mais e mais deles. — E você sente cosquinha muito fácil. É engraçado ver sua reação.
— Acho que sou um pouco sensível — comentei, ainda risonho.
— Eu prometo ser gentil. Hehe...
— E-Ei, você...
— Teru. — Ele parou, de repente.
— Sim?
— Você não quer ser o Filho de Trismegistus, não é?
Vá, diga a verdade, Terumichi. Não precisa maquiar.
— Eu não quero. Eu sinto saudades de casa. Sinto saudades da minha família.
— Você reprime isso quando está conosco.
— Não interprete mal. Eu amo vocês. E eu não quero deixá-los, mesmo sentindo falta da Terra, então... não precisa se preocupar demais. Eu não quero ser mais um problema pra vocês lidarem.
Na mesma hora, minha voz sumiu.
Esse era um medo antigo. Já que meus pais tinham tanto para resolver, eu temia sobrecarregá-los. Dava o máximo de mim para ser um filho independente e responsável e empurrava minhas carências para debaixo do tapete.
— Se há um problema, eu não acho que seja você — disse, surpreendendo-me. — Teru, é você quem está se esforçando tanto para manter a gente unido depois do baque. Você fez várias coisas por mim também.
— Você percebeu?
— Eu percebo tudo!
— Só estou preocupado. Não sei se consigo dar conta de tantas coisas ao mesmo tempo. Mas eu não tenho muita escolha, já que sou o Filho de Trismegistus. Eu queria que tudo isso parasse. Esse jogo de duelos, tudo.
— Eu sei. Eu também não quero lutar. Sei quanta infelicidade isso te traz. ... Mas, eu tenho medo de que, caso eu descubra que há a menor das possibilidades de te libertar desse fardo, algo em mim mude.
— Thes...!
— Desculpa. Eu arruinei o clima.
— Não. Ainda bem que você me falou. — Eu o segurei e o trouxe para perto de mim. — Nem pense em fazer uma coisa dessas por mim. Isso me deixaria muito, muito triste.
— Eu não vou. Eu só quero ficar junto de vocês. Mais nada.
— Você não vai lutar. Nenhum de nós vai. Confie em mim.
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EMBLEMA XIX
Se você matar um dos quatro, todos eles morrerão.
“Quatro irmãos formam uma fila;
um trás terra, e outro, à direita, traz água,
e os dois demais carregam ar e fogo.
Se deseja que pereçam, basta matar um.
A morte do parente de Sangue eliminará todos,
pois estão ligados pelos laços mútuos da Natureza.”
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Acordei com a língua pegajosa do senhor Kaeru na minha cara. Como não o fiz ontem, aproveitei para limpar o viveiro das rãs. Eu podia delegar essa tarefa às máquinas, mas ocupar a cabeça com afazeres me ajudava a desestressar.
Deu mais trabalho do que eu esperava. Bem, essa era a responsabilidade de criar bichos de estimação — embora eu não tenha pedido rãs, muito menos quarenta delas. Ao término, precisei contá-las uma a uma para me certificar de que não faltava nenhuma.
De qualquer forma, estava na hora de almoçar. Ajeitei meu uniforme, apertei a toga e saí.
Passando pelo Arco do Triunfo, encontrei Hector. Ele parecia abatido. Estava pálido, suando como se tivesse acabado de correr uma maratona, e nem percebeu que eu me aproximava.
— Hector, bom dia. — Meu cumprimento o fez dar um sobressalto, mas ele permaneceu cabisbaixo, sem responder. — ... Por que você está assim? Está se sentindo mal?
— Não.
— Não?
Depois de alguns segundos, ele cambaleou na minha direção. Seu corpo só não foi ao chão porque eu o segurei.
— Hector! Eu sabia. Meu deus, o que houve com você? Você está gelado.
— M-Me desculpa.
— Te desculpar? Pelo quê? — indaguei, notoriamente confuso com sua voz chorosa.
— Me desculpa. Me desculpa pelas coisas ruins que eu te fiz. Me perdoa... N-Não me deixa.
— O quê...? Eu já te desculpei, Hector. Eu disse que te perdoava. Que história é essa de te deixar? Eu não guardo rancor depois que perdoo alguém. Você também me perdoou, esqueceu?
— Gh-agh...!!
Ao tatear suas costas, encostei em algo que o fez ganir. Era uma superfície irregular, coberta por plumas e um líquido viscoso. Suas costas estavam encharcadas de sangue e pus, escorrendo de cicatrizes em carne viva.
Não acreditei no que vi. As pontas de suas asas saltavam para fora, como se o processo de abertura tivesse sido interrompido logo no início.
— Você ia abri-las?!
— Não. Eu juro.
— Elas saíram sozinhas? Como?!
— Eu não sei. E-Eu estava dormindo. Mas eu... parei elas. Não consigo continuar.
Ele as conteve à força, mesmo que isso prolongasse a dor. O cheiro forte que exalava da ferida não era só de sangue. Devia ser da queima das substâncias envolvidas na formação do homúnculo.
Sem mais forças, seu peso desabou sobre mim.
— Hector, aguente firme! Isso já vai passar. Vai passar, ouviu bem?
Sua pressão despencou. Mal conseguia sentir sua pulsação. O mais rápido que pude, tirei o Amaranto do pescoço, o posicionei sobre os ferimentos e me concentrei.
— Eu vou morrer...?
— Não, você não vai morrer! Não pense em mais nada — só olhe pra mim e faça o que eu mandar!
Com a reação luminosa da pedra, pedi a ele que fizesse força e puxasse as asas para dentro.
Eu tentava mantê-lo desperto, falando alto em seu ouvido e o balançando. Se usasse a mão para ajudá-lo, a fricção com os músculos e ossos causaria ainda mais dor. No entanto, se ele apagasse, eu não teria escolha.
Por sorte, não foi necessário. Conseguimos fechar a brecha e cicatrizá-la. Meu coração batia a mil por hora. Se eu o tivesse encontrado alguns minutos depois, talvez já estivesse sem vida. Foi um momento muito assustador.
Passado um tempo, a cor de seus lábios se normalizou, e ele apagou ali mesmo. Fiz o que pude, mas não era forte o suficiente para carregá-lo até meu quarto, o mais próximo dali.
Máquinas ajudantes nos cercaram, mas suas estruturas não suportavam o peso de um ser humano. Apenas as da enfermaria possuíam o equipamento adequado, e, pela distância, demorariam um bocado.
Foi quando Thes nos avistou, bem na hora em que mais precisávamos. Rapidamente veio nos acudir, carregando Hector nas costas como se não pesasse mais do que um travesseiro.
— O que está havendo, Teru?
— As asas dele não se abriram por completo. Eu o curei. O pior já passou, por enquanto.
— Vamos levá-lo daqui, depressa.
Anoitecia, e os grilos cantavam. Ele caiu em um sono profundo depois que o deitamos na cama e limpamos o sangue.
Como seu irmão gêmeo nos orientou, trouxemos água e barras nutricionais para lhe dar assim que acordasse. Disse-nos que, em duas horas, ele se estabilizaria, mas se passaram três, quatro, e nada.
— O que a gente faz agora? — questionou o menor. — Quer que eu peça ao Kosmo para vir dar uma olhada nele?
— Kosmo não pareceu preocupado pra mim.
— Eu posso fazer um drama e convencê-lo.
— ... É. Para desencargo de consciência, será bom.
— Não o chamem — resmungou Hector, sentando-se com tamanha naturalidade que nos pegou desprevenidos.
— Hector!! — exclamamos, em uníssono.
Mais do que ele, nós é que levamos um susto ao ver nossos rostos quase colados no dele.
— Como se sente?!
— Horrível.
— Vê se não mata a gente do coração! Você estava com uma aparência péssima!
— Não é a primeira vez que isso acontece.
— Suas asas abrirem durante o sono, você diz?
— Sim. Mas não é nada grave, e eu sempre fico bem no fim. Com licença.
Ele se levantou e caminhou em direção à porta, mas a tontura quase o fez tombar. Tivemos que arrastá-lo de volta e ainda ouvir reclamações.
“Nada grave” não era como eu descreveria.
Pela reação de Kosmo, não parecia algo incomum, mas... era mesmo tão normal assim? Eu quase o perdi. Até agora, minhas mãos tremiam. Afinal, como ele lidava com isso antes de ter acesso ao Amaranto?
A cicatrização normal de uma ferida daquelas levaria semanas, talvez meses. Para dominar as asas como dominava, certamente fora forçado a mantê-las abertas por mais tempo do que devia, e o ciclo se repetia.
Ele se feria e se desgastava sem pausa, como agora. Só de imaginar a sensação, era angustiante. ... Por que ele precisava passar por isso?
— O protótipo bioalquímico das asas é muito restrito, então os relatos são raros — Thes explicou —, mas o Hector faz uso constante, e isso deve explicar a maior propensão a abri-las sem querer. O corpo dele deve perder o controle dependendo da situação.
— O fator emocional influencia nisso?
— Ah, é provável que sim. Mas e se... — Ficou pensativo por alguns segundos, até que teve uma ideia. — Aí, Hector! Assim que se recuperar, que tal treinar comigo?
Irrequieto e sem olhar nos olhos, ele retrucou:
— Já não treinamos juntos na academia?
— Me refiro a combate, pancadaria mesmo! Só dummies e corridas com obstáculos não rendem. Você precisa de prática contra uma pessoa de verdade.
— Não sei não.
— Hector, vamos ser honestos — insisti —, a preparação não pode te fazer mais mal do que bem. Essa será uma ótima oportunidade. O Thes vai te ajudar a evoluir com segurança.
— ... Tá legal, tá legal — concordou, ainda emburrado. Quando vimos, ele já tinha enfiado duas barrinhas na boca de uma vez, mastigando enquanto falava: — E aí? Quando começamos isso?
— Não tão rápido, mocinho. Primeiro, vamos dar uma olhada na sua alimentação. Teru, veja se consegue preparar com a Circe uns suplementos pra tratar da anemia dele.
— Entendido!
— Você vai ter que comer bastante, senhor comprometido. Ah, e temos que rever sua rotina de exercícios. Percebi que você faz alguns do jeito errado, igual seu irmão.
— Eu faço errado?!
— Sim. Digo, o seu corpo fica na postura errada, mas isso é fácil de resolver. Eu te ensino!
Presumi que Hector rejeitaria logo de cara, mas meu julgamento se provou errado. Em poucos dias na nova rotina, ele se mostrou mais responsivo.
Tanto no aspecto físico quanto no combate, tinha mais energia para gastar, e sua resistência teve melhoras consideráveis. Eu os assistia da plateia, então não deixava de notar até as menores diferenças.
Ele já não passava tanto tempo sozinho. Por mais que sua hesitação à aproximação dos outros permanecesse, eu sentia uma amizade genuína entre os dois guerreiros florescendo.
Ofegante após uma rodada intensiva de golpes e bloqueios, Thes se pôs de pé e embainhou a espada. Em seguida, foi até o novo pupilo — este tão cansado quanto — e bagunçou seus cabelos.
— Você foi ótimo, garotão.
— Obrigado.
À mão estendida, ele aceitou e se ergueu com um sorriso.
Nunca imaginei a felicidade que isso me proporcionaria, até acontecer. Tive até um pouco de ciúme, mas era besteira. Ver meu anjo criar um laço com alguém além de mim e do irmão era um sonho se tornando realidade.
As atividades do dia foram encerradas, e as placas do teto do coliseu se fecharam. Saímos pela passagem principal, nossas vozes ecoando pela cidadela enquanto jogávamos conversa fora. Íamos tomar banho, nós três.
Hector não era um homem de muitas palavras, mas, conforme se acostumava, sua forma de interagir conosco se tornava menos engessada. A gente adorava pegar no pé dele. Digamos que, no fundo, era pra lá de expressivo.
Chegando à entrada do hammam, ele tomou um semblante mais sério e partiu na nossa frente... Ué. Sem nem avisar. Supus que tivesse ido ao banheiro, já que tinha vergonha de dizer quando ia fazer as necessidades.
Nisso, restamos eu e Thes na entrada dos vestiários.
— Acha que está dando certo? — ele perguntou.
— Só você para operar esse milagre.
— Você é o milagreiro aqui, ó, detentor do Amaranto!
— Bobo — ri, sem jeito.
— Hehe. Eu não duelarei, Teru. Fique tranquilo. — Seu tom de voz se fez mais grave, sem abandonar os resquícios de sua doçura. — Farei dele forte, tão forte que nem os Dióscuros serão páreos. Então, mesmo que eu não possa confiar em mim mesmo... poderia confiar em mim, no meu lugar?
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Hey, aqui é o Rafa! Muito obrigado por ler Os Prelúdios de Ícaro até aqui.
A começar desse capítulo, estarei publicando apenas um (1) por semana por conta da universidade. Por favor, continue a acompanhar meu trabalho!
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