Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 19: O Desejo

Eu prometi que não os decepcionaria. Me esforcei para mostrar que a conciliação era o caminho ideal, mas... ao testemunhar a cena entre Ganymede e os dióscuros, eu me dei conta do fato que eu não queria aceitar.

Era só uma questão de tempo até essa paz desabar.

Eu escondi isso dos meus amigos. Enquanto aproveitávamos dias tão bons e divertidos, eu os fiz acreditar que as crises passaram, e, como resultado, nenhum deles se preparou para o que estava por vir, muito menos Hector.

Nossos laços haviam acabado de ganhar mais força. Ele se deixou confiar mais em mim e nos outros. E isso mudou. A minha omissão pode ter sido a última pá de terra para o terceiro combate acontecer. 

Enquanto os via lutando, me peguei pensando o impensável: melhor seria se Hector vencesse logo. Eu queria ir para o quarto e dormir. Era como se eu não mais me importasse com a vida do perdedor. Isso se tornou um estorvo para mim.

Quando Hector foi supostamente derrotado, os sentidos voltaram para mim, e eu tive uma sensação que nunca vivenciei antes.

O chão sobre o qual eu pisava parecia ter desaparecido. Até meu comprometido reascender e virar o rumo da batalha, eu havia perdido a motivação para continuar sendo o Filho de Trismegistus.

E no fim, o que eu desejei se realizou. Um milagre aconteceu. Ele venceu.

Às pressas, eu desci as escadarias em espiral que levavam ao fundo do fosso. Quando o vi, ele estava prostrado no chão, sangrando sobre as plumas. Próximo a ele, um cadáver de ouro, e os restos da gaiola arruinada.

Eu enxuguei as minhas lágrimas e me apressei para curá-lo, antes que sua situação agravasse.

Eu-... Eu não aguentava mais isso. Não importa o que eu fizesse, o resultado era o mesmo. O que eu mais queria naquele momento era voltar para casa e esquecer disso o mais rápido possível, mas não dava. Isso era impossível.

Ninguém podia me libertar do papel como o Filho de Trismegistus. Eu era obrigado a ficar ali até a consumação do dia da Correnteza Eterna. Além do mais, se eu não fizesse algo por Hector, quem faria? Se eu o abandonasse, o que aconteceria a ele?

No dia seguinte, uma solicitação de audiência nos tirou o sono da manhã. Quando fui buscar Hector no quarto para o qual voltou após começar a me evitar, as máquinas me informaram que ele havia saído na frente.

No caminho, trombei com Circe e Kosmo, ambos com olheiras arroxeadas. Eles não pareciam estar num bom momento. Nenhum de nós parecia, na verdade, mas achei que fosse bom contá-los a verdade.

— Não se culpe assim — disse Kosmo. — Você está sendo duro demais consigo mesmo.
— Mesmo se você tivesse nos contado, não temos como saber se isso mudaria ou não a situação — continuou Circe. — Digo, o que faríamos a respeito? Seu relato só enfatiza as suspeitas de que os dióscuros o tenham induzido a duelar.
— Eles são sujeitos falsos e insidiosos.
— E Thes? Onde ele está? — indaguei.
— Ele não está nada bem. Viramos a madrugada tentando confortá-lo. Ele... precisa de repouso.
— Será que posso visitá-lo depois?
— Será muitíssimo bem-vindo. Para ser honesta, acho que estamos todos abalados, até um certo alguém que esconde quando sente que outro precisa mais. Certo, Kosmo?

Um olhar distante e triste. Circe foi até ele, e tornou seu rosto na nossa direção.

— O que aconteceu com seu irmão também foi um susto para você. Não sofra sozinho.
— ...
— Eu entendo como está se sentindo, Kosmo — disse, aproximando-me. — Na verdade, o que me dói mais agora é pensar no que Hector está passando. Ele não queria mais lutar. Eu sei disso. E mesmo assim, ele foi jogado para um combate, de repente.
— Isso é verdade. Theseus tem nossa companhia, mas como fica alguém que recusa toda e qualquer aproximação?
— Ele não conversará comigo, mesmo se eu for até ele.
— ... Você realmente se importa com seu irmão, né? — indaguei. — Depois eu vou me acertar com ele. Neste momento, a gente está aqui por você. Você sempre cuida de nós, então deixa a gente cuidar de você.
— Acho que vocês têm razão.
— Mais tarde, vamos passar um tempinho com o Thes. Nós quatro.
— Certo. Se precisar de ajuda com meu irmão, me avise. — Menos ansioso do que antes, Kosmo recobrou o ânimo.

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— O Anfiteatro dá as boas novas! Que comece a audiência da Corte dos Heróis!

Puxadas por aparatos teatrais, cortinas se abriram uma atrás da outra. Os holofotes se acenderam. Afora os nossos e os do Imperador das Rosas, quatro púlpitos encontravam-se vazios — três dos derrotados e um de Theseus.

— Companheiros, — noticiou o senhor Castor de Carmenta, com as mãos atrás das costas —, peço perdão por convocá-los tão cedo.
— O que foi dessa vez?
— Em profundo desterro, dedicamo-nos eu e minha irmã ao luto pela perda de nosso aio. No entanto, memórias de um passado remoto nos assolaram, e chegamos à conclusão de que devemos certificar algo urgente com o Imperador das Rosas, na presença de todos.
— Ohhh? Me admirara que terceiro combate não tenha sido vocês dois eliminando os indivíduos sem sangue azul da concorrência — a senhorita Circe disparou.
— Minha cara bruxa, jamais faríamos algo tão discriminatório. Além disso, Gany era precioso para nós. Nosso pai, o rei de Carmenta, sentirá a falta dele profundamente. Não fecharei os olhos para isso.

Sentirá falta? Não foi ele quem disse que o rei de Carmenta estava morto?

Antes de eu questionar qualquer coisa, Kosmo disparou:

— Não vamos nos delongar em assuntos particulares. Se o que tem para certificar é urgente assim, seja breve.
— Imperador das Rosas! — Um feixe de luz caiu sobre o dióscuro. — Esclareça quanto ao papel do vencedor da Corte dos Heróis.
— É preciso que haja um herói que transcende eras. Um vencedor digno de estar comprometido ao Filho de Trismegistus e de abrir os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria. Lá, residem tesouros preciosos e inimagináveis. Riqueza. Felicidade. Reconhecimento. O poder para operar milagres, inclusive reverter a morte pelo ouro. Alcançar Messias é tornar isso possível.
— Não é a mesma coisa que ele sempre diz?
— É uma mensagem automática.
— Sanou as dúvidas? — o grisalho indagou.
— Sim. Com certeza — respondeu. Em seguida, virou-se ao que estava ao meu lado. — Dito isso, Hector de Vertumnus, estaria o seu desejo dentre os ofertados?
— O quê?
— Pergunto-me se há algo que você quer ter para si, ou uma humanidade que queira salvar. Qual seria a sua decisão se só pudesse escolher um?

As coisas começaram a ficar mais confusas.

O todo-poderoso Messias detinha um poder infinito. Independentemente de quem o alcançasse, o resto do mundo seria livrado do Declínio e todos os milagres do mundo seriam realizados. ... Por acaso entendemos algo errado?

— Explique-se.
— O Messias não é onipotente. — Pollux fez sua aparição. — Ao alcançá-lo, faz-se um desejo verbalizado, ou seja, uma escolha alheia a todas as outras coisas.
— Um... desejo? De onde diabos tiraram isso?
— Quando os campeões se iniciam como heróis, eles são levados ao Arcabouço das Profecias de suas cidades — Castor continuou —, e lá lhes é revelado pelo grão-mestre do sacerdócio o conteúdo do pergaminho do abutre. Foram as memórias desse fatídico dia que... voltaram para nós, mesmo que quiséssemos nos esquecer disso.
— Tenha calma, meu irmão.
— Tudo bem.
— No pergaminho do abutre não há nada parecido com isso — rebateu Circe.
— Porque as versões distribuídas para as outras cidades que não Carmenta e Vertumnus não são originais, mas cópias.
— O quê?!
— Isso mesmo. Elas são adaptações. Não sei dizer se as mudanças em relação ao cânone resultaram da inserção na cultura ou da manipulação das igrejas, mas apenas as duas vertentes em questão seguem as escrituras originais. Há também um pacto de sigilo cuja quebra é passível de apagamento por traição à fé. Permitam-me mostrar a prova física dessa afirmação.

Castor levantou um pergaminho marcado com um brasão de ouro, e quando o fez, Kosmo deu um sobressalto.

— Isso é--!!
— É a versão original do pergaminho do abutre mantido pela igreja vertumnita. Aqui estão escritos os verdadeiros princípios que giram em torno do Amaranto, do Messias e do Jardim de Rosas da Sabedoria.
— V-Você-... Você furtou um pertence meu? Como ousa, Castor de Carmenta?!
— Isso não é seu pertence. O pergaminho do abutre é um patrimônio clerical que não deve deixar o arcabouço em hipótese alguma, o que me leva a crer que um dos irmãos o roubou. Isso conta como um ato de "heresia". Por acaso não temiam as consequências?
— Pelas regras da Corte, é proibida a violação dos aposentos dos outros heróis, e o furto caracteriza uma transgressão ainda mais grave — Hector ressalvou. — Aquele que parece não temer as consequências é você, maldito! Imperador das Rosas, não deixe isso passar impune!

Os olhos do fantoche brilharam, fazendo barulhos parecidos com os de motores e bugigangas. Pouco tempo depois, pararam.

— Foi encontrado um desvio de conduta por parte do desafiante Castor de Carmenta. No entanto, Pollux de Carmenta, que compartilha de seu mesmo corpo, não está envolvida. Uma punição de reclusão física será, então, inválida para com esta.
— E como resolverá isso?!
— O processo está em análise. Em tempo, o retorno será dado.
— Essa tralha colossal...!
— Levar uma informação dessas ao público esquentaria as disputas políticas entre as realezas arcadianas — Castor retomou a vez. — No pior dos casos, os conflitos dariam vazão para guerras, sabotagens, conspirações e perseguições às caravanas. Levando isso em consideração, ocultá-lo reduziria os danos, e também a concorrência. Mas...
— Mas...?
— Creio que não foi só para isso que serviram as versões adulteradas. É possível assumir que, desta forma, as igrejas de Vertumnus e Carmenta seriam as únicas capazes de criar um vitorioso. Um campeão diferente dos outros, que soubesse como jogar esse jogo.
— Sim. É isso mesmo. E daí?
— Espere, então é verdade? — Circe grudou ao púlpito, desacreditada. — Imperador, averigue agora a veracidade dessas informações!
— Não há nada por ser retificado.
— ... Então é isso? Um desejo? Isso é o Messias? Você não disse nada para mim e Theseus enquanto discutíamos. Tocamos nesse tópico várias vezes, e você... você ficou calado para a nossa ignorância, Kosmo!!
— Suponho que eles pretendiam trazer a verdade à tona em um momento oportuno, cara bruxa. Afinal, há uma razão pela qual teriam a posse do pergaminho. E para terem estendido isso até o momento, é porque esconder as informações os beneficiou de alguma forma. Ou, porque constataram que isso traria mais perdas do que ganhos. Será que acertei, irmãos de Vertumnus?

Algo me soava estranho.

Com a mentira escancarada do senhor Castor, ficou claro que se tratava de uma tentativa para nos jogar uns contra os outros. Mas onde ficava a senhorita Pollux nessa história?

Até onde eu entendia, dependendo do momento, eles podiam ou não compartilhar dos sentidos. Mas, no dia da discussão, ela notou a minha presença quando ouvi sobre a morte de seu pai.

Não era mais lógico avisar ao gêmeo para mudarem um detalhe tão bobo em seus planos, a fim de que não fossem pegos na farsa?

— Tem algo a dizer, Filho de Trismegistus? — perguntou a própria, atida ao meu encarar indisfarçável. — Se fizermos como você e o guerreiro de Salacia pretendiam, deixaríamos o peso de um desejo nas mãos de outrem. Suas opiniões deveriam ser imparciais. Se você apoiou a ideia em cumplicidade para com o comprometido, isso mudará minha visão sobre você.
— Terumichi Kinjō não tem nada a ver com isso. Você, Pollux de Carmenta, é a real cúmplice na violação da integridade desta Corte!
— Não responsabilize minha irmã. Enquanto estamos com as “cortinas fechadas”, como chamamos, apenas um de nós tem controle sobre o corpo. Eu assumirei a responsabilidade pelos meus desvios mais tarde.

“Cortinas fechadas”, huh? Agora eu entendi. Obrigado, senhor Castor. Você me deu uma informação valiosa. Eu estou começando a entender aonde você quer chegar.

Sem vergonha alguma, ele desceu o púlpito, dirigindo-se ao centro da tribuna e deixando o pergaminho sobre um sustentáculo.

— Eu, Castor de Carmenta, devolvo o pergaminho do abutre a Kosmo de Vertumnus, e peço perdão por minha conduta falível.
— Não se curve perante mim. Eu nunca daria o meu perdão a você, cretino.
— É isso que tinha para dizer, senhor Castor? — indaguei. — O que espera ganhar com isso?

Com um sorriso tão pérfido que eu era incapaz de crê-lo, ele retornou à posição e ajustou o microfone.

— Não é sobre o que eu tenho a ganhar, mas sobre um desejo que não pode ser concedido a alguém que não pedirá pelo ideal. Eu acredito que o seu comprometido, ó, Filho de Trismegistus, já tem um em mente. Eu gostaria de saber qual é.

O vitorioso deu um passo em frente, com o peito estufado de orgulho.

— Desafie-me à Corte, se está descontente.
— Não nos dará a mínima satisfação, ou uma garantia de que pedirá pela salvação das nossas terras?
— Não devo nada a você. A nenhum de vocês. O meu coração está com o meu povo, e com todos os que sofrem debaixo dos nossos pés.
— Você está cometendo um erro. Ainda que você vença os duelos, os ferrolhos dos portões do Jardim de Rosas da Sabedoria não se destrancarão para quem resguarda anseios fora o Messias. Você entende que sem quem cumpra piamente esse papel, o mundo sucumbirá à Correnteza Eterna?
— É lógico.
— Não, não entende — riu. — Uma paixão ardente vem te extraviando do teu destino de solidão. Preenchendo-te, quando deverias ser vazio. É pelo Filho de Trismegistus que desejas. Estou enganado?

Os olhares perplexos direcionados a Hector o oprimiam.

— Poupe-me do ridículo. Sim, eu tenho um desejo. O futuro da humanidade e de toda a vida em Arcadia depende dele. Acreditem ou não no meu julgamento, eu não abrirei mão do meu destino, nem de Messias. Nunca.

Apagaram-se as lâmpadas. Feito muralhas, as cortinas se fecharam para nós.

Ao encerrar da audiência, foi decidido que o senhor Castor permaneceria recluso — com as cortinas fechadas — por alguns dias. A senhorita Pollux, inocentada por não ter envolvimento com a invasão da propriedade alheia, seria a única a controlar o corpo.

Eu nunca conheci alguém que eu soubesse ter mais de uma identidade, ou “alter”. Lembro-me de ter lido sobre o transtorno dissociativo de identidade na internet e em livros de psiquiatria, mas não procurei me aprofundar.

O que é fato, a Corte dos Heróis os reconhecia como entidades separadas, mas apresentava limitações para puni-los. Se as coisas seguissem nesse ritmo, o senhor Castor voltaria a usar a inculpabilidade da irmã para se safar.

Já que Ganymede, Achilles e Patroclus se foram, nós éramos os próximos alvos.

Foi quando um calafrio percorreu a minha espinha. Esse era seu plano desde antes da minha chegada. Ele esteve orquestrando a sequência de combates, e eu precisava agir mais rápido do que ele se quisesse proteger meus amigos.

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EMBLEMA XLIII
Escuta às palavras do abutre, que não vêm de falsa sabedoria.

“No alto da montanha está o abutre que proclama sem cessar:
diz-se que sou branco e preto, amarelo e vermelho, e eu não minto.
O mesmo é com o corvo, que se habituou a voar sem asas.
Eis que, na escuridão sinistra, e na luz gloriosa,
este e aquele serão a peça fundamental da tua arte.”

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Quando eu e Hector nos conhecemos, ele era um sujeito bem diferente.

Ele criava barreiras entre nós, pois temia que emoções mundanas o desvirtuassem do destino ao qual se dedicou. Seu isolamento das pessoas ao seu redor era pelo bem de ser vazio.

Não ter com quem compartilhar seus verdadeiros sentimentos o causava sofrimento. Então, eu quis ser próximo dele. Eu quis amá-lo, e ser alguém em quem ele pudesse confiar.

Porém, segundo as informações contidas no tal pergaminho do abutre, se ele permanecesse refém desses sentimentos, não sendo o vazio, a performance de seu Messias estaria prejudicada.

— Hector. Hector! Poderia andar um pouco mais devagar? — Já sem fôlego, eu acompanhava sua marcha galante, até pararmos sobre a ponte da cascata.
— O que você quer?
— Eu acho que Castor está mentindo sobre algo.
— Você acha? Eu tenho certeza, e não dou a mínima. Eu resolvo isso dando nele uma boa surra — disse, dando-me as costas.
— Ainda não acabei.

O segui, de novo, e o segurei pelo pulso.

— Você está tentando me evitar, m-mas eu sei que não é isso que você quer. Se o que há entre nós vai se tornar um empecilho pra você, é melhor conversarmos um com o outro, como fizemos da outra vez.
— Da outra vez, vocês armaram uma trégua, e ela fracassou. Era óbvio. Eu não sei nem por que tentei acreditar nisso.

Ouvi-lo falar isso doeu como se algo pontiagudo atravessasse o meu peito.

— E-Eu também sabia que não daria certo. Mas eu fiz isso pensando em você. Em nós. Eu tentei achar uma maneira de salvar você dessa matança injusta.
— Eu não preciso de nada como uma salvação justa.
— Você vai acabar morrendo, Hector.
— Eu não vou morrer. Se um vier, eu vou derrotá-lo. Se dois vierem, derrubarei ambos em um golpe só. E quer saber? Se minha vida te importa tanto, é bom que não me perturbe caso eu volte a usá-las.
— Eu não te pedi para lutar sem as asas. Desde o segundo combate, eu vi a falta que elas faziam.
— É mesmo, é? Sendo assim, está decidido. Não há mais o que debatermos.
— ... Por que está agindo assim comigo, Hector? Você está tentando me machucar? Esse... não parece você.
— Esse sou eu. Eu sou o herói de Vertumnus. O Filho de Trismegistus pertence a mim. E ninguém além de mim terá você.
— A mim? E quanto ao Messias?
— Q-Quem diria, agora você também veio com essa...! — Brusco, ele agarrou pela minha gola, quase me erguendo no ar. — Escuta aqui, você não sabe de nada, nada sobre mim!!
— Hector-...
— Não me venha falando como se se fosse o epítome da razão e tivesse todas as respostas do mundo, quando não tem nada!! Você não me conhece! Você não sabe pelo que eu estou lutando!!
— Tire as mãos de mim, agora — ordenei, com a minha paciência esgotada. Só ao assim se deu conta das próprias ações e voltou um passo, em remorso. Dando meia-volta, eu fugi e o deixei sozinho à sombra do Arco do Triunfo.

Te peguei, Hector de Vertumnus.

Você não tinha como renunciar a algo que seu coração não controlava. Ora, todos carecemos de algo para nos preencher e nos fazer inteiros. E quanto mais negar esse fato, pior fica.

Era como olhar para mim mesmo num passado nada distante. Afinal, eu também estive no lugar de depender da aprovação das outras pessoas. E é por isso que, como um tonto que anda vendado em direção a um precipício, eu quis salvá-lo.

Hector, a verdade, sem falsidade alguma, verdade absoluta, era que eu não me importava com você, mas com o quanto eu me sentia responsável por você.

Hahahaha. Estou certo de que o Filho de Trismegistus pensou algo similar a isso. ... Ooops. Eu não devia ter fugido do roteiro tão cedo. Foi um erro narrativo meu. Mil perdões!

Era uma vez, dois jovens aventureiros — Rotceh e Ihcim — que adentraram um bosque governado por uma águia apavorante. Era o Bosque Dourado, ao sudeste de sua cidade natal.

Rotceh, um corajoso guerreiro, foi encarregado de matar a águia com sua espada de ouro. Já seu amigo de infância, Ihcim, era tristonho e medroso, e buscava pela maçã mística capaz de trazer seu falecido avô de volta à vida.

Para realizarem suas tarefas, era preciso seguir apenas uma regra: a de jamais se separarem.

Juntos eles desbravaram a escuridão das árvores, derrubando os mais perigosos monstros com a força de um, e desvendando os desafiadores labirintos e enigmas com a inteligência de outro. E por fim, apanharam a formosa maçã.

Contudo, Ihcim se deu conta de que o companheiro não tinha a menor intenção de retorná-lo à saída. Ora, ele tinha o dever de caçar o grande pássaro, decepar sua cabeça e levá-la como um troféu para tornar-se o orgulho de seu povo.

Não havia como voltar atrás, não depois de ter chegado tão longe!

Eles seguiram procurando, dando voltas e mais voltas pela floresta infindável. Os dias se passaram, e não houve nem sinal da águia. “Nesse ritmo, quedaremos aqui para sempre!”, Ihcim pensou. A cada momento, a dor de sua família era prolongada.

Rotceh o considerou um covarde, e os amigos que costumavam ser como a outra metade um do outro optaram por separar-se. Mas o que eles não sabiam era que não havia apenas uma águia, e sim duas. Sozinhos, tornar-se-iam alvos fáceis para suas garras.

Alas, eles foram rapidamente capturados, e seus gritos desapareceram à calada da noite. Rotceh teve o coração bicado e rasgado. Já Ihcim foi espremido até parar de respirar. Eles nunca retornaram à cidade natal, perdurando as promessas incumpridas.

Porque o que antes era unido foi separado — assim como o fogo da terra e o sutil do denso —, todas as trevas do mundo se reuniram para castigá-los. Quanto ao porquê de existir tal regra? Ninguém sabe, ao menos ninguém vivo. E ninguém há de saber.

Portanto, jamais separe o que deveria estar junto.

Vá, Terumichi Kinjō. Mais do que tudo nesse mundo, eu preciso de você. Lasque a casca do ovo que transborda em sangue azul de topázio. Revele para mim tudo o que há dentro dele.

Comporte-se e brinque no parque de diversões que preparei com tanto carinho. Leve todos com você.

Eu sou apenas um contador de histórias, nascido na montanha onde habita a deusa da profecia. No dia de hoje, deixo que Tragédia e Comédia descansem. Até elas merecem “férias”.

Oh, e não se incomode com minha irmã. Ela é tímida.

— Eu não tenho interesse em me envolver em seus espetáculos. Não vejo mais justiça ou honra nas palavras que saem da sua boca, Castor.
— Há mais do que meras ilusões em jogo, Pollux. O que nos espera é o poder inimaginável que transcende a humanidade! E eu? Eu sou ciumento. Só de pensar em alguém além de mim se embebedando dele, fico looouco de tanto ciúme!
— Eu não te conheci ontem. Tanta obsessão, por Terumichi Kinjō?
— Se não por ele, diga-me, por quem?
— Seu Ícaro das asas arrancadas, ou melhor, o Ícaro cujas asas você gostaria de arrancar: Hector de Vertumnus.

Não contive o riso. É, você acertou em cheio, Pollux. Não esperava menos.

No cair das cortinas, retornamos ao nosso jardim em miniatura — o único lugar onde podíamos nos ver mutualmente sem a necessidade de um espelho. Esse era um espaço só nosso.

As portas para um mundo luminoso encontravam-se escancaradas, esperando por mim. Era o mundo fechado onde eu passaria o meu período de confinamento.

— Por ele ter conseguido o prêmio antes de mim, eu cheguei a pensar: oh, não, eu sentirei inveja! Mas eu não senti. Ele não é nada mal. Quer dizer, ele é perfeito. Ele é tolo, quente e saboroso. Estou ansioso para tê-lo num lugar onde eu, e só eu possa apreciá-lo.
— Me pergunto até onde pretende ir com isso. Quer mais dias de reprimenda?
— Já terminei os preparativos. Não vou demorar. Ao meu retorno, eu serei a águia de Rotceh, e você a de Ihcim.
— Eu quero criar uma rã de estimação.
— Em Carmenta, te darei uma de presente.
— Ribbit.
— Você não sabe uma onomatopeia para imitar águias?
— Caw caw.
— Isso é um corvo.

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