Volume I – Arco II
Capítulo 20: O Anjo
— Eu sou... precioso pra você, nomo Rhabeh?
Atônito com o meu questionamento, um sacerdote alto, coberto por robes brancos que o cobriam da cabeça aos pés, afagou minha cabeça.
— Mas é claro, Hector — respondeu, por trás de sua máscara. — Você é precioso para todo o povo de Vertumnus. Eles ainda não são capazes de ver isso, pois ainda és jovem. Só tens seis sóis. Mas quando fizeres o bem pelo mundo, serás recompensado.
— Recompensado?
— Sim. E daí em diante, você será o mais precioso de todos.
A cada batida das pedras contra minhas costas, a dor ia se perdendo entre meus grunhidos.
Eu tinha que acreditar no que o nomo Rhabeh disse. Que, um dia, quando menos esperássemos, as pessoas nos veriam de outra maneira. Nós seríamos merecedores de alguma coisa.
Eu prometi isso ao meu irmão, a quem protegi naquele dia.
✤ Fugiens III, “MATERIAE HECTOR” ✤
O Sol raiou no horizonte, e os cidadãos mascarados se dispersaram. A exposição mínima à luz do dia os incomodava, e os fazia arder como se pegassem fogo. Em pouco, as ofensas cessaram.
Encolhidos na sarjeta, eu e Kosmo nos abraçávamos. Enquanto ele chorava e pressionava as mãos nos meus machucados, tentei levantá-lo e levá-lo para casa antes da polícia nos apreender.
Os únicos seres humanos em Vertumnus com peles resistentes à maldição da luz solar eram eu e ele.
Nós éramos gêmeos, espelhos um do outro. Tínhamos o mesmo rosto, a mesma altura e as mesmas características físicas. O que nos diferenciava era a cor dos nossos cabelos.
Ao retornarmos à abadia onde os sacerdotes nomos cuidavam de nós, nós levamos uma bronca, mas eu insistia que aceitássemos qualquer punição, qualquer castigo, juntos.
Fomos criados isolados de tudo e de todos, e isso fazia com que meu irmão se sentisse solitário. De vez em quando, ele desobedecia às ordens para ir ver as estrelas no observatório da cidade, e eu, é claro, ia atrás para vigiá-lo.
Só que, nessa ocasião, ele demorou demais, e foi pego descaracterizado.
Por sua condição, as pessoas se apavoraram. Para elas, ele era uma aberração forasteira que fugiu de outra cidade — uma criança oriunda de espíritos malignos —, levando o infortúnio e o declínio aos lugares puros.
Isso não era verdade. Kosmo não era uma aberração, e ele não levava infortúnio e declínio nenhum. É por isso que, quando o arrastaram até a praça e o apedrejaram, eu não pude só assistir. Eu quis estar com ele.
— Por que você me protegeu, irmão? É culpa minha. — Ele mancava, apoiado em meu ombro. — É porque eu tenho esses cabelos brancos! Se você ficar comigo, você só vai se machucar também!
— Kosmo, você lembra da história que os nomos nos contaram uma vez?
— Que história?
— Sobre um rei de uma terra distante, que abandonou o filho porque ele nasceu com os cabelos brancos! E aí, um grande deus pássaro criou a criança, até que ela cresceu e voltou como um dos maiores reis de todos! ... Huuh, qual era o nome dele mesmo...?
Mesmo sabendo que todos o odiavam, Kosmo não suportava ver os outros em sofrimento. Ele era gentil. Talvez eu quisesse ser como ele, e por isso eu sempre tomava seu partido em discussões ou quando se metia em apuros.
Tudo o que fizessem a ele, também teriam que fazer a mim, como parte dele. Mesmo que nós dois ficássemos todos machucados, ele era o meu único irmão — minha única família nesse mundo.
E, apesar de serem muito rígidos conosco, os nomos nos amavam.
Para eles, nós éramos os “Escolhidos pelo Sol”. Nós nascemos sob o destino de salvar a humanidade do Declínio se alastrando além das muralhas. Não tínhamos pai, e não tínhamos mãe, pois fomos criados por deus.
Fomos educados e treinados para sermos os heróis ideais, uma vez que, no ano em que fizéssemos dezoito sóis, partiríamos em uma longa viagem à Torre dos Filósofos, o lugar onde alcançaríamos o resplandecente Ícaro.
As escadas se ergueriam para além do Sol Sagrado, e os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria se abririam. Além deles, haveria uma miríade de flores e frutos cercando a habitação do Pai de Todos os Milagres; um castelo ornado em ouro puro.
Por mais que só um de nós, no caso, eu, pudesse chegar até lá, Kosmo continuaria comigo como sempre fez. Ele era minha companhia. Podíamos até brigar às vezes, mas ninguém era mais importante para mim do que ele.
Após cumprirmos a missão, nós voltaríamos para Vertumnus e mostraríamos nossos feitos. E então, seríamos recompensados e respeitados por todos.
As pessoas não atirariam pedras. Elas nos encheriam de roupas caras, presentes e joias de todas as cores. Elas não nos condenariam. Pelo contrário, diriam um montão de palavras bonitas, para mostrar o quanto éramos apreciados.
Para isso, só tínhamos que fazer por merecer.
ᛜᛜᛜ
Os meses corriam, e a distância entre nós cresceu. Kosmo, que costumava sempre brincar comigo, começou a andar com os sacerdotes e aprender coisas das quais eu não fazia ideia.
Tão diferente ficou que nunca mais quis saber das estrelas. Ou ele se fechava na biblioteca com suas pilhas de livros e pergaminhos, ou ia para o ateliê da abadia consertar relógios.
— Nomo, por que o Kosmo ficou desse jeito?
— Que jeito?
— Por que ele mudou? Ele não era assim! Ele nem veio comemorar o nosso aniversário comigo. Parece até que ele não gosta mais de mim!
— ... Esqueça o seu irmão, Hector. Ele não é como você. Não deixe que ele se torne mais um obstáculo no seu caminho. Entendeu bem?
No ano em que completei sete sóis, se deu o dia da cerimônia tão aguardada.
Atrás de mim, as pesadas portas do Arcabouço das Profecias se fecharam em um ruído alto e desconfortável. Tochas se acenderam no escuro, e vi gravuras que representavam o nascimento do mundo e a história do reino dos homens.
Desde os meios de vida dos povos antigos — os precedentes da catástrofe — até a ira do Sol Sagrado, a grande cisão e a queda do Filho de Trismegistus ao abismo. E, por fim, Ícaro, portando a chave miraculosa para salvar a humanidade.
Eu não conseguia tirar meus olhos de sua figura. Um dragão nascido com duas cabeças, quatro braços, duas pernas e uma pélvis, nas sacras escrituras chamadas de “Kush’padme”.
Em verdade, esse nome não se referia a um só ser, mas a uma junção de dois, sendo eles “Koshmayah” e “Padomektah”, que em nossa língua significam “preenchido” e “vazio”.
Kush’padme eram irmãos gêmeos que compartilhavam do mesmo corpo. As Crianças-Dragão, que de parto normal nasceram do ventre de um deus sem nome, em união com o esperma de uma deusa sem nome.
Não se sabia de onde esse símbolo surgiu ou o que ele significava para o velho mundo, mas sua emanação era descrita como a raiz do que veio a ser o conceito de Ícaro, o salvador alado.
A fim de obter a glória vindoura, era necessário um coração vazio para ser preenchido pelo divino. Em outras palavras, um irmão de ouro que se faria inteiro por meio da dissolução do irmão de carne.
Quando éramos bebês e os sacerdotes nos acolheram, recebemos os nomes “Kosmo” e “Hector”, pois derivavam da etimologia de Kush'padme.
Nós éramos as encarnações dessa entidade cósmica conjunta. O destino que nos foi concedido ao sermos abandonados estava escrito naquelas paredes, e ele definitivamente se cumpriria.
— Entrai, Padomektah.
— Sim, vossa eminência.
Atendi ao chamado do grão-mestre nomo e dei abertura ao último rito de iniciação. O grande pergaminho do abutre se desenrolou até meus pés nus, e sobre ele caminhei, fazendo pegadas de tinta preta.
O ar fugia, e os meus arredores pareciam ficar cada vez mais apertados e sombrios. No fundo desse poço tampado, só havia eu e a luz de uma vela, à qual os meus olhos deveriam se manter fixos até o fim.
... Tudo bem, eu estava pronto. Eu era digno. Meu único desejo era livrar meu povo da fome, da sede e da doença. Eu queria protegê-los de toda a tribulação. Eu só tinha que manter a calma.
Os ossos das minhas costelas se contraíam, arranhando uns contra os outros. Uma pressão insuportável. Meu coração batia tão forte que era como se estivesse sendo arrancado por trás.
Porém, o que desabrochava das minhas costas, dilacerando a pele como se fosse papiro molhado, era um par de asas recém-nascidas, com plumas da cor do bronze.
Doía. Doía demais, e piorava a cada segundo. Era pior do que a dor das pedradas, e eu não conseguia fazer parar. Eu gritava, pensando que alguém viria me acudir, mas ninguém veio.
Quase sem fôlego restando, fiz ainda mais força para esticá-las, de pouco em pouco. Foi quando minha visão turvou, meu equilíbrio se desfez e eu dei com a bochecha em uma poça vermelha.
N-Não... Eu precisava de forças para continuar.
Por favor, deus, dê-me forças manter os meus olhos abertos diante da chama da vela. Se eu não cumprir com a cerimônia, eu nunca-... eu nunca serei merecedor de...
O PERGAMINHO DO ABUTRE
ORATORIA 0/L – AURORA CONSURGENS I
As boas novas vêm ao MUNDO DOS HOMENS.
A ESTRELA DO AMANHECER é comigo.
Diz-se que sou preto e branco, amarelo e vermelho,
então se queres a CURA, dá ouvidos ao que digo,
pois minhas palavras não vêm de falsa sabedoria.
Eu venho dos confins da CORRENTEZA ETERNA —
a RETRIBUIÇÃO que pune e corrói a HÚBRIS.
Não sede como o tolo que anda sem os pés.
Vesti a MÁSCARA e abandonai os teus DESEJOS.
Trazei o CÁLICE VAZIO para ser PREENCHIDO,
e diante das portas da TORRE DOS FILÓSOFOS,
anunciai o ABRE-TE SÉSAMO.
ORATORIA I/L – AURORA CONSURGENS II
Ao mais belo e poderoso entre os heróis:
subi ao ANFITEATRO DA ETERNA SABEDORIA.
Atende ao chamado de RUDOLPH DAS ROSAS,
e compromete-te ao FILHO DE TRISMEGISTUS.
Este possui em si a CHAVE.
Com ela, destranca o JARDIM e regozija do ÚNICO DESEJO.
Torna-te o resplandecente ÍCARO MESSIÂNICO.
Na ESCURIDÃO sinistra e na LUZ gloriosa,
bata tuas asas até o limiar do ETERNO AMANHECER.
Sede o OURO que desfaz a CARNE
e restaura a DIGNIDADE dos teus ancestrais.
ESCOLHIDO PELO SOL,
a CORTE DOS HERÓIS aguarda tua chegada.
Nas profundezas do ABISMO, os PÁSSAROS têm fome e sede.
Segue, pois, aos mandamentos que aqui hão de ser descritos,
e perdurará o REINO pelos séculos que virão.
Em nome da TEMPESTADE, do PERCUCIENTE
e da DESTRUIÇÃO DOS HOMENS.
ORATORIA II/L – EXITUS DESPERATIONIS
(...)
ᛜᛜᛜ
Acordei ao som dos pássaros, tranquilo, como se à deriva.
Era como se não houvesse nada dentro de mim, nem sangue, nem carne, nem ossos. Mas no instante em que fechei os olhos para coçá-los, eu me lembrei do poço e da chama de vela.
Um espasmo súbito abriu minhas pálpebras, e eu comecei a gritar e chorar. Os nomos vieram da porta e me seguraram firme, dizendo que segui com o rito até o fim, e que a cerimônia foi um sucesso.
Não sei até onde isso era verdade.
Lembrava-me vividamente da dor e da agonia. Eu desbloqueei em meu corpo o mais temido protótipo bioalquímico remanescente da antiga era: o Homúnculo, as “Asas de Simurgh”.
Mas, mas... se eu fracassei, eu tinha que tentar de novo. Tudo bem começar do zero, desde que valesse a pena mais tarde. Foi o que disseram, não é? Que se eu fizesse por merecer, eu seria recompensado!
Se eu não tentasse, ninguém iria olhar pra mim. Ninguém ia precisar de alguém como eu. Todo mundo ia me abandonar! Ninguém nunca iria me encontrar naquele lugar escuro...!
— Não!!
Minhas asas se abriram, empurrando meu irmão no chão do nosso quarto e sujando tudo com o meu sangue.
Nos braços, eu carregava uma caixa onde piava um passarinho ferido do qual cuidamos. Nesse dia, ele ficou bom o suficiente para voar, e Kosmo pretendia retorná-lo à natureza.
— Fui eu quem viu ele primeiro! — gritei, com as bochechas molhadas de suor e lágrimas.
— Devolve, Hector! Ele tem que voltar pro verdadeiro lar dele!
— Não, não, não! Eu o carreguei até aqui! Ele é meu! Só meu!
— Me dá isso, seu egoísta! — Ele avançou pra cima de mim, tentando tomar a caixa das minhas mãos, mas eu relutei.
— Não, para! Sai de perto de mim! Eu odeio você!!
Nós deixamos o objeto cair, e o pássaro fugiu pela janela mais rápido do que pude alcançá-lo.
Quando ele foi embora, eu já não sabia se eu chorava por perdê-lo ou pela dor em minhas costas. Deixando-me levar pela ira, tentei estrangular o meu irmão, mas os sacerdotes apartaram, e decidiram cortar nosso vínculo.
— Por que fez isso com ele, Hector? — questionou o nomo Rhabeh, no confessionário da igreja.
— Porque ele tirou o que era meu de mim.
— Mas você entende que você poderia ter machucado ele seriamente? Ou até...
— Ah, fala sério. Eu não ia matar ele, nomo. Só ia ensinar a ele uma lição.
— Se sente vazio, Hector? — indagou.
Em choque, nada respondi. Só continuei a fitar aquela máscara inexpressiva.
— Você queria o passarinho para preencher o vazio dentro de você?
— Não sei.
— Se o que sente é o vazio, aceite-o como parte de você. Lembre-se do segundo mandamento: alheia-te de tudo o que existe, e condena os amores mundanos — explanava. — Você não é só parte de Kush’padme, mas Ícaro, e você porta as asas que nos salvarão. Você fará com que nossos corpos não queimem mais à luz do dia.
A morte e a miséria encobriam o mundo. As terras agrícolas perdiam a capacidade de cultivo, a caça e a pesca se tornavam escassas e os mais pobres tinham de ser acolhidos pela abadia.
As coisas pioravam a cada dia, e os mausoléus se enchiam de estátuas vítimas do Declínio.
Foi devido a essa maldição que a prática da alquimia foi proibida há tanto tempo. Só alguns ainda a utilizavam às margens do estado, como criminosos, contrabandistas, e eu, amparado pelos nomos.
No meu caso, violar o tabu era necessário a fim de que o destino se cumprisse com êxito, fazendo-me um guerreiro alado de quatro membros superiores.
O ouro nunca me afligiu, mesmo após tantos anos. Minha sobrevivência era um milagre — um motivo de louvor —, e comprovava a minha posição como o Escolhido pelo Sol pelo qual o meu povo esperava.
Por enquanto, eles ainda não podiam me reconhecer como tal, mas eu me comprometi para com eles e aprendi a não esperar mais nada em troca. Se deus não viria salvá-los, ninguém iria fazê-lo senão eu.
A espada que recebi quando completei oito sóis, Cálice, era a minha única companheira em batalha. Ela simbolizava o que deveria ser o meu coração: um recipiente oco. E ele era mais belo e forte dessa forma.
Um dia, eu a devolveria com um beijo ao Filho de Trismegistus, uma existência tão vazia quanto a minha. E então, sobre mim seria vertido o sangue e o vinho e Ícaro, ou Messias, como chamavam os estrangeiros.
Os outros heróis, enroupados órfãos que também cresceram isolados no monastério, não eram servos. Eles não viajariam conosco à Torre. O propósito deles se resumia a ser parte do meu treinamento físico e moral.
Tomando controle sobre a lâmina prateada e a aerodinâmica, arranquei-lhes as máscaras centenas, milhares de vezes. Aos quatorze sóis, eu havia me tornado um espadachim valoroso.
A essa altura, eu controlava a saída das asas de uma forma mais segura e limpa, permitindo-me abri-las até em horas de risco. Não que isso amenizasse a sensação, muito menos ao guardá-las.
Nesse mesmo ano, reencontrei meu irmão.
Nossa relação já não era a mesma. Nós dois mudamos, e nos reunimos apenas em nome da profecia. Viria o tempo em que eu me tornaria uma existência una, e isso não incluía ele.
Os dias em que vivemos juntos, dormindo abraçados, brincando, passeando pelas trilhas seguras das florestas... eu abandonei tudo isso, assim como tudo o que ele significava pra mim.
Caso eu não extinguisse meus sentimentos por ele, tratando-o como só mais um, tamanha traição aos mandamentos me traria ruína. Um segundo fracasso meu não seria perdoado.
Nós partimos antes de completarmos dezoito sóis. Seguimos por uma rota que levou 100 anos para ser construída. Era um canal que perpassava as montanhas das extremidades do continente.
A segurança era garantida, e chegamos à Torre em menos tempo do que o esperado. Tínhamos ração e água de sobra na carroça. A real questão era se eles durariam até o destino.
— Hector — chamou meu irmão, num tom diferente do usual. — Eu preciso que saiba de uma coisa.
Kosmo, desse momento em diante, passou a dizer coisas estranhas.
Ele falou sobre a “verdade” de Vertumnus, do Filho de Trismegistus e do desejo que nos seria concedido ao alcançar Messias. Conteúdos do pergaminho do abutre dos quais nunca me foram ditos antes, mesmo eu sendo o campeão.
Nada disso fazia sentido. Não, de forma alguma. Se qualquer uma dessas asneiras das quais ele falava fosse verdade, então... esse tempo todo, os sacerdotes nomos, o grão-mestre e o meu irmão, todos eles esconderam coisas de mim.
Durante a subida, não nos separamos por um acidente. Eu segui em frente por conta própria, com medo de que eu fosse traído por Kosmo.
Eu não podia fraquejar. Não podia me dar por vencido. Eu era Padomektah, e incorporar o vazio era o meu destino. Não importava se eu sangrasse ao fazê-lo, era precisava matar a preciosidade me acorrentando para ultrapassar os obstáculos.
Eu rasgaria as minhas costas e retornaria àquele dia fatídico, quantas vezes fossem necessárias.
ᛜᛜᛜ
Às portas do Anfiteatro, eu, o primeiro colocado, fui admitido como o comprometido da Corte dos Heróis. Mas, deparando-me com a cidadela vazia, me perguntei se havia tomado a decisão correta.
Meu irmão não tinha as mesmas habilidades que eu. Ele sempre foi o mais fraco, e eu assumi que, sem mim, ele havia morrido nas masmorras. Que eu nunca mais o veria. Isso entornava dentro do meu peito como um líquido corrosivo.
... Eu não poderia ter me enganado mais.
Por ser o preenchido, Kosmo se cercou de gente que o aceitava e o protegia no meu lugar. Ele era amado por pessoas cujas peles ele podia ver, cheirar e tocar. Sendo assim, eu não era mais necessário.
— Eu entendo se não quiser conversar — amuou, por trás da porta que tranquei. — Só me diga como estão suas cicatrizes.
— Elas estão bem.
— Você as abriu?
— Não.
Eu não precisava de nada, nem de ninguém. E essas emoções de autopiedade e ciúme não passavam de superfluidades; seixos pesando nos meus sapatos.
Tendo o descartado, não fazia o menor sentido achar que dois estranhos roubaram meu irmão de mim. Eu apenas não queria nada com eles, nem imaginar suas aparências.
— Há uma falha crítica ocorrendo nesta Corte — disse-me o Imperador, assentado no trono.
— Como assim, “falha crítica”? O que está causando isso?
— O número máximo de desafiantes aceitos na Corte dos Heróis é oito. Oito púlpitos, oito faces e oito formas físicas. No entanto, descobriu-se que um dos convocados compartilha a face e o corpo com uma identidade a mais, antes oculta.
— Ohhh. Um duplo, é? Interessante.
— Comprometido, a vontade da Correnteza Eterna demanda que o primeiro duelo aconteça entre ti e o segundo colocado, obrigatoriamente.
— Mas se a contagem fechou em oito, qual é o problema?
— Esta é, pois, a causa da falha crítica. As portas estão abertas para um nono participante, mesmo já havendo oito presentes.
— Ora, então feche-as de uma vez.
— Aguarde.
Sons de maquinários. Num apito irritante, uma maçã pulou de seu busto, e rolou até meu pé.
— ... Há uma falha crítica impedindo-me de fazê-lo.
Não tinha jeito. Minha única opção era lutar contra o segundo desafiante após a chegada do Filho de Trismegistus, cuja existência e natureza genuína era, até então, um mistério.
Canções e teatros reviviam sua história.
O filho pródigo que rejeitou as asas e se sacrificou no abismo pelo bem do reino humano. Seu coração era como uma romã cintilante. Sobre sua cabeça, pairava um sinal misterioso.
Todos o descreviam como um ser além da compreensão, semelhante ao asno papal, e isso nos fazia imaginá-lo como algum tipo de criatura quimérica humanoide ou um santo luminoso.
Porém, estava tudo errado.
Ele era um humano com a pele e os cabelos de cores diferentes. A minha pele era marrom, e a dele era bege. Minhas irises eram azuis, e as dele castanhas. O rosto dele, ao contrário do meu, era cheio de marquinhas.
Ao invés eu entregá-lo minha espada, foi ele quem se ajoelhou e ofereceu o Amaranto a mim, sem mais nem menos. Ele era gentil. Se preocupava com coisas bobas, e falava de um jeito engraçado.
Abrir e recolher as asas me trazia terror do dia da cerimônia. Eu sempre retornava àquele mesmo dia, coberto de sangue e cera que já eram para ter endurecido. Mas, ao fim do sofrimento, havia ele.
Como a pequena chama da vela, ele me envolvia em um leve acalento. Ele curava minhas feridas, dizendo-me o quão precioso eu era e me concedendo um amor com o qual nunca fui proporcionado antes.
Quando meus olhos iam de encontro com os dele, tudo o que eu via era... um castelo deslumbrante de ouro, que me cegaria caso eu não desviasse o mais rápido possível. Em toda a minha vida, eu nunca vi algo tão brilhante.
... E quanto a Messias? Como ficava a missão de ser preenchido por santidade?
Deixar de lado o meu dever para me entregar a algo passageiro era um erro. Esses sentimentos, mesmo que nutridos, seriam incapazes de dar frutos. Não havia como estarmos juntos.
Eu me sentia pequeno e sozinho, desgastando-me às cinzas. Derrubei um oponente atrás do outro, apenas para impedir que esse presente momento se derramasse entre os meus dedos.
Se o passarinho voasse pela janela outra vez, eu perderia tudo. Eu sempre sou abandonado no fim. Se eu não o deixasse guardado dentro da caixinha, Terumichi também me abandonaria.
Em um sonho, eu caía.
Voando pelos céus, eu me aproximei demais do Sol Sagrado e as asas que me sustentavam se desfizeram, pluma por pluma. Eu tentava me agarrar a algo, quando só havia eu, e eu.
Em minha tolice, fui mergulhado em um mar que me absorvia em direção às profundezas. Eu afundei, até a luz solar sumir, e eu não mais poder distinguir o que era cima ou baixo.
No que minhas costas tocaram o fundo, vi-me no passado; o mesmo breu do qual eu não podia escapar. Era calmo, até confortável. Agora, já era possível respirar. Eu devia ter me habituado.
Porém, havia mais alguém ali, soluçando ao meu lado. Era a criança que fui.
Pensando bem, talvez eu fosse igual ela até os dias de hoje, e o homem adulto que me tornei não passasse de um fingimento. Eu sempre estive sangrando, revivendo o desespero que ela sentiu de novo e de novo.
Não havia alguém que eu quisesse me tornar, nem um mundo com o qual eu me importasse de verdade. Eu era sozinho. Quando jovem, me forcei a acreditar no meu altruísmo pelo bem do meu próprio ego.
Desde o início, meu Messias era uma fraude. Ele não tinha o poder de salvar ninguém.
Tudo o que eu desejava era que aquela voz me encontrasse neste lugar. Que ela continuasse a chamar pelo meu nome, fluindo através de mim, preenchendo a lacuna que existe no meu coração.
Se isso não durará para sempre, eu quero ao menos te proteger com o que me resta. Então, por favor, não vá. Não me deixe. Apenas olhe para mim, e... mesmo se eu morrer, eu vou ficar bem.
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