Volume I – Arco II
Capítulo 23: O Mundo, ato III (Interlúdio)
Eu vivia me perguntando o que poderia ter causado a morte do vovô, já que ele era um senhor sadio. Quando eu questionava meus pais sobre sua condição de saúde, eles fugiam do assunto até eu parar de insistir.
A verdade por trás desse mistério estava nos exames de coração que eu fazia todo ano. O vovô também tinha válvula aórtica bicúspide, mas o caso dele não foi diagnosticado. Com a idade e sem o tratamento adequado, o quadro progrediu para uma insuficiência cardíaca.
Mantiveram isso em segredo de mim para não me assustar. Não é legal saber que seu avô morreu pelo mesmo problema congênito que você tem.
Graças a esse mundo dos sonhos, eu pude refletir a respeito disso e ter uma certa paz para com a perda dele. Ninguém devia imaginar que o papai e a mamãe só me sobrecarregaram com dúvida e ansiedade, mas... não era algo pelo qual eu ia culpá-los.
Se todas essas respostas existiam dentro de mim, eu tinha que continuar procurando. A qualquer momento, eu poderia me deparar com conteúdos que eu mesmo quis apagar da minha história e do meu passado, e expô-los à luz.
No dia seguinte, a Academia Arcadia voltou ao estado original.
Achilles e Patroclus praticavam kendo juntos e estudavam na turma 3-B. Nos horários recreativos, eu os via conversando na língua gestual japonesa e dividindo lanche. Acredito que dividiam um apartamento no bairro vizinho.
O clube deles, assim como o de ginástica rítmica, reapareceu. Ganymede ainda era nosso colega de classe, e se cercava de colegas que o aceitavam e admiravam como a estrela que era. Ele tinha um talento nato para o que fazia.
Suas vidas não eram limitadas a ser um “herói”, ou à busca por milagres. Eles tinham pessoas para amá-los como eram, e todos eles se encontravam felizes. Lógico que isso também incluía Thes, Kosmo e a senhorita Circe.
— Essa é a felicidade que você desejou.
Olhei para trás, e vi Castor, agora da sala 3-C. Éramos os únicos no terraço, e as nuvens no céu se moviam mais rápido do que o normal.
— As distorções em seu coração criaram esse espaço e as pessoas que nele habitam — continuou. — Aqui, tudo é definido pelo que você deseja.
— Bom saber. Isso quer dizer que você também é feliz aqui, senhor Castor. Mesmo que seja uma felicidade que eu escolhi para você.
— ... De que adianta? A felicidade se acaba. Ela é finita.
— Só por agora, eu gostaria que você a aproveitasse.
Ele sorriu, e deu meia volta.
— Obrigado por nos levar em consideração. No entanto, devo retornar para o lugar de onde vim. Até mais ver, Terumichi Kinjō.
— Até. Diga à senhorita Pollux que o meu irmãozinho adora o Senhor Kaeru dos tamagotchis.
— Poderá dizer a ela você mesmo. Quem sabe.
Num piscar de olhos, fui parar na biblioteca vazia. As luzes falhavam, e eu escutava risos inocentes de crianças lá fora. Vi uma silhueta caminhar por entre as estantes, derrubando livros por onde passava.
Eu a segui, atentando-me aos títulos dos exemplares caídos.
Aurora Consurgens.
A Carruagem Triunfal do Antimônio.
O Parentesco dos Três.
Turba Philosophorum.
Corrente de Ouro de Homero.
As Seis Chaves de Eudoxo.
O Tratado Dourado de Hermes Trismegisto.
Esse peculiar gosto literário, tão semelhante ao meu, eu sabia a quem pertencia.
Eu era guiado a um lugar mais amplo, mais profundo, semelhante a um estacionamento de luzes amareladas. Pela saída de emergência, segui por um corredor, até que parei sobre um único livro largado no chão úmido.
O recolhi, e enxuguei a capa. “Atalanta Fugiens, isto é, os Novos Emblemas Alquímicos a Respeito dos Segredos da Natureza” de Michael Maier, 1617. Um dos mais belos livros emblemáticos da época do Renascimento e do Barroco.
— Essa é a edição que te dei de presente de aniversário.
— Sim. Eu fiquei tão feliz que chorei, e você secou as minhas lágrimas — retornou a silhueta, mesclada com a escuridão do canto do salão. — Com o seu poder, você fez daquele o melhor aniversário de toda a minha vida.
— O meu poder?
— O poder de conceder a preciosidade. Foi através desse poder que você criou um mundo pacífico onde você e aquelas pessoas vivem uma primavera perene.
Ele apontou para um espelho, através do qual eu via o cotidiano da escola, alheio à dimensão isolada onde nos encontrávamos.
Theseus, Kosmo e a senhorita Circe dividiam os lanches à sombra de uma grande árvore. A mais velha havia preparado uma caixinha a mais, na espera de que eu fosse estar com eles.
— Você foi dormir tarde e perdeu o horário do despertador. Se escolher acordar, poderá ir com eles, mas o mundo exterior deixará de existir.
— E se eu escolher continuar dormindo?
— Você perderá o próximo trem, e o limiar entre os dois lados se fechará para sempre.
Na perspectiva deles, eu não fui à aula. O meu celular tinha mais de vinte notificações não lidas, e duas ligações não atendidas, o que quer dizer que eles sentiram a minha ausência.
Eu tinha um lugar esperando por mim, tanto com eles quanto em casa. Eu podia até viver mais do que vivi com o vovô, e quem sabe levá-lo a um médico para examinar sua condição.
E se um futuro inevitável aguardava por mim, eu aproveitaria ao máximo cada um desses grãos de ouro caindo na ampulheta.
As estações passariam. Nós veríamos o tempo voando e o fim daquele ano letivo se aproximando, mas os nossos laços permaneceriam, não importa que rumos tomássemos depois.
Mesmo quando eu passasse por aquela perda, eu sei que não estaria desconsolado. Eles não se incomodariam em me ver chorar. Não, muito pelo contrário, eles acolheriam a minha dor.
Vi, então, alguém correndo além do panorama de eventos previstos. Era Hector.
Ele perpassava as salas, o terraço, o refeitório, os pátios e todos os lugares possíveis e imagináveis da Academia. Pelo que, ou por quem ele procurava? Seria por mim?
Com o coração pesando como nunca, eu observava cada passo seu, cada pausa para respirar. Se eu escolhesse acordar agora, ele não precisaria correr toda essa distância por minha causa.
Eu estaria junto deles, para todo o sempre.
Ruídos de rodas sobre trilhos. O som de uma buzina ficava cada vez mais próximo. Minhas pálpebras se arregalaram. Caminhei até a moldura dourada, tentado a retornar àquela criação.
Assim que minhas mãos encostaram na superfície do vidro, as dele me alcançaram, do outro lado.
— H-Hector?!
Ofegante, ele esperou uns segundos até recobrar o fôlego.
— Te achei. Finalmente.
— Como chegou até aqui? Você não deveria-...
— Eu queria te pedir desculpas — cortou-me. — Dessa vez, de verdade. Eu não menti quando disse que queria ser seu amigo. Eu... não tenho nenhum. Eu não sabia o que era preciso fazer para ter um. Até agora, eu ainda não sei. Mas eu não quero desistir. Por isso, diga que me perdoa, por favor!!
Ele veio tão longe, só para isso?
— Me dê uma resposta, Terumichi! Eu só preciso da sua resposta!
A peça faltosa se encaixou, e tudo o que me faltava entender, eu entendi.
— Seu bobo. Você não cometeu nenhum crime que precise do meu perdão, mas é claro que eu perdoo! Você já é meu amigo!
— Eu sou?
— Óbvio!
— Nos veremos de novo, na escola?
— Vamos almoçar juntos. Eu, você, o Thes e os outros.
— ... Obrigado, Terumichi. Então, até amanhã...
— Até amanhã, Hector.
Com um sorriso tão tímido, sua imagem esmaeceu até que sobrasse apenas o meu reflexo.
O trem passou com tudo, bem atrás de nós, e o estrondo reduziu o espelho a estilhaços. Ao vento, as páginas do Atalanta Fugiens se soltavam e voavam, como plumas.
— Não vai pegá-lo? — indagou a silhueta.
Hector, graças a você, eu finalmente me lembrei de como eu era, e do que eu precisava ter feito desde o princípio. Convicto da minha escolha, respondi:
— Não. Não vou pegar.
— Está cometendo um erro. Deixará passar esse mundo sem defeitos?
— Eu devia ter ido atrás de você. Se eu tivesse sido honesto com o que eu sentia e dito a você, eu não teria arruinado os dias que nos restavam naquele jardim chamado “escola”.
— Jardim? A nossa escola nunca foi um jardim para mim.
— ... Tem razão. Me perdoe.
Eu caminhei até ele, e o envolvi em meus braços.
— Me perdoe por ter me esquecido de você, Tsubasa.
Eu não te dei um lugar nesse mundo. Não te dei um nome e nem uma vida diferente, porque não consegui me desfazer das memórias que compartilhamos, fossem elas boas ou ruins.
Eu te amava, mas eu te transformei em um vulto — uma pós-imagem marcada nas entrelinhas.
Tendo o trem partido para os confins da galáxia, o livro sem páginas queimou até restar o pó de sua capa. A chama reduziu, extinguindo-se e mergulhando-nos na escuridão distante.
Mesmo que tudo o que construí desabe, eu não vou te abandonar nesse abismo cheio de dor. Não como fiz das outras vezes.
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Despertei, abrindo os olhos bem devagar.
Deitava-me num tapete aconchegante da biblioteca, coberto por lençóis. Ao meu lado direito, Kosmo. Ao esquerdo, Theseus e o senhor Kaeru. Estávamos abraçados, rodeados por uma pilha de livros.
Havíamos tirado a noite para ler e contar histórias, até que pegamos no sono.
Tentei me mexer um pouco, retirando os braços deles de cima de mim para poder me sentar. Será que eles dormiram pensando que eu era a senhorita Circe...?
Falando nela, ela esteve evitando Kosmo desde o dia da audiência. Isso deixou Thes ainda mais deprimido, embora tentasse agir como um solzinho radiante na nossa frente.
Na verdade, nos reunimos justamente para distraí-lo e fazê-lo sair do quarto. Ele riu à beça das minhas palhaçadas e nos agradeceu do jeitinho que só ele, que era tão meigo, fazia.
E veja só, agora ele estava dormindo igual um filhote.
Bebi um copo d’água, observando o relógio planetário, e dei um bocejo. Era como se tivesse dormido por anos. Os detalhes desse sonho super, super longo ainda me eram vívidos.
Desde criança, eu sonhava com coisas complexas, mas não nesse nível de complexidade.
— Perdeu o sono? — perguntou Kosmo.
— Ah, você está acordado.
— Meu sono é leve.
— Eu tive um sonho. Um muito bom.
— Que tipo de sonho?
— Nele, você, Hector, a senhorita Circe, Theseus e os outros desafiantes da Corte viviam em Agartha, e todos nós estudávamos na mesma escola. Era tudo tão agradável, e bonito.
— Você sente que lá no sonho era melhor do que aqui?
— Err.. Bem, a Corte dos Heróis não existia, nem o jogo de duelos. Nosso cotidiano era cheio de... felicidade. Mas eu abri mão disso e escolhi voltar.
Optando pelo mundo onde conheci Tsubasa, eu sacrifiquei a possibilidade que concedia a eles uma vida da qual desfrutassem. Eu sacrifiquei até os heróis que se foram, e o vovô.
Caso aquela realidade fosse mais do que fruto da minha imaginação, teria eu tomado essa mesma decisão?
— Pode ter sido só um sonho, mas obrigado por nos fazer felizes lá — disse ele.
— Será que sou egoísta?
— Por desejar um mundo melhor para os seus amigos?
— Eu não perguntei a nenhum de vocês o que os fazia felizes. Parando para pensar, eu só impus o que eu pensava ser o melhor, como se eu fosse algum tipo de deus.
— Isso tem um nome: húbris.
— É o nome do pecado que ocasionou a catástrofe em Arcadia, não?
— Sim. O pecado da arrogância, quando um humano desafia as limitações impostas pela autoridade divina. O resultado disso é sempre um castigo.
— Eu mereço ser castigado?
— De forma alguma. Mas Terumichi não deveria carregar a responsabilidade de um deus — explicou. — E agora que está aqui, você tem a chance de perguntar o que é a felicidade para nós, e de... quem sabe, fazer parte dela. Pode não ser a mesma que viu no seu sonho, mas estou certo de que não seria pior.
— Você sempre sabe o que dizer para que eu me sinta melhor — sorri, deitando-me e puxando as cobertas.
— Minha alma é velha.
Passada a excursão ao Museu Nacional de Tóquio, restavam poucos dias até o fim do meu terceiro ano.
Eu não aceitava bem a ideia de aquele mês de março era o meu último mês de escola. Quando ele acabasse, eu, Tsubasa e todos os outros seguiríamos caminhos diferentes. Nada seria o mesmo.
Com a morte repentina do vovô, as separações passaram a me apavorar. Não pude me despedir dele, e tampouco me preparei para me despedir da minha adolescência dourada que fluía.
Eu devaneei que ela nunca iria se consumar. Porém, não existe nada eterno. A vida segue sem esperar por nós, mudando e se transformando a todo momento, assim como as pessoas.
Assim como eu.
“Há dois tipos de sonhos. Em um, o sonhador testemunha eventos. Ele controla o que está acontecendo e o que vai acontecer; ele é um Demiurgo. Em outro, ele é desprovido de controle e sujeito a violências das quais não pode se defender. Tudo resulta em sofrimento e angústia.”
Tempo Dentro do Tempo: Diários 1970-1986
Andrey A. Tarkovsky, 1989
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Pela manhã, o som de pássaros me despertou. Foi a primeira vez que os ouvi no Anfiteatro. Eram espécimes criados em cativeiro nas câmaras internas, e, nessa época do ano, se dava a fase de reprodução. Era a única em que saíam.
Eu os apreciava enquanto voavam e cantavam sobre as plantas da sacada do cenáculo, até que avistei Hector. Ele veio até mim, deixando-se banhar pela claridade matinal. Nós dois nos entreolhamos por alguns segundos, até que ele quebrou o silêncio.
— Eu queria te pedir desculpas.
De súbito, tive um déjà vu.
— Eu fui violento e cruel com você — prosseguiu —, e eu-... eu não devia ter sido assim. Eu errei. Não precisa voltar a falar comigo se não quiser. Tudo o que peço é pelo seu perdão.
— Você está sendo sincero?
— Estou.
— Venha cá.
Abri os braços. Ele congelou, sem ideia de como reagir. Então, repeti:
— Venha, venha.
Até que ele veio, e o ofereci um abraço bem apertado. Dessa vez, sem uma separação entre eu e ele.
— É claro que eu te desculpo — o disse. — Eu também errei. Eu fiquei frustrado com o jeito que você estava me tratando, e joguei sal na sua ferida. Me desculpe.
— Tudo bem. Eu desculpo.
— Depois de tudo o que passamos juntos, não vamos nos afastar por uma briga dessas. Eu odeio ficar longe de você. ... Ei, você está tremendo tanto. Tinha medo da minha reação? É isso?
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