Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 20: O Anjo

— Eu sou... precioso pra você, nomo Rhabeh?

Atônito com meu questionamento, um sacerdote alto, coberto por robes brancos que o envolviam da cabeça aos pés, afagou minha cabeça.

— Mas é claro, Hector — respondeu por trás de sua máscara. — Você é precioso para todo o povo de Vertumnus. Eles ainda não são capazes de ver isso, pois és jovem. Só tens seis sóis. Mas, quando fizeres o bem pelo mundo, serás recompensado. 
— Recompensado?
— Sim. E daí em diante, você será o mais precioso de todos.

A cada batida das pedras contra minhas costas, a dor se perdia entre meus grunhidos.

Eu precisava acreditar no que o nomo Rhabeh dissera. Que, um dia, quando menos esperássemos, as pessoas nos veriam de outra maneira. Nós seríamos merecedores de alguma coisa.

Eu prometi isso ao meu irmão, a quem protegi naquele dia.

 Fugiens III, “MATERIAE HECTOR” 

O Sol raiou no horizonte, e os cidadãos mascarados se dispersaram. A mínima exposição à luz do dia os incomodava e os fazia arder como se pegassem fogo. Em pouco tempo, as ofensas cessaram.

Encolhidos na sarjeta, eu e Kosmo nos abraçávamos. Enquanto ele chorava e pressionava as mãos sobre os meus machucados, tentei levantá-lo e levá-lo para casa antes que a polícia nos apreendesse.

Os únicos seres humanos em Vertumnus com peles resistentes à maldição da luz solar éramos eu e ele.

Éramos gêmeos, espelhos um do outro. Tínhamos o mesmo rosto, a mesma altura e as mesmas características físicas. O que nos diferenciava era a cor dos cabelos.

Ao retornarmos à abadia, onde os sacerdotes nomos cuidavam de nós, levamos uma bronca. Mas eu insistia que aceitássemos qualquer punição, qualquer castigo, juntos.

Fomos criados isolados de tudo e de todos, e isso fazia meu irmão se sentir solitário. De vez em quando, ele desobedecia às ordens para ir ver as estrelas no observatório da cidade — e eu, é claro, ia atrás para vigiá-lo.

Só que, nessa ocasião, ele demorou demais e foi pego descaracterizado.

Por sua condição, as pessoas se apavoraram. Para elas, ele era uma aberração forasteira que fugira de outra cidade — uma criança oriunda de espíritos malignos —, levando o infortúnio e o declínio aos lugares puros.

Isso não era verdade. Kosmo não era uma aberração, e não trazia infortúnio nem declínio. Por isso, quando o arrastaram até a praça e o apedrejaram, eu não pude apenas assistir. Eu quis estar com ele.

— Por que você me protegeu, irmão? A culpa é minha. — Ele mancava, apoiado em meu ombro. — É por causa desses cabelos brancos! Se você ficar comigo, só vai se machucar também!
— Por que você me protegeu, irmão? É culpa minha. — Ele mancava, apoiado em meu ombro. — É porque eu tenho esses cabelos brancos! Se você ficar comigo, você só vai se machucar também!
— Kosmo, você lembra da história que os nomos nos contaram uma vez?
— Que história?
— Sobre um rei de uma terra distante, que abandonou o filho porque ele nasceu com os cabelos brancos! E aí, um grande deus-pássaro criou a criança, até que ela cresceu e voltou como um dos maiores reis de todos! ... Huuh, qual era o nome dele mesmo...? 

Mesmo sabendo que todos o odiavam, Kosmo não suportava ver os outros em sofrimento. Ele era gentil. Talvez eu quisesse ser como ele — e por isso, sempre tomava seu partido nas discussões ou quando se metia em apuros.

Tudo o que fizessem a ele, também teriam que fazer a mim. Mesmo que nós dois fôssemos feridos, ele era meu único irmão. Minha única família neste mundo.

E, apesar de serem muito rígidos conosco, os nomos nos amavam.

Para eles, nós éramos os “Escolhidos pelo Sol”. Nascemos sob o destino de salvar a humanidade do Declínio que se alastrava além das muralhas. Não tínhamos pai nem mãe, pois fomos criados por deus.

Fomos educados e treinados para sermos os heróis ideais. No ano em que fizéssemos dezoito sóis, partiríamos em uma longa viagem à Torre dos Filósofos, o lugar onde alcançaríamos o resplandecente Ícaro.

As escadas se ergueriam além do Sol Sagrado, e os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria se abririam. Além deles, haveria uma miríade de flores e frutos cercando a habitação do Pai de Todos os Milagres. Um castelo ornado em ouro puro.

Por mais que só um de nós, no caso, eu, pudesse chegar até lá, Kosmo continuaria comigo, como sempre fez. Ele era minha companhia. Podíamos até brigar às vezes, mas ninguém era mais importante para mim do que ele.

Após cumprirmos a missão, voltaríamos para Vertumnus e mostraríamos nossos feitos. Então, seríamos recompensados e respeitados por todos.

As pessoas não atirariam pedras. Elas nos cobririam com roupas caras, presentes e joias de todas as cores. Não nos condenariam. Pelo contrário, diriam um montão de palavras bonitas, para mostrar o quanto éramos apreciados.

Para isso, só precisávamos fazer por merecer.

ᛜᛜᛜ

Os meses correram, e a distância entre nós cresceu. Kosmo, que sempre brincava comigo, começou a andar com os sacerdotes e aprender coisas das quais eu não fazia ideia.

Tornou-se tão diferente que nunca mais quis saber das estrelas. Ou se fechava na biblioteca com suas pilhas de livros e pergaminhos, ou ia ao ateliê da abadia consertar relógios.

— Nomo, por que o Kosmo ficou desse jeito?
— Que jeito?
— Por que ele mudou? Ele não era assim! Nem veio comemorar nosso aniversário comigo. Parece até que não gosta mais de mim! 
— ... Esqueça o seu irmão, Hector. Ele não é como você. Não deixe que ele se torne mais um obstáculo no seu caminho. Entendeu bem?

No ano em que completei sete sóis, aconteceu o dia da cerimônia tão aguardada.

Atrás de mim, as pesadas portas do Arcabouço das Profecias se fecharam com um ruído alto e desconfortável. Tochas se acenderam no escuro, revelando gravuras que representavam o nascimento do mundo e a história do reino dos homens.

Desde os modos de vida dos povos antigos — os precedentes da catástrofe — até a ira do Sol Sagrado, a grande cisão e a queda do Filho de Trismegistus ao abismo. E, por fim, Ícaro, portando a chave miraculosa para salvar a humanidade.

Eu não conseguia tirar os olhos de sua figura. Um dragão nascido com duas cabeças, quatro braços, duas pernas e uma pélvis, nas sacras escrituras chamado de “Kush’padme”.

Na verdade, esse nome não se referia a um único ser, mas à junção de dois: “Koshmayah” e “Padomektah”, que em nossa língua significam “preenchido” e “vazio”.

Kush’padme eram irmãos gêmeos que compartilhavam o mesmo corpo. As Crianças-Dragão, que nasceram de parto normal do ventre de um deus sem nome, em união com o esperma de uma deusa sem nome.

Não se sabia de onde esse símbolo surgiu ou o que significava para o velho mundo, mas sua emanação era descrita como a raiz do conceito de Ícaro, o salvador alado.

Para obter a glória vindoura, era necessário um coração vazio que pudesse ser preenchido pelo divino. Em outras palavras, um irmão de ouro que se faria inteiro por meio da dissolução do irmão de carne.

Quando éramos bebês e os sacerdotes nos acolheram, recebemos os nomes “Kosmo” e “Hector”, derivados da etimologia de Kush'padme.

Éramos as encarnações dessa entidade cósmica conjunta. O destino que nos foi concedido ao sermos abandonados estava escrito naquelas paredes, e ele se cumpriria, definitivamente.

— Entrai, Padomektah.
— Sim, vossa eminência.

Atendi ao chamado do grão-mestre nomo e dei início ao último rito de iniciação. O grande pergaminho do abutre se desenrolou até meus pés nus, e sobre ele caminhei, deixando pegadas de tinta preta.

O ar me faltava, e os arredores pareciam cada vez mais apertados e sombrios. No fundo daquele poço tampado, só havia eu e a luz de uma vela, à qual meus olhos deveriam se manter fixos até o fim.

... Tudo bem. Eu estava pronto. Eu era digno. Meu único desejo era livrar meu povo da fome, da sede e da doença. Eu queria protegê-los de toda tribulação. Eu só precisava manter a calma.

Os ossos das minhas costelas se contraíam, rangendo uns contra os outros. Uma pressão insuportável. Meu coração batia tão forte que parecia prestes a ser arrancado por trás.

Mas o que desabrochava das minhas costas, dilacerando a pele como papiro molhado, era um par de asas recém-nascidas, com plumas da cor do bronze.

Doía. Doía demais — e piorava a cada segundo. Era pior do que a dor das pedradas, e eu não conseguia fazer parar. Eu gritava, pensando que alguém viria me acudir, mas ninguém veio.

Quase sem fôlego, fiz ainda mais força para esticá-las, pouco a pouco. Foi quando minha visão turvou, meu equilíbrio se desfez, e dei com a bochecha numa poça vermelha.

N-não... Eu precisava de forças para continuar.

Por favor, deus, dê-me forças para manter os olhos abertos diante da chama da vela. Se eu não cumprir com a cerimônia, eu nunca... eu nunca serei merecedor de—...

O PERGAMINHO DO ABUTRE

ORATORIA I/L – AURORA CONSURGENS I

As boas novas vêm ao MUNDO DOS HOMENS.
A ESTRELA DO AMANHECER está comigo.
Diz-se que sou preto e branco, amarelo e vermelho —
então, se queres a CURA, dá ouvidos ao que digo,
pois minhas palavras não vêm de falsa sabedoria.

Venho dos confins da CORRENTEZA ETERNA
a RETRIBUIÇÃO que pune e corrói a HÚBRIS.

Não sejas como o tolo que anda sem os pés.
Veste a MÁSCARA e abandona teus DESEJOS.
Traz o CÁLICE VAZIO para ser PREENCHIDO,
e, diante das portas da TORRE DOS FILÓSOFOS,
anuncia o ABRE-TE, SÉSAMO.

ORATORIA II/L – AURORA CONSURGENS II

Ao mais belo e poderoso entre os heróis:
sobe ao ANFITEATRO DA ETERNA SABEDORIA.
Atende ao chamado de RUDOLPH DAS ROSAS
e compromete-te ao FILHO DE TRISMEGISTUS.

Este possui em si a CHAVE.
Com ela, destranca o JARDIM e regozija-te do ÚNICO DESEJO.
Alcançai o resplandecente ÍCARO MESSIÂNICO.

Na ESCURIDÃO sinistra e na LUZ gloriosa,
bate tuas asas até o limiar do ETERNO AMANHECER.
Sê o OURO que desfaz a CARNE
e restaura a DIGNIDADE dos teus ancestrais.

ESCOLHIDO PELO SOL,
a CORTE DOS HERÓIS aguarda tua chegada.
Nas profundezas do ABISMO, os PÁSSAROS têm fome e sede.

Segue, pois, os mandamentos que aqui serão descritos,
e perdurará o REINO pelos séculos que virão.
Em nome da TEMPESTADE, do PERCUCIENTE
e da DESTRUIÇÃO DOS HOMENS.

ORATORIA III/L – EXITUS DESPERATIONIS

(...)

ᛜᛜᛜ

Era como se não houvesse nada dentro de mim — nem sangue, nem carne, nem ossos. Mas, no instante em que fechei os olhos para coçá-los, lembrei-me do poço e da chama da vela.

Um espasmo súbito abriu minhas pálpebras, e comecei a gritar e chorar. Os nomos vieram pela porta e me seguraram firme, dizendo que segui com o rito até o fim, e que a cerimônia foi um sucesso.

Não sei até que ponto isso era verdade.

Lembrava-me vividamente da dor e da agonia. Eu havia desbloqueado em meu corpo o mais temido protótipo bioalquímico remanescente da antiga era: o Homúnculo, as Asas de Simurgh.

Mas, mas... se eu fracassei, tinha que tentar de novo. Tudo bem começar do zero, desde que valesse a pena mais tarde. Foi o que disseram, não foi? Que, se eu fizesse por merecer, eu seria recompensado!

Se eu não tentasse, ninguém iria olhar para mim. Ninguém ia precisar de alguém como eu. Todo mundo ia me abandonar! Ninguém nunca iria me encontrar naquele lugar escuro...!

— Não!!

Minhas asas se abriram, empurrando meu irmão no chão do nosso quarto e sujando tudo com o meu sangue.

Nos braços, eu carregava uma caixa onde piava um passarinho ferido do qual cuidamos. Naquele dia, ele estava bom o suficiente para voar, e Kosmo pretendia devolvê-lo à natureza.

— Fui eu quem viu ele primeiro! — gritei, com as bochechas molhadas de suor e lágrimas.
— Devolve, Hector! Ele tem que voltar pro verdadeiro lar dele!
— Não, não, não! Eu o carreguei até aqui! Ele é meu! Só meu!
— Me dá isso, seu egoísta! — Ele avançou pra cima de mim, tentando tomar a caixa das minhas mãos, mas eu relutei.
— Não, para! Sai de perto de mim! Eu odeio você!!

Nós deixamos o objeto cair, e o pássaro fugiu pela janela mais rápido do que pude alcançá-lo.

Quando ele foi embora, eu já não sabia se chorava por perdê-lo ou pela dor em minhas costas. Deixando-me levar pela ira, tentei estrangular meu irmão, mas os sacerdotes nos apartaram e decidiram cortar nosso vínculo.

— Por que fez isso com ele, Hector? — questionou o nomo Rhabeh, no confessionário da igreja.
— Porque ele tirou o que era meu de mim.
— Mas você entende que você poderia ter machucado ele seriamente? Ou até...
— Ah, fala sério. Eu não ia matar ele, nomo. Só ia ensinar a ele uma lição.
— Se sente vazio, Hector? — indagou.

Em choque, nada respondi. Apenas continuei a fitar aquela máscara inexpressiva.

— Você queria o passarinho para preencher o vazio dentro de si?
— Não sei.
— Se o que sente é o vazio, aceite-o como parte de você. Lembre-se do segundo mandamento: alheia-te de tudo o que existe e condena os amores mundanos — explanava. — Você não é apenas parte de Kush’padme, mas também de Ícaro, e porta as asas que nos salvarão. Você fará com que nossos corpos não queimem mais à luz do dia. 

A morte e a miséria encobriam o mundo. As terras agrícolas perdiam a capacidade de cultivo, a caça e a pesca tornavam-se escassas, e os mais pobres precisavam ser acolhidos pela abadia.

As coisas pioravam a cada dia, e os mausoléus se enchiam de estátuas, vítimas do Declínio.

Foi devido a essa maldição que a prática da alquimia foi proibida há tanto tempo. Apenas alguns ainda a utilizavam às margens do Estado, como criminosos, contrabandistas... e eu, amparado pelos nomos.

No meu caso, violar o tabu era necessário, a fim de que o destino se cumprisse com êxito, fazendo de mim um guerreiro alado de quatro membros superiores.

O ouro nunca me afligiu, mesmo após tantos anos. Minha sobrevivência era um milagre — um motivo de louvor — e comprovava minha posição como o Escolhido pelo Sol, aquele por quem meu povo esperava.

Por ora, eles ainda não podiam me reconhecer como tal, mas eu me comprometi com eles e aprendi a não esperar mais nada em troca. Se Deus não viria salvá-los, ninguém o faria — senão eu.

A espada que recebi ao completar oito sóis, Cálice, era minha única companheira em batalha. Ela simbolizava o que deveria ser o meu coração: um recipiente oco. E ele era mais belo e forte dessa forma.

Um dia, eu a devolveria com um beijo ao Filho de Trismegistus, uma existência tão vazia quanto a minha. E então, sobre mim, seria vertido o sangue e o vinho... e Ícaro, ou Messias, como chamavam os estrangeiros.

Os outros heróis, os enroupados órfãos que também cresceram isolados no monastério, não eram servos. Eles não viajariam conosco à Torre. O propósito deles resumia-se a ser parte do meu treinamento físico e moral.

Tomando controle sobre a lâmina prateada e a aerodinâmica, arranquei-lhes as máscaras centenas, milhares de vezes. Aos catorze sóis, eu havia me tornado um espadachim valoroso.

A essa altura, eu controlava a saída das asas de forma mais segura e limpa, permitindo-me abri-las até em momentos de risco. Não que isso amenizasse a sensação — muito menos ao guardá-las.

Nesse mesmo ano, reencontrei meu irmão.

Nossa relação já não era a mesma. Ambos mudamos, e nos reunimos apenas em nome da profecia. Viria o tempo em que eu me tornaria uma existência una, e isso não o incluía.

Os dias em que vivemos juntos, dormindo abraçados, brincando, passeando pelas trilhas seguras das florestas... eu abandonei tudo isso, assim como tudo o que ele significava para mim.

Caso eu não extinguisse meus sentimentos por ele, tratando-o como só mais um, tamanha traição aos mandamentos me traria ruína. Um segundo fracasso meu não seria perdoado.

Partimos antes de completarmos dezoito sóis. Seguimos por uma rota que levou cem anos para ser construída. Era um canal que perpassava as montanhas das extremidades do continente.

A segurança era garantida, e chegamos à Torre em menos tempo do que o esperado. Tínhamos ração e água de sobra na carroça. A real questão era se durariam até o destino.

— Hector — chamou meu irmão, num tom diferente do usual. — Eu preciso que saiba de uma coisa.

Kosmo, a partir desse momento, passou a dizer coisas estranhas.

Falou sobre a “verdade” de Vertumnus, do Filho de Trismegistus e do desejo que nos seria concedido ao alcançar Messias. Conteúdos do Pergaminho do Abutre que jamais haviam me sido revelados, mesmo eu sendo o campeão.

Nada disso fazia sentido. Não, de forma alguma. Se qualquer uma dessas asneiras que ele dizia fosse verdade, então... esse tempo todo, os sacerdotes nomos, o grão-mestre e o meu irmão, todos eles esconderam coisas de mim.

Durante a subida, não nos separamos por um acidente. Eu segui em frente por conta própria, com medo de ser traído por Kosmo.

Eu não podia fraquejar. Não podia me dar por vencido. Eu era Padomektah, e incorporar o vazio era o meu destino. Não importava se sangrasse ao fazê-lo, era preciso matar a preciosidade que me acorrentava para ultrapassar os obstáculos.

Eu rasgaria as minhas costas e retornaria àquele dia fatídico, quantas vezes fossem necessárias.

ᛜᛜᛜ

Às portas do Anfiteatro, eu, o primeiro colocado, fui admitido como o comprometido da Corte dos Heróis. Mas, deparando-me com a cidadela vazia, perguntei-me se havia tomado a decisão correta.

Meu irmão não possuía as mesmas habilidades que eu. Sempre foi o mais fraco, e presumi que, sem mim, tivesse morrido nas masmorras. Que eu jamais o veria de novo. Isso entornava dentro do meu peito como um líquido corrosivo.

... Eu não poderia estar mais enganado.

Por ser o preenchido, Kosmo se cercou de pessoas que o aceitavam e protegiam no meu lugar. Ele era amado por aqueles cujas peles podia ver, cheirar e tocar. Sendo assim, eu já não era necessário.

— Eu entendo se não quiser conversar — disse ele, amuado, por trás da porta que tranquei. — Só me diga como estão suas cicatrizes. 
— Elas estão bem.
— Você as abriu?
— Não.

Eu não precisava de nada, nem de ninguém. E essas emoções de autopiedade e ciúme não passavam de superfluidades; seixos pesando nos meus sapatos.

Tendo-o descartado, não fazia o menor sentido achar que dois estranhos o haviam roubado de mim. Eu apenas não queria nada com eles, nem sequer imaginar suas aparências.

— Há uma falha crítica ocorrendo nesta Corte — disse-me o Imperador, assentado no trono.
— Como assim, “falha crítica”? O que está causando isso?
— O número máximo de desafiantes aceitos na Corte dos Heróis é oito. Oito púlpitos, oito faces, oito formas físicas. No entanto, descobriu-se que um dos convocados compartilha a face e o corpo com uma identidade adicional, antes oculta. 
— Ohhh. Um duplo, é? Interessante.
— Comprometido, a vontade da Correnteza Eterna exige que o primeiro duelo aconteça entre ti e o segundo colocado, obrigatoriamente. 
— Mas se a contagem fechou em oito, qual é o problema?
— Esta é, pois, a causa da falha crítica. As portas estão abertas para um nono participante, mesmo já havendo oito presentes.
— Ora, então feche-as de uma vez.
— Aguarde.

Sons de maquinário. Num apito irritante, uma maçã pulou de seu busto e rolou até meu pé.

— ... Há uma falha crítica impedindo-me de fazê-lo.

Não tinha outro jeito. Minha única opção era lutar contra o segundo desafiante após a chegada do Filho de Trismegistus, cuja existência e natureza genuína ainda eram um mistério.

Canções e teatros reviviam sua história.

O filho pródigo que rejeitou as asas e se sacrificou no abismo pelo bem do reino humano. Seu coração era como uma romã cintilante. Sobre sua cabeça, pairava um sinal misterioso.

Todos o descreviam como um ser além da compreensão, semelhante ao asno papal, e isso nos fazia imaginá-lo como alguma criatura quimérica humanoide ou um santo luminoso.

Porém, tudo estava errado.

Ele era um humano com pele e cabelos de cores diferentes. Minha pele era marrom, a dele, bege. Minhas íris eram azuis, as dele, castanhas. Seu rosto, ao contrário do meu, era repleto de marquinhas.

Em vez de entregar-lhe minha espada, foi ele quem se ajoelhou e me ofereceu o Amaranto, sem mais nem menos. Ele era gentil. Se preocupava com coisas bobas e falava de um jeito engraçado.

Abrir e recolher as asas ainda me causava terror pelo dia da cerimônia. Sempre retornava àquele mesmo instante, coberto de sangue e cera que já era para ter endurecido. Mas, ao fim do sofrimento, havia ele.

Como a pequena chama da vela, ele me envolvia em um leve acalento. Curava minhas feridas, dizia-me o quão precioso eu era e me concedia um amor que jamais me fora dado.

Quando meus olhos encontravam os dele, tudo o que eu via era... um castelo deslumbrante de ouro, que me cegaria caso eu não desviasse o olhar o mais rápido possível. Em toda a minha vida, jamais vi algo tão brilhante.

... E quanto a Messias? Como ficava a missão de ser preenchido por santidade?

Deixar de lado meu dever para me entregar a algo passageiro era um erro. Esses sentimentos, mesmo se nutridos, seriam incapazes de dar frutos. Não havia como estarmos juntos.

Eu me sentia pequeno e sozinho, desgastando-me até as cinzas. Derrubei um oponente atrás do outro, apenas para impedir que este presente momento se derramasse entre meus dedos.

Se o passarinho voasse pela janela outra vez, eu perderia tudo. Eu sempre sou abandonado no fim. Se não o deixasse guardado dentro da caixinha, Terumichi também me abandonaria.

Em um sonho, eu caía.

Voando pelos céus, aproximei-me demais do Sol Sagrado e as asas que me sustentavam desfizeram-se, pluma por pluma. Eu tentava me agarrar a algo, quando só havia eu, e eu.

Em minha tolice, fui tragado por um mar que me arrastava em direção às profundezas. Afundei até que a luz solar sumisse, e eu não mais pudesse distinguir o que era cima ou baixo.

Quando minhas costas tocaram o fundo, vi-me no passado; o mesmo breu do qual eu não podia escapar. Era calmo, até confortável. Agora, já era possível respirar. Devia ter me habituado.

Porém, havia mais alguém ali, soluçando ao meu lado. Era a criança que eu fui.

Pensando bem, talvez eu ainda fosse igual a ela, e o homem adulto que me tornei não passasse de um fingimento. Eu sempre estive sangrando, revivendo o desespero que ela sentiu, de novo e de novo.

Não havia alguém que eu quisesse me tornar, nem um mundo com o qual eu realmente me importasse. Eu era sozinho. Quando jovem, forcei-me a acreditar no meu altruísmo pelo bem do meu próprio ego.

Desde o início, meu Messias era uma fraude. Ele não tinha o poder de salvar ninguém.

Tudo o que eu desejava era que aquela voz me encontrasse neste lugar. Que ela continuasse a chamar pelo meu nome, fluindo através de mim, preenchendo a lacuna que existe no meu coração.

Se isso não durará para sempre, eu quero ao menos te proteger com o pouco que me resta. Então, por favor, não vá. Não me deixe. Apenas olhe para mim e... mesmo se eu morrer, eu vou ficar bem.

ᛜᛜᛜ

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