Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 18: A Luz

Muitas vozes recitaram um trecho misterioso:

— Esmagai a forma refletida no espelho, para que se dê à luz o cálice ungido em ouro. Em nome da Correnteza Eterna; a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens!
— O Anfiteatro dá as boas novas! Que comece a audiência da Corte dos Heróis!

As portas do tribunal se abriram por detrás dos cortineiros móveis, e um holofote caiu sobre a solene figura o Imperador das Rosas. Um rei sem pele, carne, sangue ou ossos; estes substituídos por flores, frutas, legumes e verduras.

— Considerando que nenhum de nós cinco solicitou esta audiência, presumo que tenha sido um de vocês três, carmentinos — apontou a bruxa de Apollodorus, direcionada a nós.
— Oh, mas que acusação injusta — respondeu o dióscuro. — Eu não lembro de ter solicitado audiência alguma, a não ser que minha irmã o tenha feito enquanto eu-...
— O que você quer, Castor de Carmenta? Sabemos que foi você. Desembucha de uma vez! — Kosmo de Vertumnus engrossou a voz.
— Céus! Eu nem terminei de me explicar! Injusto, muito injusto!
— Kosmo, tenha calma. ... Pessoal, nós acabamos de chegar. Que tal se dermos espaço para cada um falar?

Enquanto discutiam, eu e o Filho de Trismegistus mantínhamos o olhar fixado um no outro. Levando em conta sua cara de bebê chorão, talvez ele soubesse a resposta para as dúvidas deles.

Em pouco, exclamei:

— Imperador das Rosas! Em nome da Correnteza Eterna, eu, Ganymede de Carmenta, desafio o comprometido, Hector de Vertumnus, a um combate!

Os olhares se voltaram para mim, e um moroso silêncio pairou.

— G-Ganymede... — o ruivo, Theseus de Salacia, murmurou assustado. — P-Por quê? E o consenso? Nós concordamos com o tratado de trégua, não foi?
— Eu não lembro de ter concordado com tratado nenhum.
— Mas-...
— As ordens de Castor e Pollux não valem aqui. Eu sou um desafiante da Corte dos Heróis e, pelas regras, possuo o total direito de desafiar o comprometido dada a minha vontade. O tratado não passa de um ato simbólico que vocês inventaram.

Aturtido com a minha franqueza, ele deu passos para trás do púlpito.

— N-Não. De novo não. Isso de novo não. Digam que é mentira, por favor.
— Você tem certeza disso, senhor Ganymede? — perguntou-me o Filho de Trismegistus, antes mudo. — Até que cumpra o juramento, é possível anular o pedido. Se eu ainda for capaz de fazê-lo mudar de ideia, eu imploro, fale comigo. Esse não é rumo o que queremos tomar.
— Você se esqueceu de onde estamos?
— ...?
— Esta é a Corte dos Heróis. Nós viemos para lutar e morrer. Se você não esperava que isso aconteceria uma hora ou outra, eu sinto muito. Não existe paz. Não neste mundo.

Creio que é isso. Mas, e agora?

Será que Castor reagiria? Não. Claro que não. E quanto à minha senhora Pollux? Pelo visto, ela também não tinha nada a dizer. A expressão deles era fria, como uma máscara de ferro.

Sendo assim, estava tudo bem. Se nem ela se importava, era um arrependimento a menos.

Ninguém estava disposto a aceitar a realidade, preferindo se esconder atrás de fantasias. Eles pisoteavam as rosas do sepulcro do meu santíssimo deus, zombando do meu desígnio.

Nem é preciso dizer o quanto isso me frustrava.

Para bem-nascidos, era fácil. Eles nunca passaram por dificuldades. Mas eu? Eu não tinha mais nada para molhar a minha boca além das míseras gotas de vinho respingando do cálice.

Foi aí que uma chama de vela se acendeu em meio à noite e me iluminou. E se o cálice, em verdade, fosse uma extensão de mim? Um cálice cujo vinho nunca foi bebido até a última gota, sem chegar a um fim.

Apenas o mais precioso dos materiais — o ouro — era precioso a ponto de ser considerado eterno. Se outro item retém qualidades semelhantes, esse item também é considerado precioso.

O pecado incorporado em mim e disseminado no coração dos homens era a “preciosidade”.

Enquanto existissem as coisas preciosas, os seres humanos continuariam se atendo a objetos de apreciação. Eles comprariam uns aos outros, para depois usá-los, quebrá-los e descartá-los.

Para livrar o universo dessa devastação, a preciosidade em si havia de ser sacrificada. Se eu, Ganymede de Carmenta, era mais ou menos do que um ser humano, só isso tiraria a prova real.

A única maneira palpável de realizar isso era reivindicando o Amaranto, traindo aos dióscuros e ao meu próprio senhor no processo. E não, eles não tinham o menor direito de se lamentar.

Eles abdicaram da glória vindoura. Portanto, não mereciam os milagres que lhes viessem através de Messias.

Ainda que amados por serem os filhos de deus, ninguém amou a esse deus mais do que eu.

Só eu o conhecia verdadeiramente. Só eu podia dá-lo do cálice que eu era, expulsando-o do meu interior. Só eu exterminaria tudo o que carregava preciosidade — o passado e a mim mesmo.

Ninguém mais tocaria no meu coração.

— Comecemos, então, o rito preparatório — o Imperador prosseguiu. — Desafiante, responde do teu coração: jura seguir, defender e preservar as leis deste Anfiteatro, ainda que tua vida dependa disto?
— Diga não, Ganymede!! — A voz alta do salaciense reverberou pelo tribunal, interrompendo-nos. Ele desceu e tentou vir até a minha posição, mas foi contido pela bruxa.
— Theseus!
— Recuse! Diga que não é isso que você quer!! A-Agh, me solte, Circe! 
— Pare já, Theseus!
— Me escuta, Ganymede!! — Ele se esperneava, fazendo força para se soltar. — Ainda não nos conhecemos, mas podemos nos conhecer! Vamos resolver isso, então não aceite esse juramento! Fique conosco! Você pode estar junto da gente...!!

Eu os ignorei, e atendi ao chamado:

— Eu juro.
— Jura lutar para alcançar Messias, tendo isto como singular propósito?
— Em nome da Correnteza Eterna; a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens.
— O requerimento de Ganymede de Carmenta acaba de ser deferido. Em oito dias, encontremo-nos na arena de duelos. Está encerrada esta audiência da Corte dos Heróis!

Bem, vocês ao menos tentaram.

Era até estranho o garoto de Agartha não ter insistido como o baixinho insistiu. Quem sabe ele percebeu que seus esforços acabariam sendo fúteis, e se rendeu. Bom pra ele.

Ele deveria saber melhor do que ninguém que se não arrancarmos a nossa própria carcaça para fora da canastra, morreremos antes de nascer.

Eu havia de mostrar o verdadeiro eu — o meu eu amado. Não o Ganymede ofuscado pela arrogância dos filhos do trovão, mas o brilho celestial que ardia para então apagar-se.

Ouro e prata. Sol e Luna. Cima e baixo. Luz e escuridão. Homem e mulher. Eu era tudo isso. Aquele com direito à hierarquia do paraíso era eu.

Muito breve, veio a anunciação tão aguardada:

— Abram-se as cortinas para o terceiro combate da Corte dos Heróis. A condição para a vitória é derrubar a máscara do adversário. Vença aquele que prevalece em glória e dignidade!

Os espectadores, com exceção de Theseus de Salacia, compareceram ao pulvinar. Dentre eles, Castor, servido com vinho pelas máquinas. Assim que o olhar dele se encontrou com o meu, asseverei.

Seu pedaço de merda. Eu não vou deixar você fazer como quer. Eu nunca mais serei um mero servo à sua autoridade.

— Sem suas asas, de novo? — perguntou o Filho de Trismegistus ao comprometido, e este nada respondeu. — ... Hector, não se arrisque. Se o que está fazendo é por mim, eu não quero que-...
— Vamos logo com isso.

Atônito com o tom de repulsa do outro, deu o beijo com relutância.

O poder do Amaranto se manifestou, materializando as peças consagradas da armadura e a máscara no corpo de Hector de Vertumnus. Elegantemente, ele brandiu a espada, e a orquestra iniciou o combate.

O campo de batalha foi metamorfoseado em uma espécie de trabalho cenográfico, tal qual nas vezes anteriores. O piso da arena se resguardava para as beiradas, até que se abriu um grande fosso bem debaixo de nossos pés.

Saltamos então para uma gaiola dourada de uns quinze metros de diâmetro, pendurada por correntes presas ao teto. Dentro delas, autômatos de pássaros sem asas cantarolavam em muitas vozes estridentes e indecifráveis.

Investimos um contra o outro, até que nossas armas colidiram.

Trocávamos ataques fortes e precisos, todavia, ele estava longe de se equiparar à minha condição. O que era esperado, já que não abriu as asas. Sua performance era o cúmulo do patético sem elas.

Com minhas cambalhotas, eu voava bem mais alto, inalcançável.

Outras plataformas se ergueram, próximas o suficiente para saltarmos de uma até a outra. Elas construíam em sequência a réplica de um viveiro para aves, dentro do qual éramos dois entre os muitos outros animais aprisionados.

— Eu previ que você quebraria a trégua — afirmou, arfante.
— Que legal, vidente! Por que será, hein?

Rodopiei no ar e atirei o chakram em sua direção, mas este foi aparado.

Isso não o impediu de voltar às minhas mãos, já que o artefato operava como um bumerangue, e eu detinha tanto domínio sobre ele quanto sobre meus movimentos.

— Você obedece aos dióscuros mais do que a ninguém — continuou. — Foram eles que te mandaram aqui. Eu aposto.
— Um ledo engano. Eu subi nessa arena porque tem algo que quero realizar. E só eu posso fazer isso.
— Ah, é? Surpreende-me que você não é só um vassalo!

Ele golpeou a cabeça de um pássaro, e fumaça quente foi ejetada do pescoço partido.

Pffft, que previsível.

Aquele garoto achava que me acertaria embaçando minha visão, mas minha postura não abria vazão para pontos cegos. Esquivei com tamanha facilidade de sua estocada que ele só pôde pisar em falso ao meu contra-ataque.

A espada voou e foi ao encontro do abismo. Com um corte fundo no abdômen, Hector de Vertumnus foi cuspido do vapor e tombou. Marchando até ele, o dei um chutei no ferimento, fazendo-o rolar para fora da plataforma.

Ele se segurou nas extremidades por um triz, mas era o fim da linha.

Sua máscara carregada de medo refletia a minha imagem. A figura lustrosa, distorcida e inacabada de Ganymede. Eu era a joia áurea que mais uma vez amaldiçoaria alguém com a morte definitiva.

— Eu sou sim um vassalo — disse, impondo-me à sua frente. — Sou o eterno servo do deus de Carmenta. Mas esse deus está morto, e agora eu tenho um desejo para chamar de meu. Tudo o que carrega preciosidade: o ouro, o amor, eu e o Filho de Trismegistus. Com Messias, vou dissolver todas essas coisas. Só assim haverá felicidade.
— Gh... A-Augh...!
— No seu lugar, eu não desejaria por nada diferente disso. Digo, olhe para aquele moleque que não cala a boca. Ele é o que há de mais precioso para você. Essa podia ser sua derrocada, mas você continuou a desejá-lo, a ter fome e sede dele, não é? Dói, e te faz agonizar, não é?!

Eu pisoteei uma de suas mãos e a fiz soltar, mas nem isso bastou para ele desistir. Com uma só, e com o estômago sangrando, arquejava, tendo suas últimas energias drenadas.

— Eu entendo. Comigo também era assim. Mas não se preocupe. Como sou gentil, eu cuidarei disso para você.
— N-Não... Eu não posso. Eu não-...
— Considere isso o meu presente de despedida.

Subi ao topo da gaiola, e com um corte veemente, arrebentei a corrente que a suspendia. Junto ao comprometido, ela despencou no breu. Após alguns segundos, um tremendo impacto, e a música parou.

A distância até a base era de uns setenta metros. Se seu coração já não tivesse parado durante a queda, seu corpo teria sido esmagado ao atingir o chão. Sendo assim, eu venci.

Os desafiantes se entreolhavam feito idiotas. O Filho de Trismegistus, por alguns segundos paralisado, deu com os joelhos no assoalho e começou a chiar pelo nome do caído. Ele gritava e chorava até a voz falhar.

A bruxa foi rápida em socorrê-lo, caso contrário, ele teria se jogado junto.

A cena não me comovia nem um pouco. Meus sentimentos eram dedicados ao meu supremo mestre, e eu os mataria comigo. Para concretizar isso, eu faria uso desse garoto como o sustentáculo da chave.

Ele era um utensílio, tal qual eu fui desde que me conheço por gente.

— E então? Vamos, Imperador das Rosas! — exclamei. — Sua máquina imprestável! Por que está demorando tanto?!

... O que era essa inquietação? Mesmo tendo o duelo terminado, não houve anúncio do vencedor.

Levantando-se da cadeira, Castor deixou a taça sobre a mesa e foi à beira do pulvinar, observando atentamente o fundo do fosso. Podíamos ouvir um som distante aproximando-se mais e mais.

Esse era... o som de asas batendo.

Foi quando meu oponente, ainda vestindo sua máscara, me agarrou como uma revoada de rapinas carniceiras, sujando-me com sangue e plumas. À força bruta, ele me sacou para o despenhadeiro, rosnando feito uma criatura selvagem.

Indiferente às minhas resistências, segurou-me pelo pescoço com uma mão, e com a outra, tentava arrancar minha máscara à unhadas e arranhões. Enquanto digladiávamos, tentei remover a dele, mas pequei em reagir tão tardiamente.

Não havia nada, nada de humano naquele ser.

As últimas coisas que testemunhei nesta vida foram suas múltiplas faces, eclipsando à luz caleidoscópica do topázio imperial. O fulgor transpassava cada célula minha e levava a apreensão embora.

Eu estava retornando a um lugar nostálgico. O meu lar.

Eu tinha certeza que, uma vez chegando nele, eu o reconheceria. Talvez lá eu descobrisse que sempre tive um nome pelo qual me chamassem para dizer que... estava tudo bem em viver.

Que alguém se alegraria pelo dia em que nasci. Que eu não precisaria ser mais ou menos do que um ser humano. Que tudo o que aconteceu foi apenas um sonho ruim, e que...

ᛜᛜᛜ

— Você tem sorrido bastante.
— Oh, Pollux, minha querida irmã. Por que não disse que estava aí?
— Eu estou sempre aqui.
— Era para ser uma piada — ri. — O que te aflige?
— Você mentiu a respeito de Patroclus de Angerona. Desde o início, tem agido pelas minhas costas para fins que desconheço. Agora, Gany se foi. O que você anda fazendo enquanto fico aqui dentro?
— Eu só trabalhei em a ligar algumas pontas soltas dessa história, e dei a Patroclus uma boa razão para lutar. Foi Achilles, cego pelo brilhantismo de seu tesouro, quem não viu a diferença entre o próprio valor e o do amado. As consequências disso foram meio dramáticas, mas saíram como o planejado.

Lâmpadas periféricas atenuaram do azul para o amarelo, desvelando uma câmara cheia de flores e cortinas de veludo. Mais adiante, uma gaiola com um pássaro morto no interior.

Neste recanto aconchegante, as identidades “Castor” e “Pollux” existiam em formas físicas separadas. Era uma espécie de sonho vívido que acessávamos quando bem queríamos.

— Foi ótimo dá-lo um incentivo, ressaltando a possibilidade de ressuscitar os heróis mortos pelo ouro.
— Possibilidade? Não é nem de perto uma possibilidade. As leis do Anfiteatro são invioláveis.
— É, mas enquanto alguém em apuros acreditar em milagres... né? — sugeri. Em seguida, tomei a gaiola em mãos, tão afetuoso. — Lidar com nossa pequena luz também foi super simples. Se tanto eu quanto você nos colocássemos contrários à devoção por aquele homem, uma hora ou outra ela quebraria! Paft!

Abrindo a portinha, despejei o cadáver do animal sobre o fluxo corrente da filtragem.

Os canos levavam ao motor fervente da fornalha, e sobre uma prancha na entrada jaziam as peças do uniforme de Ganymede. Para o fogo devorador se foram, junto da gaiola e outras desnecessidades.

— Um pouco de pressão foi mais do que o suficiente para Gany romper com as correntes e voar. Confesso que o “dissolver a preciosidade” me rendeu umas boas risadas. Ah, e não se preocupe. Ele não fará tanta falta assim. Quando voltarmos para casa eu arranjo outro consorte.
— Eu acreditei na trégua e em um futuro diferente. Você não usou só a Gany, mas a mim também.
— Não fale assim. O fracasso dele foi de grande valência — afirmei. — Esses duelos não medem só habilidades ou disposições físicas. Se por ventura um dos três vencesse, eu já teria controle completo sobre as fraquezas de seus corações. E graças a eles, consegui dados bem mais interessantes sobre um certo alguém.

Um jovem de olhos tão azuis quanto o céu descrito nos livros da antiguidade. Ou, uma pequena águia-pescadora, prestes a ter a si e seu peixe capturados por uma águia maior e mais forte.

Toda a dureza da superfície de Hector de Vertumnus ia em contraste com sua fragilidade ao contato, e com o quão fácil era estraçalhá-lo, reduzi-lo a pó, se utilizados os recursos adequados.

— O coração daquele sujeito, antes uma pedra opaca, agora lampeja ao Filho de Trismegistus como um mar de águas cristalinas. Águas estas que, a qualquer momento, podem entornar em tempestade. Além do mais...
— Você não sente nada pelo Filho de Trismegistus? — cortou.

Veio-me breve serenidade, esta advinda da volúpia incessante.

— ... Nele, está reunida a essência da preciosidade. Uma vez que alcancemos Messias, é natural que eu o tome como meu. Meu prêmio. Meu Ícaro das asas arrancadas. Eu o roubarei do céu estrelado para que seus pés andem apenas no meu jardim. Vou garantir que ele só seja feliz com o meu amor.
— Te ver assim me lembra do papai, meu irmão.
— Pollux, consegue ouvir o canto dos pássaros? Chegou a hora. Deixe as cortinas fechadas.

ᛜᛜᛜ

Hey, aqui é o Rafa! Muito obrigado por ler Os Prelúdios de Ícaro até aqui. Considere deixar um favorito e um comentário, pois seu feedback me ajudará bastante!



Comentários